quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O MEU TERCEIRO VOTO

A espera foi alongada pela ansiedade no desfecho de um processo incumbido de fazer desabrochar a flor da paz. No compasso para Bicesse, a trilha sonora tinha a voz de Jacinto Tchipa. A cartinha da saudade era a expressão unânime de um sentimento que perpassava o coração de todos os angolanos patriotas, que haviam dedicado parte preciosa dos seus anos de juventude para sustentar um sonho de independência e de paz.
Depois de Gbadolite, as notícias sobre os novo acordo de paz eram incipientes para remover as incertezas e percalços do caminho. Assim, sexta-feira, 31 de Maio de 1991, o abraço entre o Presidente José Eduardo dos Santos e o líder da UNITA Jonas Savimbi representou o culminar de um longo e sinuoso processo de negociações entre irmãos desavindos.
Finalmente, a paz era um facto. Todos os angolanos estavam novamente juntos e de mãos dadas para a edificação de uma pátria reconciliada e próspera. Independentemente da sua origem étnico tribal, filiação política ou confissão religiosa, todos eram tidos como elementos importantes para a consolidação da paz e reconstrução nacional. Diante da ingente tarefa da criação de condições de vida para as populações, todos eram indispensáveis, como o carreto para o funcionamento de uma máquina.
Na hora do aperto de mão, todo o país entrou em delírio. Com certeza, depois do 11 de novembro de 1975, aquela foi a noite mais bonita, em que não se foi incapaz de conter as lágrimas da alegria, deixando-as, assim, a humedecer a face enrugada pela esperança. Para trás, ficavam os anos agrestes de um conflito que não escolheu as suas vítimas.
Na sexta feira, 30 de Setembro de 1992, parti para exercer o direito de cidadania. Eram 10 horas. Tudo estava calmo até remeteu-se ao silêncio o marulhar das ondas, reclamando das línguas de pedra. A Rádio Luanda se desdobrava em orientar os eleitores a identificar as Assembleias de Voto com menos filas.
Da Ilha de Luanda até a Avenida Marginal, subi de autocarro 28 da Empresa de Transportes Públicos (ETP). Na multidão espremida, espreitava entre axilas, pescoços e braços a paisagem em movimento, onde o Hotel Panorama exibia a sua velha exuberância apesar do passar dos anos agravadas pelo sal do mar.
Os machibombos articulados de marca Volvo, papavam as bichas que se formavam nas paragens e a seguir partiam velozes entre gritos e gemidos de passageiros amedrontados pelas curvas e ultrapassagens. O ai na rotunda da Fortaleza S. Miguel!
No Bailezão, o autocarro 28 cuja rota terminava no Porto de Luanda, parava e despejava alguns dos seus passageiros para que estes pudessem apanhar outros machimbombos como o 32 e 33. Os dois tinham como destino o Bairro Cazenga. O primeiro, tinha o seu término acerca de mil metros do entroncamento da Cuca e o segundo ia até ao Cemitério Catorze, passando pelo centro recreativo Cubata, Mãe-Preta e a fábrica de vulcanização de Pneus, Mabor.
Desembarquei no largo Saydi Mingas, perto do BNA, e parti a pé até ao largo Luniamege, na Rua 1º Congresso do MPLA, pertinho do cine Nacional. Aí estava o término do autocarro 27, que seguia até ao bairro Benfica. Haviam duas opções: o 27-A seguia pela Revolução de Outubro, passando pela FAPA- DAA, Bairro Rocha Pinto e até ao destino. E o 27 que tomava a rota do Supermercado Zamba 2, seguindo para Morro da Luz, Corimba, Futungo de Belas...
Longe das actuais arrelias, a manhã era calma. Ainda me lembro. Era de véspera a chegada dos autómóveis de marca Patrol, Toledo e Passat. Ofuscando os seus antecessores agora rematriculados com a chapa AMF, estes não tardaram em tomar os antigos trilhos dos Urales, LADA’s e WAZ’s. E quanto furor faziam entre os admiradores! Casamento ou relacionamentos frágeis encontraram no Noivo mecânico o melhor pretexto para a ruptura.  
Segui viagem e desembarquei no Zamba 2. Caminhei aparantemente descontraído para a Assembleia de voto, implantada no interior da Escola situada no Jardim do Bairro Azul. A fila já não era longa. Esperei ansioso. Ao chegar a minha vez, o coração acelerou. Tive medo. Meus Deus! E se eu errar... Era a primeira vez que eu iria votar e o meu voto tinha um sabor muito especial, pois punha fim a vários anos de uma guerra atroz. Era como se sobre mim pairasse a pesada missão de resolver o que os generais desconseguiram no teatro de operações.
Naqueles derradeiros metros que me separavam da mesa, um turbilham de lembranças e conjecturas baralhavam a realidade feito um caleidoscópio. Rezei. Quero viver em paz, quero trabalhar em harmonia, ter uma casa condigna e cuidar da família. Quero voltar a estudar e viver com normalidade uma vida saudável. Ah, reencontrar os meus pais...
E momentaneamente refugiei-me nas noites sublimes e coroadas por personagens de fábulas como a lebre e cágado. Era uma vez!... Quem chegará primeiro à meta. Com desgosto, percebo que hoje as noites ganharam um outro ingrediente rompendo as viseiras rurais e impondo um consumo obrigatório e cíclico de telenovelas importadas.
Aproximo-me e recebo o Boletim de Voto, suspiro e dirijo-me com vigor para a cabine. Coloco o Xis no quadradinho, dobro com cuidado o papel e deposito-o na urna.
Ao sair, senti-me incrivelmente aliviado e feliz, como se tivesse com o acto retirado sobre os ombros um enorme fardo que transportara durante vários e longos anos.
Dias depois, a frustração. O recomeço da guerra  com o seu cortejo de mortes. Tinha consciência das dificuldades com que se debatia o processo de paz, mas ainda assim acreditava na capacidade dos homens em ultrapassá-las.
O sonho de voltar às urnas hibernou durante 16 anos. Foram anos de reiteradas esperas e de um acumular de mágoas e decepções.
Quatro anos após a assinatura do Memorando do Luena em 2002, eis que se nos oferece mais uma oportunidade de exercer o direito de cidadania. Era preciso concolidar a paz, reconstruir as infraestruturas rodoviárias e ferroviárias. Construir escolas, hospitais, estabilizar e desenvolver de forma sustentável a economia. Baixar a inflação para dois dígitos, regularizar o fornecimento da água e da energia eléctrica. Aprofundar a reconciliação e a unidade nacionais. Em fim, resgatar o amor e a concórdia, curando e cicatrizando as feridas abertas no corpo e na alma . Por isso, no dia marcado, cheguei ao local da votaçao e Xis. Sabia o que queria. Era impossível errar o quadradinho.
31 de Agosto de 2012. Depois de uma campanha eleitoral em que cada um dos concorrentes teve a oportunidade de expor os seus argumentos com a perspectiva de angariar um maior número voto, é chegada a hora.
Todavia, no processo eleitoral é importante e crucial para o bem-estar comum que todos coloquem a pátria, Angola, acima dos seus interesses pessoais.
Faltam pouco menos de um dia. Passados 20 anos após as primeiras eleições multipartidárias realizadas em 1992, quero reiterar o meu voto de fé numa Angola reconciliada e próspera. Sonho com uma sociedade sem qualquer tipo de exclusão.
Não diga que a canção
Está perdida
Tenha fé em Deus
Tenha fé na vida
Tente outra vez!...

Raul Seixas deixa aqui o seu voto de fé e esperança. A vontade transformará o sonho em realidade e o futuro confirmará as nossas esperanças. Acredite!

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