terça-feira, 21 de agosto de 2012

Pensamento flutuante


Os pensamentos roubavam-lhe o sono. Acordava cedo e procurava ocupar-se com algo que lhe ajudasse a matar o tempo. E num dia igual aos outros e imbuído de sentimentos que eram a sua rotina, apanhou o autocarro com destino à baixa de Luanda. Eram 10 horas.

No bairro Morro Bento, subiu uma jovem que veio sentar-se ao seu lado. Que sorte! Chamava-se Miquilina Ngueve, natural do Bié, e vivia sozinha num dos bairros de Luanda. E trabalhas? Sim, sou PISCÓLOGA. Sorriu descontraída. Wandalika aceitou com relutância a profissão. PISCÓLOGA! Pelo traje bem poderia ser confundida com uma vendedora ambulante do mercado existente por de trás dos antigos Armazéns Gajajeiras, vulgo Arreiou-Arreiou. Lá o negócio é feito no meio de lama, facto que obriga os clientes a calçarem sacos para não sujarem os sapatos. Mas aceitou, era preciso fazer fluir o diálogo. Vive sozinha por quê? Tio, essa é uma grande história, não vais ter tempo para me escutar. A viagem está quase a terminar. Vais até aonde? Vou à Mutamba. Vou ter tempo, conta!

Wandalika insistiu até que ela decidiu desfazer o novelo da sua história: Eu sou natural do Bié. Lembra do tempo da guerra? … Pois, eu e o meu irmão Catraio viemos para Luanda para fugir a guerra. E os teus pais? Eles ficaram lá. Como? Eles só nos colocaram no avião. Não havia mais lugar, toda a cidade queria vir para Luanda. Eles ficaram e nós viemos! Quantos anos tinham na altura? Eu tinha 13 anos e o meu irmão, nove. Vocês já conheciam Luanda? Não! E como é que foi ao chegarem aqui? Viemos só. Chegamos no aeroporto, descemos e depois fomos andando... Ficamos uma semana naquelas barracas do aeroporto. Durante o dia, ajudava as senhoras a lavar a loiça e à noite ia passear ali perto no Cassequel do Lourenço, depois no Mártires do Kifangondo, no Cassenda e na baixa. E dormiam onde? Dormíamos em qualquer sítio. Ou na barraca ou nas sucatas ou ainda na rua.

Wandalika ficava cada vez mais intrigado. Mas você é formada, podia arranjar um emprego como psicóloga! Ela sorriu numa longa gargalhada. Desconfiado, Wandalika avançou com mais cautela. Aquele sorriso era uma máscara que escondia algo importante. Então você não é formada em Psicologia? Mais ou menos. Como assim? Eu trabalho com pessoas! Pessoas? Sim, pessoas que precisam de ajuda. Ajuda PISCOLÓGICA! Ah, tá! E tens muitos clientes? Muitos doutores, grandes chefes, bosses de verdade, funcionários, kabolas e tudo. Basta ter dinheiro! E quanto ganhas por dia? Depende! Depende do dia! Aos fins-de-semana ganha-se mais, mas uma pessoa fica partida. Mas em que clínica trabalha? Por conta própria! Então você é empreendedora? Mais ou menos. E quais são os teus planos para o futuro? Quero arranjar dinheiro para viajar. P’ra onde? Para ir ver os meus pais. E o teu irmão? Ela baixou a cabeça e entre soluços disse: ele morreu. Lhe mataram num senhor. Por quê?! Ele lavava carro no aeroporto. um boss lhe mandou lavar o carro dele. Eu até lhe vi, quando lhe deram o trabalho. Era já mesmo cliente dele. Todos dia ele lavava e recebia dinheiro à tarde. Certo dia, quando o boss veio encontrou os espelhos não estavam, roubaram. Falou que meu irmão é que roubou. Aí começou a lhe bater, lhe bater, lhe bater. Ele começou a dizer que não era ele, mas o boss continuou a lhe bater. Só lhe deixou quando ele começou a vomitar sangue. Dois dias depois morreu. Não levaram ao Hospital? Fomos até na Maria Pia, lhe deram uma pica e lhe mandaram voltar. Dia seguinte, morreu. A polícia levou o corpo na molga. Como não tinha nenhum documento, assim lhe enterraram na vala! Eu também não tinha condições para lhe enterrar! É muito triste! Sim, agora estou sozinha. Por isso quero ir me m’bora no Kuito. Mas o dinheiro não chega. E não aconteceu nada ao boss? Nada, anda aí! Não está preso? Quem vai lhe prender? Pobre não prende rico! O tio não está ver mesmo a situação?

Os seus olhares se cruzaram. E essa cicatriz na testa? Um tio é que me bateu. Depois de eu lhe atender não queria mi pagar. Eu lhe segui até no carro. E te deu o dinheiro? Não, mas também lhe deixei estrago! Que estrago? Quando ele tentou fugir, eu queria abrir a porta. Ele começou a ofender a minha mãe, eu entrei na janela e lhe segurei no pescoço e começamos a lutar. Na atrapalhação o carro acelerou e foi bater numa pedra. Aonde é que foi isso? Na Ilha…O carro partiu o vidro e começou a sair água quente. Que tipo de carro era? Era preto, desse tipo dos boss. E ele? Heheheheh! Deixou o carro na estrada, só tirou a pasta dele e a chapa de matrícula, depois se meteu na floresta da Ilha. Bem feito! Ele pensa que nós não sofremos! Nosso serviço é chofrimento! Depois há com cada cliente!... E ainda temos de pagar a casa de processo! Com essa doença que anda aí, tamos mal!... E descarregou todo desgosto que carregava num suspiro. É a vida!...

Já perto da Assembleia Nacional, Miquilina perguntou, enquanto se preparava para levantar-se. Gostei muito do tio, tens um sotaque tipo brasileiro. E o tio faz mesmo o quê? Sou desempregado. Hum, mata cassumuna? Afinal era só lata! Com essa roupa, eu já pensei m’bora …! Mas kunanga, não acredito ou és da investigação ou da Igreja Universal?!... Kunanga de primeira!

No Cine 1º de Maio, desceu e num salto desapareceu na multidão de passageiros que desembarcava. Wandalika também desceu do autocarro e, ao caminhar em direcção à Mutamba, lembrou-se do cheiro exalado pelo corpo de Miquilina. Era do perfume barato comprado no mercado Roque Santeiro, adicionado ao cheiro de noites partilhadas na busca de prazeres carnais. Suspirou pensativo. É a vida!

As tentativas de rever a Miquilina foram infrutíferas. Então desacelerou o passo e indolente prosseguiu a marcha sem pressa como se não quisesse chegar ao destino. Estava desempregado e até já chegou a pensar no suicídio, mas o drama de Miquilina impressionava-o. Afinal há gente que está pior do que eu! Quis ir saber do seu curriculum, mas desistiu. Se estivessem interessados o chamariam! Aliás, no dia do contacto a funcionária já o havia alertado. Há poucas hipóteses, pois o Gabinete de Comunicação está em reestruturação. São sempre assim!

Passou atrás do Cine Teatro Nacional e ao tentar atravessar a Rua de Portugal quase foi atropelado por um táxi. Correu, mas ainda foi a tempo de ouvir os palavrões do condutor. Não ligou. Querem me matar aqui! Nem pensar! Malandros!

Incrivelmente mais animado, acelerou o passo e entrou num bar para urinar. Naquela hora, trabalhadores e vagabundos confundiam-se no cenário. Pediu um cigarro e um fino, enquanto bebia reflectia sobre a sua vida. Pediu mais outro e os restantes ficaram por conta de um amigo de ocasião. Ao sabor do diálogo e da cerveja, não viu o tempo passar.

Às 15 horas, agradeceu a gentileza do amigo e encaminhou-se até a Marginal de Luanda. No calçadão, não acreditou nos seus olhos. Como a Marginal está bonita! E ao sabor da tarde, deixou os seus pensamentos a flutuar nas águas da Baía.


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