terça-feira, 18 de novembro de 2008

Canto da saudade

As "Memórias precoces" já estão na rua. É sempre grande a satisfação de partilhar a nossa obra com os leitores. Aos olhos do público, elas são mais adultas do que nos parecem, talvez por isso sejam precoces. No dia do lançamento, eu estava entre dois ilustres Deputados à Assembleia Nacional: Roberto de Almeida, que assinou o prefácio, e o Deputado e jornalista Adelino de Almeida, que assumiu a apresentação do livro. Meu amigo, o sociólogo Paulo Carvalho, que fez o posfácio ficou na plateia como os treinadores na bancada incentivando-me, empurrando-me para o golo.
Eu estava naturalmente feliz, radiante! Era uma ocasião sublime... Faltaram muitos amigos, mas nas clareiras avistei uma enorme multidão. E ouvi as canções que exaltavam à coragem e ao patriotismo. Eram vozes de gente intrépida que marchou, lutou e muitas delas tombou no campo de honra para que Angola fosse hoje um país livre, independente e pacificado.
Faltavam 3 dias para o 11 de Novembro de 2008. Dia seguinte, domingo, parti sozinho para o Sumbe e ao avistar os cenários descritos na obra, chorei. Chorei de saudade, pelos ausentes, de gratidão, pelos que sacrificaram as suas vidas em defesa da pátria, e de alegria por poder trazer à ribalta gente humilde perdida na poeira da luta de todos os dias.
No dia de lançamento, Sábado, 8 de Novembro, choveu em vários bairros periféricos de Luanda. O mesmo ocorreu no Sumbe e Gabela no dia 11 de Novembro. Incrível, até a natureza não quis ficar indiferente!

sábado, 15 de novembro de 2008

A auréola de Roque Santeiro

Na pequena sala, amontoava-se toda a vizinhança e as luzes cintilavam na tela. As donas de casa rabujavam devido as pessoas que se assentavam sobre os espaldares das poltronas deixando estragos na modesta sala.
Os aparelhos de TV contavam-se pelo número de antenas no tecto das residências. Era luxo! No interior do país, a guerra subia de intensidade e o número de vítimas crescia a cada emboscada ou ataque. O país agitava-se na incongruência de um conflito que teimava em fazer de refém o destino de milhares de angolanos.
Na sequência, as cidades recebiam novos inquilinos rurais, que encontram na TV o que os contos lhe proporcionavam em suas aldeias de origem. Percorreram quilómetros a pé porque queriam fugir da morte. Deixaram para traz as plantações e as suas aldeias. Comprar quizaka, banana, abacate, rama-de-batata e mandioca era coisa que os entristecia. Os dias e as noites eram melancólicos, perturbados por lembranças e saudades. A saudade é um sentimento avassalador e antropófago. Devora, definha energias humanas. Estavam na cidade, mas o pensamento vivia algures no campo. A omnipresença é um exercício que quebra os limites da lucidez. Para não se estar a deriva, era preciso algo. Algo que justificasse a continuação da vida mesmo com os solavancos da estrada.
Então, à noite, Roque Santeiro animava os espectadores. Estes seguiam as cenas em silêncio. As ruas ficavam desérticas e os encontros amorosos retardados ou adiados por conta do episódio. No bairro Rocha Pinto, uma residência foi assaltada por meliantes e o proprietário, natural do município da Quibala, foi assassinado. A viúva e os filhos levados para algures. Os bandidos chegaram com um camião e carregaram tudo, mas a vizinhança não se apercebeu, porque era hora do Roque Santeiro.
A telenovela Roque Santeiro era um drama realista que repousava o seu enredo na problematização social. Fez de problemas sociais o tema central do debate. Durante o dia, não se falava em outra coisa.
A extravagante viúva Porcina, com os seus vestidos brilhantes, o arrogante Sinhôzinho Malta, com sua pulseira de ouro, cativavam a audiência. Todos torciam para que Roque Santeiro voltasse à Asa Branca e curasse os seus moradores dos males de que padeciam. Mas a sua presença iria levar à falência os negócios da cidade construída a custa do mito. Roque volta, mas não fica em Asa Branca, porém ficou na memória colectiva de espectadores. Cada um murmurava uma nova canção:
“Dizem que Roque Santeiro/Um homem debaixo de um sonho/Ficou defendendo o seu canto e morreu/Mas sei que é ainda vivente/ Na lama do rio corrente/Na terra onde ele nasceu/.
Mal a telenovela terminou, Luanda encheu-se de suas medalhas. Os mercados Roque Santeiro, Asa Branca, Pousada do Sossego… Rua da Lama… Zé das Medalhas.
O mercado Roque Santeiro é a maior bolsa de negócios de Angola. A aura do mito perdura e a profecia de Beato Salú, confunde-se com realidade. O pai de Roque Santeiro, bem na ponta do desenlace da trama antecipou-se à realidade.
“Ano de 1990, vai haver muito pasto e pouco rasto. E só um pastor e só um rebanho. No ano de 1991, vai haver muito chapéu e pouca cabeça. No ano de 1992, a água vai virar sangue e vai chover uma grande chuva de estrelas. Aí vai ser o fim do mundo”.
Em 31 de Maio de 1991, foi rubricado em Bicesse, Portugal, o Acordo de Paz entre o Governo angolano e o movimento rebelde, a Unita (União para a Independência Total de Angola) dirigida por Jonas Malheiro Savimbi.
Em Outubro de 1992, depois das primeiras eleições multipartidárias ganhas pelo partido governista, MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), a Unita recusou os resultados e reiniciou o conflito, o mais violento que a história angolana registou. Milhares de angolanos, que acreditavam na paz, tombaram nas ruas das cidades atingidos pelo fogo cruzado.
O barro sagrado das margens do rio ainda mitiga a dor das chagas. Roque Santeiro é gracejo na melancolia, estrela na noite, sinal vital, sobrevivência, esperança!

Cada um com sua âncora!

Era uma tarde de domingo. Brisa amena assinala a normalidade do ambiente e transmite um ar de romantismo próprio do sol ponte. O que destoava da paisagem era apenas uma coisa. Um homem, feito espantalho, cambaleando de lá para cá e de cá para lá.
Em sofrimento, caminhava errante no Calçadão da Avenida Marginal, enquanto atletas do fim-de-semana procuravam desentorpecer os músculos, afugentado o miúdo reumatismo ou a obesidade agasalhada pelas mordomias da modernidade.
O homem batia-se contra a lei da gravidade. Após um tropeço no seu próprio dese-quilíbrio, correu em meia haste e abraçou um poste de iluminação pública. Azar! Era o mesmo poste que, na madrugada, havia amparado um Nissan evitando que o mesmo se atirasse ao mar. Olhou ao redor com desconfiança e retomou o caminho murmurando em revolta seus pensamentos confusos.
Um casal de namorados afastou-se assustado e olhou de soslaio para o homem alto e fragilizado pelo álcool. No silêncio, uma inquietação persiste: como um pai de família, vestido de calça social, camisa branca e casaco, podia apresentar-se publicamente naquele estado deplorável. Talvez viesse de algum pedido!...
No rosto, bem perto do sobrolho, trazia uma escoriação, com certeza, uma marca deixada por alguma queda. Nas imediações do BNA, aproximou-se de um banco. Parecia um coqueiro sob a ventania. Com olhos fechados, jogou a vergonha ao relento e urinou. Os pedestres olharam-no com reprovação.
- Ua kambe ó sonhi!...
Uma canoa deslizava na água da baía. Dois adolescentes remavam calmamente. Viram um cardume e jogaram a âncora. O ruído afugentou garças que naltura procuravam o repasto para o jantar. Acordei pela mesma razão das aves.
Peguei ainda a âncora a meio do arco que descrevia. Para quem nasce no interior a âncora é algo que só vem nos livros. Não tem tanta serventia como o que lhe é atri-buído pelos homens do mar. E o pensamento agarra-se à âncora.
A âncora pode ser um ferro, uma pedra... A função é prender a embarcação para que ela não ande a deriva e o seu tamanho depende da dimensão do navio. Lembro-me! Certa vez, perante uma tempestade, um barco perdeu a âncora, quando esta ficou presa numa rocha. Quebrou-se o fio e a embarcação acabou encalhada na praia. Soçobrou. Jamais conseguiu voltar ao mar. Resultado, esventrado dos seus equipamentos, o casco ficou abandonado e entregue à oxidação, transformando-se em abrigo para espécies anfíbias como tartarugas e caranguejos. Hoje, só se percebe a sua presença, através de um ferro da haste feita cruz que sobressai entre as areais do Ambriz assinalando o local do “naufrágio”.
Um jovem apaixonado abriu a janela e jogou-se do edifício. Não viu as rosas que desabrochavam no jardim! Então, a âncora é importante! A âncora pode ser também uma ideia, um sentimento, uma pessoa, uma aldeia, uma cultura, um país! Um grande amor, uma grande paixão, Angola! Uma razão de viver. Quem não tem âncora se perde. Agarre a sua âncora e nunca perca o foco, permaneça no rumo certo.