Os
pensamentos roubavam-lhe o sono. Acordava cedo e procurava ocupar-se com algo
que lhe ajudasse a matar o tempo. E num dia igual aos outros e imbuído de
sentimentos que eram a sua rotina, apanhou o autocarro com destino à baixa de
Luanda. Eram 10 horas.
No
bairro Morro Bento, subiu uma jovem que veio sentar-se ao seu lado. Que sorte!
Chamava-se Miquilina Ngueve, natural do Bié, e vivia sozinha num dos bairros de
Luanda. E trabalhas? Sim, sou PISCÓLOGA.
Sorriu descontraída. Wandalika aceitou com relutância a profissão. PISCÓLOGA! Pelo traje bem poderia ser
confundida com uma vendedora ambulante do mercado existente por de trás dos
antigos Armazéns Gajajeiras, vulgo Arreiou-Arreiou. Lá o negócio é feito no
meio de lama, facto que obriga os clientes a calçarem sacos para não sujarem os
sapatos. Mas aceitou, era preciso fazer fluir o diálogo. Vive sozinha por quê?
Tio, essa é uma grande história, não vais ter tempo para me escutar. A viagem
está quase a terminar. Vais até aonde? Vou à Mutamba. Vou ter tempo, conta!
Wandalika
insistiu até que ela decidiu desfazer o novelo da sua história: Eu sou natural
do Bié. Lembra do tempo da guerra? … Pois, eu e o meu irmão Catraio viemos para
Luanda para fugir a guerra. E os teus pais? Eles ficaram lá. Como? Eles só nos
colocaram no avião. Não havia mais lugar, toda a cidade queria vir para Luanda.
Eles ficaram e nós viemos! Quantos anos tinham na altura? Eu tinha 13 anos e o
meu irmão, nove. Vocês já conheciam Luanda? Não! E como é que foi ao chegarem
aqui? Viemos só. Chegamos no aeroporto, descemos e depois fomos andando...
Ficamos uma semana naquelas barracas do aeroporto. Durante o dia, ajudava as
senhoras a lavar a loiça e à noite ia passear ali perto no Cassequel do
Lourenço, depois no Mártires do Kifangondo, no Cassenda e na baixa. E dormiam
onde? Dormíamos em qualquer sítio. Ou na barraca ou nas sucatas ou ainda na
rua.
Wandalika
ficava cada vez mais intrigado. Mas você é formada, podia arranjar um emprego
como psicóloga! Ela sorriu numa longa gargalhada. Desconfiado, Wandalika
avançou com mais cautela. Aquele sorriso era uma máscara que escondia algo
importante. Então você não é formada em Psicologia? Mais ou menos. Como assim?
Eu trabalho com pessoas! Pessoas? Sim, pessoas que precisam de ajuda. Ajuda PISCOLÓGICA! Ah, tá! E tens muitos
clientes? Muitos doutores, grandes chefes, bosses de verdade, funcionários,
kabolas e tudo. Basta ter dinheiro! E quanto ganhas por dia? Depende! Depende
do dia! Aos fins-de-semana ganha-se mais, mas uma pessoa fica partida. Mas em
que clínica trabalha? Por conta própria! Então você é empreendedora? Mais ou
menos. E quais são os teus planos para o futuro? Quero arranjar dinheiro para
viajar. P’ra onde? Para ir ver os meus pais. E o teu irmão? Ela baixou a cabeça
e entre soluços disse: ele morreu. Lhe mataram num senhor. Por quê?! Ele lavava
carro no aeroporto. um boss lhe mandou lavar o carro dele. Eu até lhe vi,
quando lhe deram o trabalho. Era já mesmo cliente dele. Todos dia ele lavava e
recebia dinheiro à tarde. Certo dia, quando o boss veio encontrou os espelhos
não estavam, roubaram. Falou que meu irmão é que roubou. Aí começou a lhe
bater, lhe bater, lhe bater. Ele começou a dizer que não era ele, mas o boss
continuou a lhe bater. Só lhe deixou quando ele começou a vomitar sangue. Dois
dias depois morreu. Não levaram ao Hospital? Fomos até na Maria Pia, lhe deram
uma pica e lhe mandaram voltar. Dia seguinte, morreu. A polícia levou o corpo
na molga. Como não tinha nenhum documento, assim lhe enterraram na vala! Eu
também não tinha condições para lhe enterrar! É muito triste! Sim, agora estou
sozinha. Por isso quero ir me m’bora no Kuito. Mas o dinheiro não chega. E não
aconteceu nada ao boss? Nada, anda aí! Não está preso? Quem vai lhe prender?
Pobre não prende rico! O tio não está ver mesmo a situação?
Os
seus olhares se cruzaram. E essa cicatriz na testa? Um tio é que me bateu.
Depois de eu lhe atender não queria mi pagar. Eu lhe segui até no carro. E te
deu o dinheiro? Não, mas também lhe deixei estrago! Que estrago? Quando ele
tentou fugir, eu queria abrir a porta. Ele começou a ofender a minha mãe, eu
entrei na janela e lhe segurei no pescoço e começamos a lutar. Na atrapalhação
o carro acelerou e foi bater numa pedra. Aonde é que foi isso? Na Ilha…O carro
partiu o vidro e começou a sair água quente. Que tipo de carro era? Era preto,
desse tipo dos boss. E ele? Heheheheh! Deixou o carro na estrada, só tirou a
pasta dele e a chapa de matrícula, depois se meteu na floresta da Ilha. Bem
feito! Ele pensa que nós não sofremos! Nosso serviço é chofrimento! Depois há
com cada cliente!... E ainda temos de pagar a casa de processo! Com essa doença
que anda aí, tamos mal!... E descarregou todo desgosto que carregava num
suspiro. É a vida!...
Já
perto da Assembleia Nacional, Miquilina perguntou, enquanto se preparava para
levantar-se. Gostei muito do tio, tens um sotaque tipo brasileiro. E o tio faz
mesmo o quê? Sou desempregado. Hum, mata cassumuna? Afinal era só lata! Com
essa roupa, eu já pensei m’bora …! Mas kunanga, não acredito ou és da
investigação ou da Igreja Universal?!... Kunanga de primeira!
No
Cine 1º de Maio, desceu e num salto desapareceu na multidão de passageiros que
desembarcava. Wandalika também desceu do autocarro e, ao caminhar em direcção à
Mutamba, lembrou-se do cheiro exalado pelo corpo de Miquilina. Era do perfume
barato comprado no mercado Roque Santeiro, adicionado ao cheiro de noites
partilhadas na busca de prazeres carnais. Suspirou pensativo. É a vida!
As
tentativas de rever a Miquilina foram infrutíferas. Então desacelerou o passo e
indolente prosseguiu a marcha sem pressa como se não quisesse chegar ao
destino. Estava desempregado e até já chegou a pensar no suicídio, mas o drama
de Miquilina impressionava-o. Afinal há gente que está pior do que eu! Quis ir
saber do seu curriculum, mas desistiu. Se estivessem interessados o chamariam!
Aliás, no dia do contacto a funcionária já o havia alertado. Há poucas
hipóteses, pois o Gabinete de Comunicação está em reestruturação. São sempre
assim!
Passou
atrás do Cine Teatro Nacional e ao tentar atravessar a Rua de Portugal quase
foi atropelado por um táxi. Correu, mas ainda foi a tempo de ouvir os palavrões
do condutor. Não ligou. Querem me matar aqui! Nem pensar! Malandros!
Incrivelmente
mais animado, acelerou o passo e entrou num bar para urinar. Naquela hora,
trabalhadores e vagabundos confundiam-se no cenário. Pediu um cigarro e um
fino, enquanto bebia reflectia sobre a sua vida. Pediu mais outro e os
restantes ficaram por conta de um amigo de ocasião. Ao sabor do diálogo e da
cerveja, não viu o tempo passar.
Às 15
horas, agradeceu a gentileza do amigo e encaminhou-se até a Marginal de Luanda.
No calçadão, não acreditou nos seus olhos. Como a Marginal está bonita! E ao
sabor da tarde, deixou os seus pensamentos a flutuar nas águas da Baía.
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