quarta-feira, 13 de outubro de 2010

MEMÓRIA DOS 35 ANOS DE ANGOLA

Um breve e arrepiado suspiro marca o corte difuso entre o real e sonho. Na minúcia do desdobrar dos óculos para melhor enxergar a palavra escrita, o ultimar do reordenamento das vivências translúcidas nas nervaduras da memória.
Um olhar esticado na picada do tempo e bem lá no fundo está o seu berço, uma aldeia ornamentada pelo verde dos cafezais, banhada pelo rio Mazungue e cercada por montanhas. É lá onde nasceu e cresceu correndo tresloucado atrás de borboletas coloridas.
A notícia sobre o desabrochar dos Cravos da Primavera de Abril de 1974 foi recebida tardia e por poucos, mas não sem alegria. Em grupo, os colonos agora falavam baixinho e olhavam à volta desconfiados! Falavam de um tal Spínola, que usava camuflado e um monóculo para ver o novo mundo em convulsão! Uma nova cena: MFA, Costa Gomes, Mário Soares, Almirante Rosa Coutinho e General Silva Cardoso!
Os nativos, a maioria composta por camponeses e operários humildes, cobriram-se de alguns receios no raiar de um novo dia. - Talvez seja algo efémero! Pois não acreditavam na queda do edifício de Salazar e Caetano. E na sua ignorância secular, antes de adormecer, rezaram e procuraram esquecer a inquietação da véspera. Queriam seguir seu caminho, como o rio Mazungue faz conformado o seu trajecto.
Mas o amanhecer cobriu os olhos de surpresa. Nas paredes da cidade, em letras vermelhas, encontraram escrito: Viva o MPLA! Abaixo o Colonialismo! A Luta Continua! A Vitória é Certa”. Semana seguinte, vieram os cartazes e panfletos: Agostinho Neto, o de boné e óculos, Savimbi, o de barbas, Holden Roberto, o de óculos escuros. A partir dos posters pregados nas paredes, os seus olhos seguiam os transeuntes.
As bandeiras e os comícios e a euforia geral. A delegação do MPLA - UM SÓ POVO! UMA SÓ NAÇÃO - instalou-se no bairro da Aricanga, numa casa cercada de cafezeiros.
A UNITA - KWACHA ANGOLA - instalou-se defronte à antiga oficina de automóveis do Amboim e ao lado do Bar Estrela, no Bairro Cateco, a uns metros do quartel do exército português. A FNLA - ANGOLA OYÉÉ – Liberdade e Terra! Primeiramente, escolheu a pedra da cadeia e depois as instalações do quartel colonial. Tempos de resgate da auto-estima, tempos de sonhos e de liberdade! Cada um escolhera o seu. Cada um o seu critério.
Alguns jovens ingressaram nas FAPLA (MPLA) e foram receber treino no CIR “Sangue do Povo”, no Assango. Queriam ser kwembas, SOLDADOS, mas os treinos eram duros. O alinhamento da formatura era feito com tiros. Era preciso coragem! As canções militares mobilizavam as aldeias! “Quero, quero ser soldado ai-iáiá…quero ser soldado! Com esta farda, aprender a marchar e com as armas lutaremos contra a opressão!”
Os programas radiofónicos conquistam audiência. “De longe ouvi aquele nome inesquecível dos filhos de Angola...Valódia, Valódia tombou em defesa do povo angolano...” assim cantava Santocas. Morre também o comandante Nelito Soares! A dor desce país adentro. A morte do Russo, o homem das motos da Gabela, comove a população local. Russo foi atropelado intencionalmente por um colono, quando estava estacionado. Aiué, Pedro Benje!
E finalmente o que muitos temiam, o tiroteio. Arma G3 e a cartucheira cobrindo a cintura, a Pepechá (arma de disco) e as Sterlings. E as explosões das bazukas! E as correrias!
Na guerra da Gabela, do lado do MPLA, falava-se da presença do Comandante “Incansável”, Sidónio, António Paulino, Urbano de Castro, David Zé e Sabata. Os heróis usavam farda castanha e chapéu à cowboy. As crianças já não eram meninos, viraram pió e imitavam os adultos.
– Arrastou comandó, bate o pé esquerdo! Uma travagem!...
A moda era montar comités e ter mutimbas, armas de madeira, para defender a aldeia. E os acidentes não faltaram. Tomás, um adolescente de 15 anos, feriu-se gravemente na omoplata direita, depois de ter feito um disparo com a sua arma artesanal. A velocidade do percutor perfurou o cartucho e os gases da pólvora fizeram explodir a câmara de combustão. Um estilhaço da chapa atingiu o adolescente. Chovia, mas o sangue salpicou o capim do caminho. Os acidentes multiplicaram-se e enlutaram famílias. Um jovem achou uma granada F1, quando regressava da lavra. Posto em casa, reuniu a criançada no seu quarto, para desmontarem o objecto estranho. Ele e algumas crianças morrem na explosão. Sangue e tecidos humanos salpicaram as paredes caiadas do quarto. A dor estendeu-se a bairros como Culembe, Manda-fama, Pange, Munguco, Nova-Ereira e Londa. Era prenúncio da guerra generalizada que faria jorrar ainda muito mais sangue de irmãos angolanos. Os portugueses, a maioria partiu desesperada deixando tudo para trás! Depois um novo medo chega do Sul. Os sul-africanos invadem o território nacional e traçam Luanda como meta. Passam pela Huíla, Benguela, Lobito e Novo Redondo! As populações recuam aflitas na esperança de salvar a vida! Os invasores atingem as margens do rio Keve ou Kuvo e sentem pela primeira vez o sabor acre de ser alvo da pontaria alheia.
Era Outubro de 1975. Faltavam escassos dias para o 11 de Novembro, o dia da proclamação da independência! Subia a intensidade dos bombardeamentos! Mas os canhões de 88 milímetros dos blindados AML-90 não conseguiram dobrar a defesa da outra margem do rio e às zero horas de 11 de Novembro, as populações do Pange reuniram-se todas defronte ao Comité de Acção para hastear a bandeira Nacional. Era preciso esticar um fio feito antena para melhorar a recepção do sinal da Rádio Nacional.
Aguardaram ansiosos sob o descompasso do coração, até ouvirem entre os ruídos o Hino de Angola Independente. No Norte, a FNLA fez a sua festa. No Planalto, a Unita também! Cada um cantara o seu hino. Não era o “Heróis do Mar!”
No Amboim, era o “Angola Avante!” E a bandeira vermelha e preta foi subindo. A emoção seguia a mesma frequência! Ambos foram subindo, subindo até atingirem o ponto mais alto do mastro de bambu. Abraços, gritos e lágrimas. Tiros feitos foguetes riscaram a noite nebulosa e a alegria perpassou Angola de norte a sul! Estamos independentes! Viva a Dipanda ! Viva a liberdade!
Ao amanhecer, olhos sonolentos insistiam em não dormir e a voz rouca esforçava-se em gritar mais alto ainda, talvez quisesse buscar no grito a bênção dos deuses ancestrais pela tamanha proeza: a independência tão sonhada, tão desejada, tão sofrida e tão esperada por gerações sucessivas de angolanos!
Tinha 12 anos, o seu pé pequeno calçava botas nº 42 e um uniforme verde cobria o corpo franzino. Empunhava uma arma de madeira e guardava um sonho: o de ser um dia militar e poder defender a pátria independente! 11 de Novembro de 2010! Trinta e cinco anos depois, eis-nos aqui corporalizando o devaneio de infância numa Angola que ser quer em paz e reconciliada! E ao percorrer o país, o perfume da paisagem faz gerar novos sonhos! E um sorriso morno banha o rosto: Angola é um país lindo! Vamos caminhar de mãos dadas para construir a nossa felicidade. O horizonte é o espelho de novos desafios!
- Valeu a pena a independência?
- Sim! Quem duvida, desconhece o sabor da palavra Dignidade!