quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Quando Lénine dormiu lá em casa

Pouco depois dos jovens da aldeia terem partido para o Centro de Instrução, seguiu-se-lhes o eclodir do conflito com rajadas, explosões e correrias. Isso afinal é a sério! Meu Deus, e os nossos filhos? Os aldeãos viviam sobressaltados, situação agravada pela falta de notícias.
Mesmo assim com o coração atravessado pelo espinho da incerteza, terça-feira, 11 de Novembro de 1975, festejaram a proclamação da independência dando pausa instantânea na dor que os corroía. Cantaram e choram de alegria.
Na Rádio Nacional de Angola, os noticiários lidos pelas vozes de Rui de Carvalho, Francisco Simon e Manuel Berenguel, as questões da guerra agitavam a audiência. Adicionada às preocupações com a guerra que ameaçava a vida dos filhos da aldeia e não só, havia surgido um outro fenómeno, um neologismo no vernáculo dos humildes aldeãos, mas que continha um mesmo grau de violência: o fraccionismo. Ele trouxe um cortejo de intolerâncias, revanchismos, desaparecimentos e mortos.
As pessoas viviam, sorriam, mas não como dantes, era um sorriso insípido, sem sal do humor. Eh, é assim mais!!!... Era um sorriso ajustado ao sentimento de deixar a vida ao sabor do vento que sopra a copa da mulembeira. Um sorriso com braços abertos em jeito de resignação. Vamos fazer mais como… 
Eram volta das 20 horas do dia 22 Julho de 1977. Sexta-feira. Nos ouvidos, um zumbido de longe foi se aproximando. Só minutos depois, avistou-se o feixe de luz de faróis que cortaram a noite escura. Eram dois. Todos entreolharam-se desconfiados. A aldeia acabava de jantar o seu calulu de rama de batata com funge de milho e preparava-se em seguida para dormir. Quem será a esta hora?... Aqui nunca mais passou carro desde que o CIR(Centro de Instrução Revolucionária) Comandante Arguelles mudou-se para o Planalto Central. Da marca do carro não tinham dúvida. Com essa situação que vivemos, quem será o homem que se atreve vir até à aldeia naquela hora? Isso só pode ser azar!
Meus Deus! Um mensageiro da desgraça está prestes a anunciar um novo infortúnio. Crescia a impaciência. Crescia o medo. Tremiam os pés, as mãos. Tudo. Suku, a vida é mesmo assim?!
O carro foi descendo devagar a estrada rudimentar até a ponte de paus colocados sobre riacho Lussumbo e depois com a tracção ligada atingiu a outra margem. Os fortes faróis varreram a escuridão afugentando as cabras, que dormitavam na cinza morna da fogueira do terreiro. Correram berrando atordoadas. E decifrou-se para alguns o enigma: Hoje minha vista tremia, sabia que era algo estranho que iria acontecer. Alguém lembrou-se também do uivar de lobos na noite anterior. O outro teve durante o dia o coração a palpitar. Um outro ainda foi perseguido por uma abelha teimosa durante o dia inteiro. E o pássaro preto de mau agoiro que sobrevoou a campa da velha Cauabela? E o gato que miava como se fosse uma criança recém-nascida? Hum, agora está tudo explicado: Era o sinal do mau presságio. 
Assim, com o coração suspenso, esperaram minutos sofridos até o carro chegar no terreiro. E mal parou, o motorista baixo, vestindo garbosamente farda verde e botas castanhas, apagou as luzes e saltou gritando pelo nome do seu pai.  Assustados, todos fugiram nas bananeiras, inclusive o cachorro Pouca-Sorte. Surpreendido o visitante gritou: sou eu Minguito, não fujam! Sou vosso filho, não sou Kazumbi.   Ame Ulo! Estou aqui!
Claro, depois de notícias desencontradas sobre a sua morte numa emboscada na Nhareia, os aldeãos, apesar dos apelos reiterado, não acreditaram facilmente. Mantiveram-se escondidos até que o visitante voltou a acender os faróis do veículo e a colocar-se bem afrente deles para que fosse reconhecido: Pai, tira também o chapéu! Pediu uma voz trémula. Era a da sua mãe. Ao que se seguiu uma explosão de alegria e de lágrimas. Atatewe, Meus Deus! Omóla uangue, meu filho! atatewe ongueva!... Meu Deus, a saudade!
Depois dos abraços demorados, abriu a porta traseira do carro, para que fossem retiradas as malas. Eram duas, uma pequena e outra grande. A primeira, foi fácil ser transportada por um único homem, a segunda, foram requeridas duas pessoas. A mãe com o candeeiro iluminando o caminho dirigiu-se à capoeira que ficava a 20 metros da casa principal. Gritou por ajuda para agarrar o galo, mas as crianças estavam curiosas em ver o que continham as malas. Na pressa, alcançou a primeira galinha a aproximar-se da porta.
Mano veio. Quem sabe, talvez sairia alguma roupa ou sapatos para estriar na escola. O pai recebeu um casaco sobretudo e umas botas de cabedal que tinham o interior coberto por algodão. Ficou felicíssimo. Não sabia o que esperava os seus pezinhos no tempo de calor. A mãe ganhou uma blusa e uma saia com flores. Todos ficaram contentes e procuram exibir-se como aprendizes de modelos na passarela improvisada na sala.
Depois do jantar, regado por uma garrafa de Vodga, mergulharam na conversa. Falaram da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, dos Kolkoses, Bolcheviques e Mencheviques, da industrialização e da electrificação. Falava inspirado da abra “Um passo a frente e dois a rectaguarda”, da “Doença infantil do esquerdismo no Comunismo. Depois pulou para os shoppings. A Coca-cola e a roupa jeans só eram comercializadas em lojas diplomáticas para estrangeiros. Por quê? São produtos do imperialismo! Falou do metro de Moscovo. Todos exclamaram! Comboio que passa debaixo da terra? Não é possível. Coitados, na memória dos aldeãos, só tinham o comboio do Caminho de Ferro do Amboim que funcionava graças a força da lenha. E o visitante explicava, explicava. Falou da assistência médica e medicamentosa, das escolas e da organização das cidades e das Forças Armadas. Kremilin! E imitava a marcha do soldado soviético. Elogiou o passo firme, o queijo levantado e o alinhamento. Para exemplificar, formou uma secção onde se destacava o pai e os irmãos. E deu vozes de Comando: Firme! Direita Volver. Esquerda Volver! Caiu! Apenas ele próprio cumpriu a ordem. Todos ficaram a sorrir. Ainda podes se aleijar! Olha, o comunismo é um exemplo a seguir por todos os povos livre do imperialismo. O internacionalismo proletários. O Manifesto de Marx e Engls. A luta contra a Mais-Valia. O partido do novo tipo de LÉNINE.
Mas filho, o vinho também é no cartão da loja do povo como aqui? Sim. Ah, então isso não vai dar certo! Pai, essa é a visão dos reaccionários. Dos saudosistas! São todos agentes do imperialismo! É preciso que os operários conquistem o poder e implantem a ditadura do proletariado. Por que? Porque os operários foram os mais explorados, e na sequência são eles mais disciplinados e organizados. Filho, eu vi o quanto custou desenvolver Angola. Gerir um país não é fácil. Por exemplo, ontem o antigo tractorista da Fazenda Boa Esperança esteve aqui a pedir a sua lavra de volta. Mas eu comprei-lhe a lavra em 1963, quando à noite foi apanhado a roubar café na fazenda do branco. É com este que estamos a contar desenvolver a economia? Isso ainda vai da confusão. Meu filho, ouve bem o que estou a te dizer: os nguetas um dia vão voltar e vão querer receber as suas casas e fazendas que hoje ocupamos. Pai, tem de entender que entramos numa nova fase, o da revolução. Agora quem vai mandar são aqueles que antes eram os explorados. Haverá igualdade entre os homens.
Em seguida, ergueu o olhar para perguntar à plateia sedenta. Vocês conhecem Lénine? Não?!!!... Lénine é o grande revolucionário que dirigiu o partido dos bolcheviques à conquista do poder aos tzares.
Diante da ignorância da plateia, o orador então lembrou-se, pedindo a um dos irmãos que fosse ao quarto buscar o busto de Lénine que trazia na mala. Na pressa de voltar para a sala, não soube procurar com cuidado. Foi aí que o busto de mármore de V.I. Lénine com cerca de 20 cm de altura e 10 de raio, saiu da mala raspando-lhe a tíbia e caindo em cheio sobre o dedo maior do pé. Este deixou cair o candeeiro e correu aos gritos até á sala.  O dedo foi atingido por um dos vértices do busto abrindo uma ferida de onde brotava muito sangue… O candeeiro tombado, por um tris não ateou fogo à mala. 
Os adultos aflitos e com as mãos à cabeça, levantaram-se da mesa. Mas o que é que foi? Mano, foi uma pedra que saiu da mala e me caiu no pé! O Lénine? Sim! Foi isso mesmo que me aleijou no dedo. Olha só. E mostrava o dedo do pé ensanguentado.  
Foi preciso, quatro pontos para estancar a hemorragia. O militar tinha experiência em primeiros socorros. Foi assim que o então adolescente, nunca mais se esqueceu daquela noite e da imagem do líder dos bolcheviques Vladimir Ilitch Ulianov Lénine. Sempre que cruzava com um velho careca lembrava-se de Lénine. Depois, em Dezembro de 1977, quando ouviu o discurso do Dr Agostinho Neto: “sob o olhar silencioso de Lénine...” Já sabia de quem se tratava. 
O busto talvez ainda continue lá no Amboim jogado num dos cantos da casa de adobe. Com seu olhar silencioso quiçá, resista ao tempo agreste e ao salalé.

Que adolescente imaginaria que aquele velho careca o acompanharia em quase toda a vida. E hoje, passados mais de 30 anos, o então adolescente ao questionar o mano ainda militar ele apenas sorri e diz: foi uma Mais-Valia!