segunda-feira, 13 de maio de 2013

Busca de uma identidade




SEGUNDA-FEIRA: Faz um ano que procuro encontrar-me comigo mesmo, mas em vão. Minhas mãos, minhas pernas, meu rosto, tudo estranho. Nem mesmo olhando ao espelho me reconheço. Meu pensamento titubeia entre o ser e o não ser. Entre o antônimo e o sinónimo. Sou metáfora do iceberg! Na encruzilhada, vacilo entre a esquerda e a direita. Procuro a minha identidade…! Que perfume estranho!
TERÇA-FEIRA: Finalmente ontem, consegui escapar-me do quimbanda. Que horror! Mais de um mês que não tomo banho. Meu corpo tem o cheiro de folhas e raízes.  Esta gente devia merecer um tratamento especial, pois é extremamente empreendedora. Sabe retirar dinheiro do bolso do pacato cidadão sem anunciar assalto. São psicólogos das aldeias globais. Aldeias? Agora também das grandes cidades. O quimbanda modernizou-se a ponto de ter tradutor para português, francês e inglês, cobra em dólar, tem cartão multicaixa, cartão-de-visita, Internet, portfólio e anda em jeep zero 0 km. Pudera, com tanta clientela de luxo!... Incrível, quimbanda também usa entre os seus amuletos a bíblia como um pastor!
QUARTA-FEIRA: Vagueio sem destino. Dizem que estou a enlouquecer. Também essa era a opinião do quimbanda. Disse que tudo começou, quando um gato preto apareceu no telhado lá de casa naquela noite em que acordei sobressaltado. O gato miava como criança faminta. Segundo ele, se esse gato não fosse caçado seria um dilúvio em toda a família.  E para apanhar o gato pediu 5 mil dólares e uma cesta básica, onde incluiria uma lata grande de leite Nido selada. Mandou colocar a lata de leite no tecto lá de casa e pediu que a trouxesse de volta uma semana depois. Qual foi o espanto ao abrir a lata! O espanto foi ver um gato inflamado a sair do seu interior e com uma corda atando-lhe o pescoço. Era preto. Não acreditei! Pediu mais 5 mil dólares para remover todas as desgraças lá de casa. Foi aí que perdi a cabeça! Uma cabeçada no olho esquerdo deixou-lhe inconsciente. A seguir agarrei no pescoço do tradutor afrancesado e obrigue-o a ingerir uma mistura que havia preparado para mim. Minutos depois, caiu exausto sobre a possa de fezes e vómitos. Seria eu!
QUINTA-FEIRA: Falo ao vento, mas falar ao vento na cidade não é mesma coisa que na aldeia. As palavras faladas ao vento na aldeia não se perdem no ar, são captadas pelos deuses, nossos antepassados… São estes que intercediam por nós. Agora, o pôr-do-sol perdeu o seu colorido e as palmeiras a sua valsa vespertina. As perdizes pararam de esgaravatar o solo, deixaram-se enlear pela mornes da terra e as garças taciturnas evitam o horizonte.  
Sabe por que o sonho acaba na melhor parte? Não?! Porque o destino espera que você acorde para vida e realiza o teu sonho, pois não serão os outros a fazerem-no por ti. A única razão para escrever-te é porque preciso falar, desabafar, libertar-se do fardo do silêncio condoído, antes que este petardo exploda aqui no peito e pare o palpitar inquieto do coração. Mas tenho medo! Mas como dizes muito bem no seu mural, se não encontras solução para determinado problema, pode ser que você seja parte dele. Desculpa se lhe vou incomodar, talvez encontre nesse gesto o pretexto para continuar a seguir adiante a solo mesmo com os solavancos do caminho. Temo melindra-lo com as minhas conjecturas, equívocos, conflitos e cobranças, quando você barganha tempo ao sono e ao sossego familiar para dar conta dos imperativos que os seus afazeres lhe impõe. Eu tenho medo de não me entenderes, porque o passar dos anos talvez cristalizem o pensamento - estigmatizem o reiterar dos dias comuns. Mas o medo é antigo. Desde pequeno que era proibido chorar ou gritar à noite, pois dizia-se, sua voz podia ser levada pela alma de outro mundo. E onde fica o outro mundo, ninguém sabia ao certo. Acreditava-se apenas.
Olhava enviusado, quando a voz áspera do velho Quitumba Kiazumba gritava da sua casa cercada pela floresta . Toda a aldeia estremecia e calava-se o choro de crianças rabugentas. Ele era o medo, ninguém ousava desafia-lo.
– Está a ouvir o tutú? Ninguém se ria do filósofo da aldeia, cujas tiradas ficaram na memória de hoje: O mundo é feito de coisas que estão em permanente movimento, dizia com sua voz de trovão… Ainda me lembre!... Certa vez, o filósofo foi ao Posto Médico da roça de café, pois tinha febres e dores em todo corpo. Pediram-lhe que trouxesse fezes e urina em dois frasquinhos para serem analisadas. Contrariado recebeu os dois fraquinhos vazios antes usados para Penicilina. Caminhou indeciso até a casa de banho. Tudo estava asseado, era a primeira vez que entrava para uma casa de brancos. E ficou a olhar intrigado para a sanita e o bidé. Os tamanhos eram diferentes. Um era alto, parecendo um pequeno pilão, instrumento multiuso, que servia para triturar o milho, as folhas para fazer kizaca, moer o feijão para o quitandé (Feijão descascado e posteriormente pisado e cozido, Nkalé). É multiuso que até já vi pilão a caminho do Kilamba!...
Velho Quitumba, depois de vários minutos de indecisão, optou pelo bidé. Era mais largo. E cometeu a maior desgraça. Os excrementos espalharam-se pelo chão e o cheiro inundou o ambiente. Aflito abriu a porta e correu alucinado em direcção à aldeia. Jurou jamais voltar. Ao verem-lhe chegar com o pânico estampado no rosto, justificou-se dizendo que havia encontrado um corta-cabeças no caminho do hospital. Queria chupar o seu sangue. E contava com todos os pormenores. Toda a aldeia acreditou.
Dias depois, a doença imobilizou-lhe na cama. Aflito chamou pelo enfermeiro da aldeia que o aconselhou procurar um médico. Ele recusou-se a voltar para o Posto Médico, optando em ficar a dormir na sua cama de paus. Doente dorme, doença não! Certa noite, chamado de urgência, o enfermeiro encontrou-o a gemer de febre.
- Têm que analisar as tuas fezes e a urina para ver se tens infecção de parasitose ou de bactérias.
-Bataria? – Disse entre os dentes, enquanto gemia!
- Bactéria!
- Sukuama! Pessoa também tem bataria!
O enfermeiro preferiu o silêncio. Não adiantava insistir. Aplicou-lhe analgésicos para baixar a febre.
- Vais ao hospital e lá, depois das análises, irás saber se o resultado é positivo ou negativo. Mas trate de levar o produto. Se for positivo…
- Brututu?... E se for pujitivo?
- Se for positivo, quer dizer que tens alguma infecção.
- Pujitivo, está male?... - Uá-ué, nga fu, quer dizer que tem infenção na bataria?!!! – e ficou ainda mais intrigado.
Mas forçado pela enfermidade, dia seguinte, partiu cedinho em direcção ao Posto Médico, levando no saco de pano dois recipientes. Ao chegar apresentou-os ao enfermeiro de serviço. Questionado, disse que vinha da parte do enfermeiro Ferreira e que tencionava fazer exames. E exibiu as duas garrafas de refrigerante Mission, uma cheia de urina e outra de fezes. O enfermeiro deu um grito e o velho deixou cair os vasilhames. A urina e as fezes espalharam-se na sala, afugentado os doentes que aguardavam atendimento.
Envergonhado partiu e jamais voltou ao hospital. Daí, sempre buscou a cura nas plantas do campo.
- O branco é complicado! Faz as coisas só p’ra ele! Nós também podemos fazer o que é nosso. - E foi assim que ele se tornou em quimbandeiro.
Me perdi. Desculpa, amigo! Pois, dizia: Queria falar-te. Os anos estão a passar e a vida se esvai no ritmo do tempo. Um temporal de ansiedades nos persegue e abate. Viu? É a memória ainda povoada de estórias do mato e de pretos rotos que sobem as palmeiras a correr. Bebem marufo e aguardente de milho e dormem felizes, despertando tranquilos sob a sinfonia do chilrear de pássaros. Dizem que são matumbos porque não são civilizados como os da cidade. Qual cidade? Perdi a fronteira.
SEXTA-FEIRA: Estou algures na estrada de Catete. Carros velozes sobem e descem. Quem estará no seu interior?! Deve ter alguém com coração. Estico o braço em vão. Ninguém olha p’ra mim. Boleia na carrinha Datsun, Bedford ou Peugeot foi com o colono. Caridade emigrou.
SÁBADO: Ardinas vendem jornais aos condutores. Aumentaram o número de jornais, mas nunca mais os li. Ando demasiado ocupado com o meu destino! Tenho 500 dólares que retirei do bolso do casaco do quimbanda. Mas do jeito esfarrapado como me apresento, ninguém vai acreditar nem em mim nem no meu dinheiro. Maluco não pode ter dinheiro! Serei logo assaltado pelo vendedor.
DOMINGO: Cheguei, mas ninguém está em casa. Foram todos à igreja. Não tenho forças para subir o muro. É preciso ter fé! Adormeço e espero, mas a mão está no bolso do dinheiro. Suku, suku, suku!...