quarta-feira, 28 de maio de 2008

Redacções frias, jornalismo virtual

Prólogo: Cresci a caçar ratos no Amboim, hoje sobrevivo a agarrar o mouse. Sou o mesmo, pois!

Eram 21 horas do dia internacionalmente consagrado à liberdade de Imprensa. Dois jornalistas, um fumador e o outro não-fumador, reivindicavam cada o seu direito. “Aqui é proibido fumar!”... A tensão subia e ameaçava transbordar. Este artigo nasceu, naquele dia, entre a ameaça e a fumaça.
O fumador iniciava o seu texto, quiçá, abordando o silêncio dos profissionais e dos órgãos de imprensa em relação à data. De facto, é paradoxo propalar falta de liberdade de imprensa, quando no devido dia há apenas bocas soltas, nem debates, nem palestras em locais de trabalho e mercados, nem mesas redondas, etc.
O não-fumador procurava entre os poucos textos disponíveis, o ideal para fechar a edição do dia. Talvez não consiga “vender” uma chamada de capa ao chefe de redacção. “Hoje não há nada. A edição está fraca!” Diz-se como se nada de importante tivesse ocorrido no dia. O fecho reúne em si a tensão, a azáfama e a angústia. Chicotadas psicológicas, Ismael Kurts[1] que não ganha a nenhum adversário, mas, com certeza, recebe o seu salário inteirinho com correcção monetária e tudo. O contribuinte-adepto espera resignado por golos, que ficam nos dribles do labirinto do pensamento. Dirigentes que claudicam com os cortes que rejuvenescem quarentões? A alternativa é fuçar na Net.
Segui a briga a uma distância que permitia não perder detalhes da cena, nem me envolver nela. A briga acabou, tal como os cigarros terminam na borda do cinzeiro: sem fumo, apenas cinza, capaz no entanto de aquecer larvas de furacões adormecidos.
Foi assim, que, de repente, me vi percorrer outros atalhos. Tempos em que as redacções eram campo de batalha, onde fervilhavam ideias, discussões, críticas, humor, anedotas e gargalhadas sob o metralhar das máquinas de escrever. Tempo do jornalismo boémio e romântico, de escritores, advogados e outros sonhadores politicamente engajados. Autodidactas ávidos e devoradores de livros.
«Naquelas redacções de mesa única soava o estribilho monótono:” O jornalista nasce, não se faz”. Não havia computadores. O fumo e o calor faziam parte do cenário. Não havia escola de jornalismo. Como manual de cabeceira era recomendado o livro de um bom escritor (como Balzac) acoplado à imaginação e à criatividade no manejo da língua e à rapidez do dedilhar na azert.»
“Há uns cinquenta anos não estavam na moda escolas de jornalismo[2]. Aprendia-se nas redacções, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O Jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de participação, no qual a moral era conservada no seu lugar. Não haviam sido instituídas as reuniões de pauta, mas às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo o mundo fazia pausa para descansar das tensões do dia e confluía num lugar qualquer da redacção para tomar café. Era uma tertúlia aberta, em que se discutia a quente os temas de cada secção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte. Os que não aprendiam naquelas cátedras ambulantes e apaixonadas de vinte e quatro horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa, era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na verdade não o eram[3]”. “Prevalecia então o elemento humano sobre a técnica” (Piedrahita, pág. 89).
Hoje, os tempos são outros. O metralhar das máquinas de escrever é lembrança vaga. O pipocar do teclado dos computadores assenhorou-se do ambiente. As redacções tornaram-se menos barulhentas, não só pela ausência das “Olímpias”, mas também porque o perfil dos profissionais foi alterado. Longe vai a década de 60, caracterizada pelo ideal revolucionário. Che e Marx eram estandarte! Hoje, as discussões gravitam em torno do desporto, personagens de novelas, modelos de automóveis...! De política? “FECHE A PORTA! AR CONDICIONADO”!
Hoje, à entrada de todas redacções do mundo encontramos esse aviso. É o mais recente e vem juntar-se ao mais antigo: “PROIBIDA A ENTRADA DE PESSOAS ESTRANHAS!”. O mais cassule deles é o “PROIBIDO FUMAR!” Até parece que as redacções de hoje se transformaram em espaço de proibições. Só falta “SILÊNCIO, ESTAMOS A NAVEGAR”. Então, jornalismo não é o contacto com a vida palpitante da rua?!
Já não se fazem profissionais como antes. O consumismo superou o desejo de perseguir a verdade e mudar o mundo. Acabou a utopia. O repórter chega à redacção e esboça satisfação ao confirmar na agenda a ausência do seu nome. E não reclama se não for agendado durante toda uma semana. Fica feliz com isso. Encaminha-se para um computador, consulta o seu correio electrónico. Acessa o MSN e convoca a sua turma para o habitual bate-papo. Tem amigo(a)s e namorado(a)s virtuais e é com estes que ele se empenha em comunicar.
O contacto com o colega real é feito de forma indiferente. O aperto de mão é frio, assim como o olhar. Parece angustiado!
Quando chamado pela reportagem, o repórter recebe a missão. Não faz perguntas, não tem curiosidade sobre o assunto que vai reportar. Não procura por background. Pega na bolsa e embarca na viatura. Ao longo do trajecto, diverte-se a ouvir música e a ver o trânsito caótico da cidade. Nem repara nos buracos que vão surgindo na estrada, no lixo amontoado em cada esquina ou nas brigas comuns de criancinhas por um pedaço de pão. Resultado: chega ao local sem pensar sequer na pauta, que não raras vezes nem lhe foi proporcionada. Vêm depois as perguntas disparatadas: “Como é que a viúva se sente?” “Como o senhor se chama mesmo?” Ou então fica-se pelo evidente ou pelo despropositado: “Está feliz por ter recebido esse prémio?”
Não sabe tirar notas e morre de amor pelo gravador. As apurações ficam barrigudas[4]. Contenta-se com pouco. Não é persistente e não tem ambição. Erra o nome do entrevistado ou da empresa. De volta à redacção, nem sequer consegue dizer ao editor o assunto que cobriu. Enquanto escreve a reportagem, bate papo no MSN, lê, responde e encaminha emails... é incrível a capacidade de executar várias tarefas simultaneamente. Há quem ainda consiga jogar e atender o telemóvel!!!
Os manuais ensinam que o lead deve ser atraente e capaz de captar a curiosidade do leitor, do primeiro ao último momento. Nada de parágrafos intermináveis. Frases curtas. Ordem directa e voz activa. Como falar em proximidade, se anda a milhas? Agressividade e repercussões nem pensar, isso é coisa doutro tempo. Está relaxado. Começa a matéria de forma frouxa e termina desgraçadamente. Não há sugestão de título! A auto-censura logo o converte em especialista da press house. Galanteia a fonte e o leitor que se dane! – “Graças a Deus, o público não engole qualquer coisa!”
Depois entrega a matéria ao editor e sai. Não quer saber da edição. Dorme descansado com a convicção de ter assinado o seu melhor texto. No dia seguinte vem a surpresa. A matéria não foi publicada. Ou mudou-se o lead ou então o editor preferiu o texto da agência de notícias. Sente-se injustiçado, perseguido. O bolor nasce sobre as relações. “O editor não gosta de mim!”
E outro? É ainda estagiário, mas já anda de ego inflamado, como se fosse um veterano coleccionador de títulos e prémios. O editor queima pestanas a “desminar” a sua matéria. Das 100 sugeridas, aproveita apenas 30 linhas. E faz a “tradução” do texto para português. No dia seguinte, ele diz para o editor que no seu texto apenas foi alterado o título (...).
Chega o mês de Junho. O frio vai aumentar. Agora é que vai hibernar mesmo! O público espera. Como pode o leitor ter notícias sobre o bairro, a cidade e o país, se quem está mandatado para o informar, desconhece até o que se passa do outro lado da rua? Se está mais preocupado em ver fantasmas onde eles não existem? Ou se considera que, por ser jornalista, os demais seres humanos gravitam à sua volta? Prenda ao diploma, a intrepidez dos antigos profissionais, meu caro! Olhe a sua volta! Não há tréguas em jornalismo!
- Chamem o técnico, a Internet caiu!
[1] Treinador brasileiro que esteve ao serviço da selecção angolana de futebol, em 2003. Durante a vigência do seu contrato, a selecção raramente venceu até adversários reconhecidamente mais fracos.
[2] A primeira escola de jornalismo foi fundada em 1908, na Universidade de Missouri. Não obstante, a que alcançou maior fama foi a Garduate School of Journalism da Universidade de Colúmbia, cuja ideia se deve a Pulitzer. Parabéns ISPRA por tornar realidade o sonho de muitos jornalistas angolanos.


[3] MÁRQUES, Gabriel Garcia. Jornalismo: a melhor profissão do mundo.Disponível em http:/www.google.com.br.Acesso em 30 de Abr.2002
[4] Matéria mal apurada

Eu amo Angola!

Um telefonema inesperado faz reduzir a velocidade do carro e, em escassos segundos, o ponteiro desce de 100 para zero. Eram 15 horas e 30 minutos.
- Tudo bem papai?... Olha papai, eu vou torcer p’ra Angola. Não vou torcer para o Brasil.
Momentaneamente, um remoinho confunde tudo na azáfama do trânsito e seca as águas do Oceano Atlântico, que separam Angola do Brasil. Decanto as ideias, renovo, num longo suspiro, o oxigénio dos pulmões e desligo o rádio.
Era a voz da Anna Júlia que falava a partir do Bairro Benfica, da cidade de Juiz de Fora - Minas Gerais Brasil. Lá bem distante, na cidade do poeta da “Idade do Serrote”, Murilo Mendes, e do presidente Itamar Franco. Não é o Benfica de Luanda, onde coincidentemente eu vivo e que também dista cerca de 30 quilómetros do centro da cidade. O Benfica de Minas fica na Rua Presidente Juscelino Kubicheck.
Os Palancas Negras realizaram jogos amistosos antes do Dia D em que se vão defrontar com a selecção de Portugal. Acompanho os jogos pela Televisão, sofro e no final deixo-me ficar com a bandeira a bailar na mente. Vermelho, o Sangue de nossos Heróis. O Preto, a África, e o Amarelo, as riquezas de Angola.
Foram quatro jogos para a preparação dos Nossos Heróis! Resultado: uma vitória de 5:2 contra um misto de Celle (equipa alemã), 0:2 contra os argentinos, 2:3 contra os turcos e 0:1 contra os americanos. Encolho os ombros e agasalho-me no conformismo.
Mas esse telefonema reacende os ânimos e a tarde se torna colorida muito antes do crepúsculo chegar com os seus lilases. Anna Júlia nasceu no Brasil, tem 6 anos e decide torcer por Angola na Copa, apesar do Brasil também estar lá com todo o seu cordão de estrelas e favoritismo. Anna é filha de pai angolano e mãe brasileira. Ela nunca veio a Luanda, mas sente-se tão angolana, como as meninas que cantam o “ANGOLA AVANTE”.
“Infeliz é a Nação que não tem heróis” escreveu Berlot Brecht na peça Galileu Galileu. Angola tem seus heróis, que encarnam o sentimento mais profundo das suas populações, a sua alegria. Depois de trinta anos de dores e de lágrimas, as feridas abertas pelo conflito no corpo e na alma dos angolanos, ainda não sararam em 4 anos. Só a brisa do tempo encaixará cada partícula no seu lugar e cobrirá as crateras que se abriram na memória. Sabemos que é preciso caminhar, semear amor sobre dor, o bem sobre o mal. Deixemos o bálsamo do amor cicatrizar as nossas chagas.
Ainda se lembram? “Angola é e será por vontade própria…” Essa vontade persiste no sangue de angolanos e de seus descendentes. Angola já não é uma simples nação africana mergulhada numa guerra étnico-tribal, como cansamo-nos de ouvir durante anos.
Por mérito próprio, Angola está na Alemanha entre as grandes nações do mundo. É incrivelmente, a Copa 2006 decorre na Pátria de um dos maiores dramaturgos do Mundo, Brecht. O autor de “Mãe Coragem”, “O círculo de giz Caucasiano”, “Aquele que diz sim e aqueles que diz não”. O homem do Teatro Didáctico e do Distanciamento.
Angola vai enfrentar adversários potencialmente fortes. Com coragem, humildade e paciência vai conquistar o seu sonho. No campo, manterá o distanciamento do favoritismo dos adversários, pois, os jogos são resolvidos no relvado.
Pela primeira vez, Angola está no mundial, tomo finalmente consciência do tamanho do feito. A ficha cai. Eis a realidade! O país vai estar na vitrine do mundo! Quando o apito soar no Domingo toda a Nação terá o coração suspenso e a respiração entrecortada.
Geradores, rádios, pilhas, televisores e todos os meios que permitem acompanhar o espectáculo estão a ser “engatilhados”, diga-se, preparados para o grande momento. O país inteiro vai parar. Cada molécula do tecido vai contaminar-se com o clima de cada lance.
- Filha, obrigado pelo carinho! Vamos torcer juntos por Angola. Viva Angola! - E do outro lado a mesma convicção e firmeza:
- Eu amo Angola, Papai! … Viva Angola!- Viva! – Calmo, com a mente a oscilar entre a alegria e a saudade, retomo a marcha em direcção ao centro da cidade. Enquanto o carro desliza suave sobre asfalto do bairro da Samba, olho triunfante para as obras e o encanto agarra-se ao sorriso.
Viva Angola!...

Quase amor!


Esquecidos da dor, caminhava descontraído entre as paredes frias da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora-Minas Gerais Brasil, quando, perto das escadas, cruzei com um grupo de meninas que vinha da Faculdade de Pedagogia. Olhei indiscriminadamente para o cacho de cabeças e cabelos, quando da multidão saltaram olhos que cruzaram com os meus. Parei, acalmei o coração descompassado e olhei de soslaio para as estudantes, que barulhentas gargalharam descontraídas.
Suspirei e retomei a marcha amaldiçoando-me por não ter sido capaz de mandar parar aquele grupo de estudantes e retirado do seu seio a dona daqueles olhos que me encandearam, que me confrontaram. É essa timidez, é essa incerteza, que nos faz perder muitas oportunidades na vida! E quantas? Perde-se quando se tem tudo para ganhar.
Entrei na sala e os meus pensamentos perderam-se na aula sobre literatura brasileira. A professora Marisa Timponi, inspirada, falava sobre o autor da “Idade do serrote”, Murilo Mendes. Depois “A Hora da Estrela” de Clarice Lispector, Cecília Meirelles, Guimarães Rosa, Jorge Amado... Quando falou de poesia... o meu coração voltou a bater acelerado.
Pensei naquela menina, estreita, cabelos amarrados atrás da nuca, olhos cintilantes e um andar de gazela. Nos primeiros dias, ainda pensava nela, mas com o passar do tempo a menina perdeu-se entre bibliografias, fichamentos, resenhas, pautas, reportagens e edições.
Esquecia-me dos seus olhos, quando, por acaso, voltei a cruzar com ela. Vinha da sua faculdade e se dirigia para a Biblioteca Central. Com a coragem a querer fugir-me entre os dedos, saudei-a. Tudo bem? Tudo. Já está na hora? É, né! Estava aberto o canal da comunicação. Apresentei-me e falámos alguns instantes, depois partiu apressada com o rosto banhado por um sorriso morno.
Ao perde-se no horizonte, conferi, numa das páginas do caderno, o número do telefone. Ela é simpática e bonita. Uff... E rejuvenescido, engrenei a primeira a marcha.
Na tarde do dia seguinte, liguei. Ela não estava. Que desilusão! A inquietação salpicou o sono. Sonhei que eu estava com ela a passear nas margens do rio Paraibuna. Com o seu sorriso mal saído da adolescência, jogava pétalas para a corrente e animava-se em vê-las sendo levadas pela água. Acordei agitado. Não! Não! não leva! Ó pai, mas o quê que se passa? Era o Sangueve, apercebendo-se da minha aflição. Nada, pai! Esta merda está difícil! É preciso coragem, pai. E voltei a adormecer.
Noutro dia, voltei a ligar. Era ela! Trabalhava nas horas vagas numa floricultura e morava no Bairro Benfica. Vivia perfumada entre rosas, lírios, margaridas, campanhias e mal-me-queres.
Ainda me lembro. O primeiro encontro foi na Rua Santa Rita. Caminhámos calmamente e num entroncamento parámos para tomar sorvete. Era a primeira vez que ela tomava sorvete de banana. Falávamos sobre várias coisas, enquanto subíamos a Rua Halfeild, vulgo Calçadão. O relógio da Prefeitura marcava 21 horas e a temperatura era de 18 graus. Sentámo-nos num dos bancos do Parque e sonhámos. Quando a beijei, senti o seu corpo tremendo levemente. E o bálsamo do amor irrigou o cérebro e afastou as dores causadas pelos atrasos da bolsa.
O amor afinal é mágico! E na alcova de apaixonados cantávamos com Sandra de Sá a canção “Sozinho”:
Às vezes no silêncio da noite
Eu fico imaginando nós dois
E fico ali sonhando acordada, juntando
O antes, o agora e o depois (...)

terça-feira, 27 de maio de 2008

Gabela, uma paixão insaciável


Na bruma das lembranças, emergem os tempos de aluno na Escola Primária número 66, Augusto Gil, na Gabela. Os colegas e as professoras, quantos deles ainda estarão vivos?
Sei que a amável e dedicada professora Fernanda de Matos morrera anos depois de ter saído de Angola. Da Rosalina, minha paixão de infância, jamais ouvira falar. Tenho a obsessão de pensar que ela anda algures e já não se lembre do meu bilhetinho.
Eu ainda me lembro do Rui, do Marciano, do Augusto Neto, do Carlos, Pedro Acácio e sua irmã Joaquina. Juntos desde o pré-Escolar, separamo-nos apenas em 1975, quando estudávamos a 4ª classe. Tinha eu 11 anos. A maioria foi para Portugal.
Trinta e um anos depois do 25 Abril e 30 desde que deixei de ser cidadão português, finalmente viajo para Lisboa. Incrivelmente esperançoso!... Talvez reencontre um ex-colega por aí... Talvez. São esperanças envelhecidas, saudades humedecidas de um coração amolecido pelo cacimbo dos anos!

Desarmar é reforçar a confiança

Qual é o perigo de uma arma cujas balas são feitas de folhas de bananeira mascada? Sim, de bananeira!... Depois de mascada, as pequenas bolas eram introduzidas no cano feito com o caule de um tipo de árvore. Com ajuda de uma espécie de vareta de pau, a “bala” era levada até a outra extremidade do cano com cerca de 30 centímetros de comprimento. E de seguida, introduzia-se a segunda bola. Esta, empurrada pela vareta, aumentava a pressão do ar dentro do cano, expulsando a primeira bola. Como consequência, produzia-se apenas um barulhinho e libertava-se uma espécie de fumo. A bala não alcançava mais de 2 metros e o barulho não era ouvido a mais de 20 metros. Era apenas um brinquedo de crianças pobres, que não constituía perigo nenhum. Mas mesmo assim, era proibido.
Quando foi lançada pelas autoridades governamentais a campanha de entrega voluntárias de armamento na posse dos cidadãos, várias lembranças de incidentes inundaram a minha memória.
Lembro-me que até 1974, muitas pessoas desconheciam a existência de tanto tipo de armamento. Compravam fitas de câmara de ar na recauchutagem para fazerem as suas fisgas. Era com elas que caçavam beija-flores, rolas, guendentes e coles.
Na cidade, admirados, espreitavam na montra de uma loja, que comercializava pistolas e caçadeiras. Queriam ter uma arma apenas para caçar perdizes e veados. Mas uma Pressão de Ar “Diana 28” já bastava para caçar rolas e pombos-verdes lá na fazenda.
Mas tudo isso não passava de sonho, porque para comprar uma arma era preciso muito mais do que o simples desejo de possuí-la. Até simples imitações eram proibidas pelos adultos. Ai se te achassem a fazer algo que pelas características se aproximasse a uma arma verdadeira!...
Só depois de 25 de Abril de 1974, é que as crianças, jovens e adultos do meu tempo tomaram contacto com as novas armas trazidas pelos movimentos de libertação. A atracção era grande e a curiosidade fez muitas vítimas:

1. Um jovem saía da lavra com sua enxada, quando achou na berma da estrada um objecto do tamanho de um abacate. Também era verde! Por volta das 19 horas, reuniu a criançada no seu quarto para desmontarem o engenho. Este explodiu na hora matando mais de 5 pessoas. Afinal era uma granada F-1. Sangue e tecidos humanos salpicaram as paredes caiadas da sanzala da Boa-Lembrança e a dor e o luto espalharam-se em bairros do Amboim, como o da Londa, Pange, Culembe, Munguco, Condé e Boa-Entrada.
2. Certo dia, chovia, quando os jovens Tomás e António faziam uma arma de pau, vulgo “mutimba”. Fizeram a coronha e finalmente montaram o cano feito com um tubo de canalização de água. Estava pronta para o primeiro tiro. Introduziram um cartucho de G3 no cano e da janela, Tomás empunhou a arma, apontou para a montanha e disparou. O eco prolongou-se na serra da Londa. Porém a velocidade da agulha percutora acabou perfurando o cartucho explodindo com o cano. Um pedaço de ferro atingiu o ombro direito do atirador. Em poucos segundos, do lado direito do corpo, a camisa e o calção estavam cheios de sangue. O sangue jorrava como numa torneira. Aflita, a aldeia correu na chuva até ao Posto Médico do Pange. Ainda hoje, Tomás queixa-se de dores na região da omoplata.
A lista de incidentes com armamento é enorme e, com certeza, cada um dos ouvintes tem a sua.
Com a paz alcançada a 4 de Abril de 2002, tornou-se injustificada a existência de indivíduos armados sem que para tal estivessem autorizados. As armas devem ser entregues sem qualquer resistência. Então, não é a paz que todos nós queríamos? A paz não se constrói com armas escondidas atrás do armário ou debaixo da cama, nem andar com uma pistola no assento do carro.
Nem sempre estar armado é sinónimo de estar mais seguro. Certo dia, um militar que gostava de andar sempre armado foi assaltado no portão da sua casa no bairro Benfica. Eram 21 horas. Não conseguiu reagir, pois qualquer gesto seria fatal. Mais tarde, os assaltantes foram detidos pela polícia. Valeu a pena, foi melhor assim!
Por outro lado, a posse de uma arma pelo vizinho levanta sempre suspeitas e desconfianças. Nunca se sabe qual é a verdadeira intenção do outro.
Aliás, não é normal vermos gente armadas em cada esquina do bairro ou da cidade. A presença de uma arma indicia sempre uma situação de anormalidade. Entreguemos as armas e desarmemos as nossas consciências. Não é um país normal que todos os angolanos querem construir? Então, as autoridades é que têm a responsabilidade e a obrigação de garantir segurança dos cidadãos. É por aí! Desarmar reforça o amor, a confiança e a concórdia entre os cidadãos!

Ainda estou a vir!

Viva Março Mulher!

Ia e vinha da clínica pelo mesmo caminho: Avenida 21 de Janeiro e Hochi Min e vice-versa. A mãe, Conceição Francisco Durí, filha do velho Durí e da velha Ebo, na Gangula, depois de lhe ter sido diagnosticado um câncer nos intestinos debatia-se de tanta dor. Mesmo com sedativos mal conseguia pregar o olho. Pele ressequida cobria o que sobrava dos dedos, dos braços e do rosto. Enfim, tudo era apenas ossos. Aliás, fazia tempo que já não comia as refeições que as filhas e noras confeccionavam com tanto zelo.
Apesar do sofrimento, aproveitava as pequenas tréguas da dor para sorrir. Não era o mesmo sorriso, daquele tempo bom de perfumes e temperos. Tempos vividos com saúde, fartura e sonhos. Tempo em que se desconhecia com precisão, onde ficavam órgãos como o coração, o fígado e o estômago e nem se calculava quanto esforço era preciso para se descer da cama. Mas era um sorriso carinhoso, de mãe para filhos, que mesmo crescidos eram por si considerados meninos, pequenas crianças. Era um sorriso de amparo para os órfãos que logo nasceriam. À tarde, ela recusou-se ir novamente à clínica, pois sentia-se muito cansada. Então, preferiu ficar na cama da dor.
Foram seis meses de vaivém até que nesse mesmo dia, ela despediu-se. - Eram 22 horas.
- A morte chegou!... - disse com dificuldade. - Essa noite não dormirei… fiquem bem e cuidem do meu ca…ssu…le… - Soluçou, soluçou, soluçou e partiu. Era dia 2 de Março! O dia dedicado à mulher angolana.
Em Luanda, durante meio ano cruzei o Largo das Heroínas. Assim, perdi, na agitação da vida urbana, o número de vezes que me vi diante do Monumento dedicado às mulheres angolanas. Sextas e sábados vi vários noivos a jurarem fidelidade, a trocarem promessas de amor e felicidade. Momentaneamente a bruma de véus lenços e acessórios se sobrepunha ao meu drama.
Deolinda Rodrigues e companheiras remetem como ícones para o mundo feminino, onde as mulheres enfrentam a opressão, a injustiça e a discriminação.
Depois de ter seguido com o coração sobressaltado a odisseia das guerrilheiras angolanas, no Diário de Deolinda Rodrigues, compenetro-me ainda mais com a coragem, a abnegação e espírito de estoicismo demonstrados pelas mulheres que lado-a-lado com os homens se bateram pela conquista da independência de Angola.
Na sexta-feira, quando passava pelo Largo das Heroínas, atraído pelo número de automóveis que engarrafava a Avenida, parei para saber o que se passava. Quatro noivos poisam para fotografia. Aproximei-me de um deles e quis saber por que haviam escolhido aquele lugar. Depois de um sorriso frio, o noivo respondeu: - Os padrinhos escolheram… E nós gostámos. - completou a esposa num sorriso insuspeito de muita felicidade.
- Porque razão é que o dia 8 de Março é considerado feriado?
- Sei que é feriado, mas… - disse titubeante o noivo.
- Parece que morreram algumas mulheres… - salvou a noiva com prontidão!
Contrariado, agradeci e parti enquanto meditava: Quantos sabem o significado do 8 de Março?
- Em 8 de Março de 1857, as operárias de uma fábrica de têxteis de Nova Iorque entraram em greve ocupando a fábrica, para reivindicarem a redução de um horário de mais de 16 horas por dia para 10 horas. Estas operárias, que recebiam menos de um terço do salário dos homens, foram fechadas na fábrica onde, entretanto, se deflagrara um incêndio, e cerca de 130 mulheres morreram queimadas.
Em 1910, numa conferência internacional de mulheres realizada na Dinamarca, foi decidido, em homenagem àquelas mulheres, comemorar o 8 de Março como "Dia Internacional da Mulher". O dia 8 de Março é, desde 1975, comemorado pelas Nações Unidas como o Dia Internacional da Mulher.
Até chegar ao destino, cruzei-me com mulheres negras, mestiças, brancas, angolanas, estrangeiras, zungueiras, médicas, professoras, advogadas, funcionárias, desempregadas, mães, filhas, irmãs, primas, amigas e outras. Cada uma no seu passo feminino. Então compreendi, Mulher é poesia, é flor, é carinho, é amor, é mar!
Meu orgulho é ainda maior, nasci no mês da Mulher! Sou de peixes, talvez por isso goste tanto do Mar!
Ai mãe, que saudade! Sei que as mães nunca morrem. Estão algures intercedendo sempre pelos filhos. Vida, margaridas, rosas e dálias para elas!
Viva Março Mulher! …

SAPATOS CASTANHOS

Há muito haviam sonhado comprar uns sapatos. A obsessão fez com que eles morassem no pensamento, até que um dia achei uma bicha na esquina de uma rua. Uma fila pequena e menos barulhenta, pois era dos responsáveis, de então.
Da montra bem ajeitada, para a época, avistei uns sapatos. Parei e o coração palpitou. Os que usava já há muito reclamavam substituição e o sapateiro, cansado de os remendar, juntou-se aos apelos. Ora era o tacão que soltava-se, fazendo-me caminhar desequilibrado. Ora era o dedo menor que queria ver o sol e ora era a sola que queria ventilar os pés, deixando entrar a poeira.
Suspirei inconformado. Fiquei no passeio a olhar. Um olhar perdido entre rostos suados do Sumbe poeirento. E aí acontece o milagre. Um dos funcionários cumprimenta-me. Era o tio Armindo! Sai da casca e sorri de satisfação. Aponto para a montra: os sapatos! Olha os meus pés com dó e compaixão, não sorri. Pede-me que voltasse num outro dia. - Mas quando? - Dentro de dois dias.
Era terça-feira. Temia que partisse antes, mas não, a viagem estava marcada apenas para sexta. Esperei angustiado o passar das horas. Imaginei-me calçado e a gingar...
No dia previsto recebi-os. Eram castanhos reluzentes, bonitos, nº 41. No lugar dos atadores, tinha uma fita que se afivelava no lado direito do pé. Aliviado e ansioso parti para casa. No caminho, demorei o olhar sobre a paisagem, sobre as gentes e sobre as coisas como se fosse aquela a última oportunidade dada a um condenado a pena capital. E com os olhos húmidos e sapatos castanhos comecei a odisseia.
Em Luanda, eles foram meus companheiros. Na primeira semana, no Centro Instrução da Kazanga, não foi distribuída a farda nem as botas. Na ausência, eram os sapatos castanhos que me protegeram contra a areia quente da ilha. - Está formar! Está saltitar! Caiu! Para cima! Para baixo! Está rastejar! Levantou! Está correr!... Alinhou! …
O sol, o sal e a chuva. E eles suportaram tudo até que certo dia foram rendidos pelas botas de borracha. Chamavam-nas "Macambira" em alusão, talvez, à fábrica de artefactos de borracha da Vila Alice.
Os sapatos castanhos ficaram tristes sob o beliche. Pelo uso, o couro embranqueceu-se e todo ele ficou disforme, acentuando ainda mais a sua melancolia.
Olhava-os com dó, mas tive de deixá-los para trás, já não cabiam na mochila. Tinham cumprido o seu ciclo. Agora, eram as botas de borracha que marcavam o compasso, depois vieram as de cabedal a completar o uniforme verde-olivo. E assim foram-se os sapatos castanhos nº41.
A vida é um caminho. Ou seja, é como o rio que nasce na montanha e desce a encosta até ao mar-Kalunga. Caminhamos errantes para algures e na berma deixamos farrapos, esperanças, saudades, amores...ilusões. Quantas coisas que nos eram tão queridas ficaram para trás? Ai pai, mãe, filhos, amores, amigos...companheiros. Aqueles com quem partilhamos os momentos mais difíceis, dividimos um pedaço de pão, juntamos lágrimas, juramos lealdade e amizade. Aqueles com quem confidenciávamos e desabafávamos as nossas angústias e frustrações.
Sinto-me num estado de nudez progressiva. Sem os sapatos do Sumbe e sem muitos amigos que me conheceram de verdade. Começo a ser um estranho, para muitos. Toda vez que alguém que nos é querido se vai, ficamos mais pobres, mais frágeis, mais solitários, mais infelizes. Ai que saudade!...

Adeus Sumbe!

Era Outubro de 1981. Poucos minutos passavam do flash das 18 horas, quando a Emissora Regional do Kwanza Sul começou a divulgar a lista dos mancebos convocados para o Serviço Militar Obrigatório.
A longa lista estava em ordem alfabética. Sentado na cama de ferro e o ouvido colado ao aparelho, o coração batia descompassado. Abreu (…) Adelino. António (…)
A respiração tornava-se difícil. A urina pressionava. Era preciso ir a casa de banho improvisada, porém temia perder a oportunidade de ouvir o seu nome. Por isso, a opção foi a mais racional. Pegou no aparelho empoeirado e levou-o ao banheiro.
Ao tentar descarregar a bexiga, acontece o que há muito temia: "Faz-tudo!" (…) Ao invés de só urina veio também fezes líquidas.
Sai trôpego e entra no quarto de adobes no Bairro da Bumba. Não acredita no que acabara de ouvir. E agora? … Poisou o olhar sobre as paredes, onde a luz "azeite de palma" do candeeiro de petróleo se condoía com o momento. Ele parou o olhar na sua sombra achatada contra parede, deslizou sobre o fio feito guarda-roupas, onde pendurava as calças e camisas de fardo recém-compradas na Loja do Povo. Suspirou e acabou no manual de matemática da 8ª classe ainda aberto. Na véspera, exercitava sobre como resolver um sistema de equações. Vários eram os métodos: redução, comparação, substituição.
Agora sentia-se reduzido a uma palha que flutuava no ar sem qualquer suporte. A comparação parece exagerada, mas era mesmo assim que ele se sentia: coração suspenso e a alma vagueando errante sobre mares tempestuosos.
As alegrias das brincadeiras de infância, o humor, o sabor dos primeiros beijos nas esquinas do bairro foram substituídas pela angústia que o sufocava.
Saiu do quarto e do alto do morro da Bumba avistou a cidade. Estava uma noite linda, prateada pelo luar. Queria despedir-se do Sumbe, seu recanto onde escondia sonhos, amores e desamores. Mas não viu as luzes, nem percebeu o silêncio frio do cemitério e nem o ribombar das ondas do mar.
Entrou para o quarto e arrumou a pasta para a viagem. A partida aconteceria dentro de dois dias. Duas calças, uma camisola, duas camisas, escova de dentes, pasta dentífrica, um caderno e lapiseira, toalha, um lençol e chinelos.
Esticou-se na cama de barriga para cima e olhos perdidos no tecto. Imaginou-se soldado. E adormeceu. Sonhou que estava entre os demais fardado e armado, como aqueles que na véspera da independência passavam na sua aldeia a caminho da frente de combate. O cheiro da farda molhada contagiava-o.
Acordou incrédulo. Continuava a não acreditar no rumo que a sua vida tomara inesperadamente. Deixaria, o pai, a mãe, os irmãos e os amigos. Com 8ª classe por concluir, abandonaria o seu primeiro emprego na Delegação Provincial de Finanças do Kwanza Sul. O sonho de formar-se em Economia e ajudar o pai agricultor e mais tarde motorista da ETP acabou-se.
A guerra subia de intensidade. O artigo 51 da Carta das Nações Unidas jamais conhecera tamanha divulgação. Todos eram chamados a empunhar uma arma para defender a pátria. "Cada cidadão é e deve sentir-se necessariamente um soldado". Cansados de fugir às rusgas e de enfrentar às restrições que ela provocava, muitos jovens decidiram partir.
Por isso, era chegado a sua vez. Raspou o cabelo e no dia indicado partiu para o Centro de Recolha das Salinas. Não foi sequer despedir-se dos pais na Gabela, pois não queria assistir as suas lágrimas. Era o quinto irmão que partia e as notícias sobre o paradeiro destes eram escassas. Era preciso ser homem, para partir.
Apesar da decisão de partir, por dentro era só dor: "Tenho saudade da minha mãe; quando lhe penso começo a chorar; ficarei assim, ficarei assim, ai… ai minha mãe"
Das Salinas partiram de camião STAR para Luanda. Na carroçaria iam jovens imberbes como ele: Gando, Trindade, Lemos, Nunda, Van-dúnem, Chibi, Baptista, Joaquim Fortuna e outros. Na partida, cantaram e acenaram para o Sumbe, com sua gente, suas palmeiras e morros e alegrias. Ai Gabela!!!
Eram 19 horas, quando entraram na Base Naval de Luanda. A Unidade estava limpa e iluminada. Desembarcaram e aguardaram. Tudo os amedrontava. Gente forte ontem, apresentava-se hoje tímido e inseguro. "Recruta está abaixo do cão morto", gritavam os militares antigos, que rondavam as suas presas como abutres. Era preciso não se afastar do grupo.
Depois de conferidos, em fila única caminharam para o refeitório. Carapau frito com arroz era o jantar. No dia seguinte, ocorre o embarque para o Centro de Instrução da Cazanga. Mário Jorge, Olindo, Quissanguela, Adriano, Pipino, Mateus, Baptista, Paixão… eram os novos chefes. Depois viriam outros com outras patentes, outros níveis, outras exigências!
Nove da manhã de 30 Outubro de 1981. O bote de borracha sulcava as águas do Atlântico. Aué Kalunga!

BEIJO TEAMO

BEIJO TEAMO! Digito a última mensagem e desligo. Quando suspensos no espaço, um colar de lembranças cerca a mente. Lembranças de vivências, amores, sabores, odores e horrores. A memória é inusitada tal como o mecanismo do sonho.
Na bruma das lembranças, emergem os tempos de aluno na Escola Primária número 66, Augusto Gil, na Gabela. Os colegas e as professoras, quantos deles ainda estarão vivos?
Sei que a amável e dedicada professora Fernanda de Matos morrera anos depois de ter saído de Angola. Da Rosalina, minha paixão de infância, jamais ouvira falar. Tenho a obsessão de pensar que ela anda algures e já não se lembre do meu bilhetinho.
Eu ainda me lembro do Rui, do Marciano, do Augusto Neto, do Carlos, Pedro Acácio e sua irmã Joaquina. Juntos desde o pré-Escolar, separamo-nos apenas em 1975, quando estudávamos a 4ª classe. Tinha eu 11 anos. A maioria foi para Portugal.
Trinta e um anos depois do 25 Abril e 30 desde que deixei de ser cidadão português, finalmente viajo para Lisboa. Incrivelmente esperançoso!... Talvez reencontre um ex-colega por aí... Talvez. São esperanças envelhecidas, saudades humedecidas de um coração amolecido pelo cacimbo dos anos!
E cheguei a Portugal no dia da Europa. George W. Bush viajou até Moscovo para celebrar com Vladimir Putin os 60 anos do fim da II Guerra Mundial e a vitória aliada sobre os nazis. Houve lágrimas, flores e fogo de artifício.
A guerra terminou há 60 anos. Foram milhares de vítimas causadas pelo maior conflito que a história conhece. O sonho de conquista de Hitler foi derrubado. E a lição ficou para as novas gerações. "Para que o mal floresça é apenas necessário que os homens de bem nada façam". O alerta é de Edmund Burke e vem na capa do DVD que conta o percurso de Hitler. "Hitler, A ascensão do mal".
"A Ascensão do mal" começa por fazer o retrato da mente jovem e em desenvolvimento de um louco embrionário, acompanhando-o nos seus anos de formação e em como evolui no homem que explorou a nação, que apelou por um líder que pudessem seguir.
Motivado pela raiva e distorcido pelo ego, Hitler luta num mundo que acredita dever-lhe algo, seduzindo a Alemanha numa dança macabra de rendição e controlo.." Lê-se ainda na sinopse do filme.
Conservemos a história e olhemos a frente com amor.
A vida é bela. O Rio Tejo confunde-se com o mar. Admiro as obras da Expo 98 e a ponte, mas fico momentaneamente triste. Quantas reguadas apanhei para aprender onde ficava este e outros rios... Esquece. "O que dói a gente esquece, o que é bom acaba".
Mal cheguei a Lisboa, sai logo do hotel para passear desprezando o cansaço da viagem. O tempo é curto. Tenho de encomendar peças para o Opel. Vi africanos a trabalhar em obras, o trânsito e o comércio. Cansei de andar. Ademais, tive de atravessar barreiras erguidas pela EPAL. Não é a Epal de Luanda, mas a de Lisboa que jurou mudar 159 km de conduta. É dose! Voltei exausto e dormi sem jantar nem orar.
Sem jantar, porque os meus dólares foram recusados. O dólar continua em baixa e o comércio não os aceita. 100 dólares valem apenas 73,50 Euros. Solução, encurtar a lista das compras... Mas isso é complicado para quem tudo é prioridade!

Memórias gabelenses

É Maio! As noites são frias e aconchegantes. “Nene-nene-nééne, minino não chora/Mamã foi no rio/Papá foi no campo.” Hoje, Quintino acordou com a sensação de estar a viver um dia diferente. Um dia embrulhando em fraldas dos seus tempos de infância. Alguma coisa iria acontecer na sua vida? Talvez sejam apenas pressentimentos: Estes que fizeram brotar nos lábios, assobio persistente, lembrando a canção de embalar, que os tempos modernos adulteraram adaptando-a às suas próprias necessidades existenciais: “Nene-nene-nééne, minino não chora/Mamã foi no zunga/Papá foi na guerra.”
Os vizinhos olharam-no com dó: Está a ensaiar! Entre urbanos, assobiar é coisa de gente do mato. Estão cheios de preconceitos, mas à noite adormecem a olhar a televisão! São espectadores livres!
Na baixa luandense, onde edifícios multicolores cercam o horizonte, Quintino espreitou numa montra e viu as pedras negras que cercam o Amboim, sua terra Natal. No passo húmido, percorreu as lembranças. O andar no caminho sinuoso coberto de orvalho da noite. As pernas molhadas e o cheiro à perfume de flores silvestres. O aroma do café maduro. A fogueira para afugentar o frio de rachar. A resistência ao deixar a cama quente. As mãos estendidas sobre as labaredas puxando o corpo gelado.
Reencontrou na Nova Lembrança, velhos conhecidos. Velho Lourenço nasceu em 1922. Nas conversas, ele contava as coisas da sua mocidade, das farras, das partidas de futebol, que quase sempre terminavam em briga, e das conquistas amorosas.
Quando os homens de hoje nasceram, o velho já tinha cabelos brancos. Todos os dias colocava o seu banquinho defronte à porta do seu cubículo de adobes e estendia as pernas para apanharem sol. Uma forma de afugentar o reumatismo. Uma ameaça que aumentava com a idade.
Certa vez chamou-lhe. Quintino espantou-se quando ouvi ele a pronunciar o seu nome. Com passo tímido, aproximou-se até a uma distância que permitisse um recuo em segurança. Olho-o e ele estendeu os braços. Vem! Deu mais dois pequenos passos. E ele pegou-lhe na ponta dos dedos da mão direita e puxou-lhe calmamente para junto de si. Você não é o Quintino?!!!… Então, você tem medo do avô, hum?!!!
Sem saber o que responder, o recurso foi morder a ponta da camisa suja, enquanto os dedos dos pés carcomidos pelos bichos-do-pé (bitacaias) procurava a coragem entre cascas de cana.
Inspirou longamente, ergueu os olhos e viu através da íris azulada do Velho paisagens da antiga cidade da Gabela, antes feita de paredes de adobes e de pau-a-pique. Os seus olhos eram verdadeiros caleidoscópios!
Quando jovem, trabalhou como carpinteiros em várias obras que enobrecem as cidades do Novo Redondo, Porto Amboim e Gabela. Lembrava-se de tudo. Do ano em que foi construída a antiga Câmara Municipal do Amboim, a construção do Caminho de Ferro e da Sede da Companhia Angolana de Agricultura (C.A.D.A), Boa Entrada.
Do Porto Amboim, falou da rede de pesca e das ondas do mar. A guerra de Kandimba, o contrato e a perseguição aos filhos de Lumumba em 61. Quando Quintino ouviu sobre a Ilha de Luanda e das sereias apaixonadas por pescadores intrépidos, estremeceu.
Depois, com uma dose de triste na voz, o velho contou da mulher falecida e dos filhos que hoje vivem algures em Luanda.
Luanda é terra! – Disse sonhador!
Depois da independência, trabalhara como motorista da ETP (Empresa de Transportes Públicos). O camião com que transportava café do Kwanza Sul até Luanda tinha o nº 121 nas portas. Era de marca Scania 111 importados novinhos pelo recém criado Governo da República Popular de Angola.
Naqueles anos de 76, 77, 78, 79, 80… as estradas estavam boas e as viagens eram agradáveis. As estradas estavam boas? Sim! Os buracos foram surgindo com o aumento da intensidade do conflito militar.
A sua última viagem a Luanda, ao volante do Scania 111, ocorreu em 1985. A ETP faliu e ele voltou a dedicar-se aos trabalhos do campo. Andava cabisbaixo! Chorava às noites ao lembrar o seu Scania 111.
Anos se passaram desde a sua morte. Moradores do kimbo, que conheceram Luanda daquele tempo ao visitarem a capital partem impressionados. O número de carros aumentou. Agora as pessoas na capital não caminham cabisbaixo como no passado, hoje andam de nariz para cima. Por causa do lixo? Do lixo, nada! É por causa dos prédios. Estão a construir com cada prédios! Até outro dia vi um motorista que de tanto olhar na altura do prédio bateu atrás do carro que seguia à frente. Atraverssar a Avenida Marginal é dose. São carros que não acabavam mais. Com cada mulher com cabelo comprido que um gajo fica maluco! Fica maluco, mesmo! Por isso é que se vêem muitos homens falar e a rir à toa nas ruas de Luanda. Mas falam alto, gesticulam e sorriem…heheheheheehe! Ficar maluco não custa!…