SEGUNDA-FEIRA:
Faz um ano que procuro encontrar-me comigo mesmo, mas em vão. Minhas mãos,
minhas pernas, meu rosto, tudo estranho. Nem mesmo olhando ao espelho me
reconheço. Meu pensamento titubeia entre o ser e o não ser. Entre o antônimo e
o sinónimo. Sou metáfora do iceberg! Na encruzilhada, vacilo entre a esquerda e
a direita. Procuro a minha identidade…! Que perfume estranho!
TERÇA-FEIRA:
Finalmente ontem, consegui escapar-me do quimbanda. Que horror! Mais de um mês
que não tomo banho. Meu corpo tem o cheiro de folhas e raízes. Esta gente devia merecer um tratamento
especial, pois é extremamente empreendedora. Sabe retirar dinheiro do bolso do
pacato cidadão sem anunciar assalto. São psicólogos das aldeias globais.
Aldeias? Agora também das grandes cidades. O quimbanda modernizou-se a ponto de
ter tradutor para português, francês e inglês, cobra em dólar, tem cartão
multicaixa, cartão-de-visita, Internet, portfólio e anda em jeep zero 0 km. Pudera,
com tanta clientela de luxo!... Incrível, quimbanda também usa entre os seus
amuletos a bíblia como um pastor!
QUARTA-FEIRA:
Vagueio sem destino. Dizem que estou a enlouquecer. Também essa era a opinião
do quimbanda. Disse que tudo começou, quando um gato preto apareceu no telhado
lá de casa naquela noite em que acordei sobressaltado. O gato miava como
criança faminta. Segundo ele, se esse gato não fosse caçado seria um dilúvio em
toda a família. E para apanhar o gato
pediu 5 mil dólares e uma cesta básica, onde incluiria uma lata grande de leite
Nido selada. Mandou colocar a lata de leite no tecto lá de casa e pediu que a
trouxesse de volta uma semana depois. Qual foi o espanto ao abrir a lata! O
espanto foi ver um gato inflamado a sair do seu interior e com uma corda
atando-lhe o pescoço. Era preto. Não acreditei! Pediu mais 5 mil dólares para
remover todas as desgraças lá de casa. Foi aí que perdi a cabeça! Uma cabeçada
no olho esquerdo deixou-lhe inconsciente. A seguir agarrei no pescoço do
tradutor afrancesado e obrigue-o a ingerir uma mistura que havia preparado para
mim. Minutos depois, caiu exausto sobre a possa de fezes e vómitos. Seria eu!
QUINTA-FEIRA:
Falo ao vento, mas falar ao vento na cidade não é mesma coisa que na aldeia. As
palavras faladas ao vento na aldeia não se perdem no ar, são captadas pelos
deuses, nossos antepassados… São estes que intercediam por nós. Agora, o pôr-do-sol
perdeu o seu colorido e as palmeiras a sua valsa vespertina. As perdizes pararam
de esgaravatar o solo, deixaram-se enlear pela mornes da terra e as garças
taciturnas evitam o horizonte.
Sabe por que o sonho acaba na melhor parte? Não?!
Porque o destino espera que você acorde para vida e realiza o teu sonho, pois
não serão os outros a fazerem-no por ti. A única razão para
escrever-te é porque preciso falar, desabafar, libertar-se do fardo do silêncio
condoído, antes que este petardo exploda aqui no peito e pare o palpitar
inquieto do coração. Mas tenho medo! Mas como dizes muito bem no seu mural, se
não encontras solução para determinado problema, pode ser que você seja parte
dele. Desculpa se lhe vou incomodar, talvez encontre nesse gesto o pretexto
para continuar a seguir adiante a solo mesmo com os solavancos do caminho. Temo
melindra-lo com as minhas conjecturas, equívocos, conflitos e cobranças, quando
você barganha tempo ao sono e ao sossego familiar para dar conta dos imperativos
que os seus afazeres lhe impõe. Eu tenho medo de não me entenderes, porque o
passar dos anos talvez cristalizem o pensamento - estigmatizem o reiterar dos
dias comuns. Mas o medo é antigo. Desde pequeno que era proibido chorar ou
gritar à noite, pois dizia-se, sua voz podia ser levada pela alma de outro
mundo. E onde fica o outro mundo, ninguém sabia ao certo. Acreditava-se apenas.
Olhava enviusado, quando
a voz áspera do velho Quitumba Kiazumba gritava da sua casa cercada pela
floresta . Toda a aldeia estremecia e calava-se o choro de crianças rabugentas.
Ele era o medo, ninguém ousava desafia-lo.
– Está a ouvir o
tutú? Ninguém se ria do filósofo da aldeia, cujas tiradas ficaram na memória de
hoje: O mundo é feito de coisas que estão em permanente movimento, dizia com
sua voz de trovão… Ainda me lembre!... Certa vez, o filósofo foi ao Posto
Médico da roça de café, pois tinha febres e dores em todo corpo. Pediram-lhe
que trouxesse fezes e urina em dois frasquinhos para serem analisadas. Contrariado
recebeu os dois fraquinhos vazios antes usados para Penicilina. Caminhou
indeciso até a casa de banho. Tudo estava asseado, era a primeira vez que
entrava para uma casa de brancos. E ficou a olhar intrigado para a sanita e o
bidé. Os tamanhos eram diferentes. Um era alto, parecendo um pequeno pilão,
instrumento multiuso, que servia para triturar o milho, as folhas para fazer
kizaca, moer o feijão para o quitandé (Feijão descascado e posteriormente
pisado e cozido, Nkalé). É multiuso que até já vi pilão a caminho do
Kilamba!...
Velho Quitumba, depois
de vários minutos de indecisão, optou pelo bidé. Era mais largo. E cometeu a
maior desgraça. Os excrementos espalharam-se pelo chão e o cheiro inundou o
ambiente. Aflito abriu a porta e correu alucinado em direcção à aldeia. Jurou
jamais voltar. Ao verem-lhe chegar com o pânico estampado no rosto, justificou-se
dizendo que havia encontrado um corta-cabeças no caminho do hospital. Queria
chupar o seu sangue. E contava com todos os pormenores. Toda a aldeia
acreditou.
Dias depois, a doença
imobilizou-lhe na cama. Aflito chamou pelo enfermeiro da aldeia que o
aconselhou procurar um médico. Ele recusou-se a voltar para o Posto Médico, optando
em ficar a dormir na sua cama de paus. Doente dorme, doença não! Certa noite,
chamado de urgência, o enfermeiro encontrou-o a gemer de febre.
- Têm que analisar as
tuas fezes e a urina para ver se tens infecção de parasitose ou de bactérias.
-Bataria? – Disse
entre os dentes, enquanto gemia!
- Bactéria!
- Sukuama! Pessoa
também tem bataria!
O enfermeiro preferiu
o silêncio. Não adiantava insistir. Aplicou-lhe analgésicos para baixar a
febre.
- Vais ao hospital e
lá, depois das análises, irás saber se o resultado é positivo ou negativo. Mas
trate de levar o produto. Se for positivo…
- Brututu?... E se
for pujitivo?
- Se for positivo,
quer dizer que tens alguma infecção.
- Pujitivo, está
male?... - Uá-ué, nga fu, quer dizer que tem infenção na bataria?!!! – e ficou
ainda mais intrigado.
Mas forçado pela
enfermidade, dia seguinte, partiu cedinho em direcção ao Posto Médico, levando
no saco de pano dois recipientes. Ao chegar apresentou-os ao enfermeiro de
serviço. Questionado, disse que vinha da parte do enfermeiro Ferreira e que
tencionava fazer exames. E exibiu as duas garrafas de refrigerante Mission, uma
cheia de urina e outra de fezes. O enfermeiro deu um grito e o velho deixou
cair os vasilhames. A urina e as fezes espalharam-se na sala, afugentado os
doentes que aguardavam atendimento.
Envergonhado partiu e
jamais voltou ao hospital. Daí, sempre buscou a cura nas plantas do campo.
- O branco é
complicado! Faz as coisas só p’ra ele! Nós também podemos fazer o que é nosso. -
E foi assim que ele se tornou em quimbandeiro.
Me perdi. Desculpa,
amigo! Pois, dizia: Queria falar-te. Os anos estão a passar e a vida se esvai
no ritmo do tempo. Um temporal de ansiedades nos persegue e abate. Viu? É a
memória ainda povoada de estórias do mato e de pretos rotos que sobem as
palmeiras a correr. Bebem marufo e aguardente de milho e dormem felizes, despertando
tranquilos sob a sinfonia do chilrear de pássaros. Dizem que são matumbos porque
não são civilizados como os da cidade. Qual cidade? Perdi a fronteira.
SEXTA-FEIRA:
Estou algures na estrada de Catete. Carros velozes sobem e descem. Quem estará
no seu interior?! Deve ter alguém com coração. Estico o braço em vão. Ninguém
olha p’ra mim. Boleia na carrinha Datsun, Bedford ou Peugeot foi com o colono. Caridade
emigrou.
SÁBADO:
Ardinas vendem jornais aos condutores. Aumentaram o número de jornais, mas
nunca mais os li. Ando demasiado ocupado com o meu destino! Tenho 500 dólares
que retirei do bolso do casaco do quimbanda. Mas do jeito esfarrapado como me
apresento, ninguém vai acreditar nem em mim nem no meu dinheiro. Maluco não
pode ter dinheiro! Serei logo assaltado pelo vendedor.
DOMINGO:
Cheguei, mas ninguém está em casa. Foram todos à igreja. Não tenho forças para
subir o muro. É preciso ter fé! Adormeço e espero, mas a mão está no bolso do
dinheiro. Suku, suku, suku!...