ESTAMOS
NA CIDADE DE JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS, BRASIL, 1995. Nossa Senhora Aparecida era um bairro de
gente simples entre as quais muitos brancos, negros e mestiços. Funcionários,
operários de construção civil, vendedores e empregados. Algumas ruas eram
asfaltadas e outras calçadas de pedra. A casa onde moravam ficava no término
dos autocarros daquela linha. A cerca de 20 metros havia duas cantinas e um
orelhão (Telefone público). Nossa Senhora Aparecida fazia fronteira com os
bairros Santa Rita, Santa Cândida e Nossa Senhora de Lourdes. Era muita Santa à
sua volta.
No anexo com o Cativa, também vivia um
capitão da Força Aérea chamado Maurício. Um luandense do Bairro Rangel. Mais
tarde, vieram a saber que ele era apenas tenente.
Estamos zerados, dizia o Cativa. Estamos
zebrados! E sorriam,sorriam... Na primeira semana, Wandalika pegou, a título de
empréstimo, em 100 dólares e deu-os a cada um deles. A alegria havia retornado.
Dois dias depois, voltaram a pedir mais 100 dólares. Acedeu desconfiado. Semana
seguinte, pediram mais 100 dólares. Recusou. Deu-lhes apenas 50. Entretanto, os
gastos eram compreensíveis, pois os seus companheiros tentavam atenuar a dívida
do aluguer, melhorar a dieta alimentar, comprar roupa e diminuir o cansaço
andando de autocarro.
Do frango haviam passado para carne, sobretudo de fígado de vaca. Voltaram a
gargalhar ao lembrar os esqueletos de frango.
Mas no mealheiro, o nível de segurança
baixava. Em menos de um mês Wandalika estava apenas com 300 dólares. O ponteiro
estava no vermelho. Para quem não sabia quando receber o reforço de verba, a
situação era realmente aflitiva.
Como o quadro degradava-se a cada dia,
decidiu manter um encontro com os companheiros de caserna para a revisão da situação:
Camaradas! Nós somos militares e temos que buscar soluções. Mas que soluções?
Somos comandos desembarcados na profundidade do inimigo. A nossa missão é de
alto risco. Não temos como receber apoio da rectaguarda, devemos contar com os
nossos próprios meios e capacidade de sobrevivência. Temos de aprender a
pescar!
O Cativa acendeu um cigarro com
indisfarçável insatisfação pelo diálogo que para si até aí era incompreensível.
Wandalika esperou alguns segundos até a conclusão da primeira baforada e prosseguiu
com maior acutilância: como vos disse, a guerra em Angola não deixa espaço para
vislumbrarmos um futuro de paz dentro de pouco tempo. As tropas do Governo
desdobram-se no terreno para rechaçar o inimigo, mas a situação vai ainda durar
algum tempo. Sabem que o inimigo está bem municiado! Caxito, Catete, são zonas
de guerra! Não temos como receber o dinheiro da bolsa dentro de pouco tempo.
Temos de resistir. E o Primeiro-ministro Marcolino Moco?... Todo o esforço vai
ser canalizado para a guerra. Esta é a verdade.
A impaciência dos interlocutores
empurrou-o precipitadamente para a parte principal do plano. Vamos procurar uma
igreja! O falso capitão sorriu numa alta gargalhada, levantou-se, abriu a porta
e saiu, fechando-a atrás de si com alguma violência. A porta fechou-se e no
caminho que os unia apareceram pedras que cresceram e chegaram a pedregulhos
como as que existem no rio Mazungue. Para ele, Wandalika era um doido, um puro
exibicionista!
Quem olha em várias direcções não
avança! Por isso concentrou o fogo em Cativa. Queria convencê-lo. Fica calmo,
nós vamos conseguir manobrar. Os chineses dizem que a arte da guerra é a arte
da manobra. Vamos à igreja!
O seu companheiro Cativa manifestava-se
relutante, argumentando que era católico desde os tempos de criança no
município do Bailundo e não protestante. E ele contra-atacava. Quando a vida
está em perigo, as soluções devem ter em conta, primeiro, a sobrevivência. Lá
vais seguir todos os movimentos de levantar, fechar os olhos, assentar e
ajoelhar. Fica calmo! Mas porquê que você não quer ir na Católica? Até fui
baptizado pela Católica, mas ainda era criancinha, apenas tinha dois anos.
Então, vamos lá! Nem pensar! A última vez que pus os meus pés numa Igreja
Católica foi em 1993. Nem imaginas! O quê? Fomos corridos pelo padre!... Hum,
fizeram o quê! Sabes que depois de 1975, após a proclamação da independência
quase todos os jovens aderiram ao ateísmo científico. Aliás, era condição para
ser-se militante do MPLA, mais tarde transformado em Partido do Trabalho. Todos
queriam ser marxistas e leninistas! Depois do Muro de Berlim ruir em 9 de
Novembro de 1989, criando um mundo unipolar… O sol se pôs e órfãos da Guerra
Fria tacteavam nas trevas, buscando a luz! Então em 1993, familiares de um
militar falecido queriam que se celebrasse uma missa em sua memória na Igreja
Sagrada Família.
A plateia era composta maioritariamente
por militares garbosamente fardados exibindo braços musculosos. São dos
debraços e cangurus! Quando começou a missa
foi uma desgraça! O diabo desceu? Não, nenhum deles sabia rezar o Pai-Nosso e
nem Ave-Maria. Nem ninguém sabia cantar as canções. O Padre sentiu-se solitário diante do cadáver
desconhecido. E enfurecido começou a amaldiçoar os presentes: o que é que
vieram fazer aqui? São vocês que quando vivos não se preocupam em ir à igreja e
fazem-no apenas na hora da morte. Vocês são oportunistas. A Igreja não é loja,
onde se compra a fé. De nada adianta pedir a Deus que receba a alma de alguém
que em vida foi carrasco do Senhor.
Sem terminar a
missa, pegamos no caixão e saímos apressados. O padre tinha razão. As pessoas
só procuram a igreja quando têm problemas. Quando estão encravados. Eu não vou
mudar de igreja agora. Epá Cativa, então vai me fazer companhia para eu não ir
sozinho. Vou pensar no teu caso!...
Agora mais
calmo. É preciso ter fé, amigo! A fé move montanhas. Como assim? Olha, quando
estava internado no Hospital Militar depois de ter accionado uma mina durante
uma emboscada no Lucusse… Quando? Na
altura da ofensiva de Mavinga em 1989. Pensei! Pensaste o quê? Pensei que fosse
em Cangamba? Ah, ya durante a guerra de Cangamba eu ainda estava na Academia
Inter-Armas… Yá, conheci um capitão que havia fracturado a coluna num acidente.
Era domingo e caíram com o camião de marca Ural num precipício na Serra da
Leba. Possa, aquilo é perigoso! Ele
estava internado há mais de um ano e não saía da cama. Estava todo magro e as
costas cheias de chagas. Todas as necessidades fisiológicas fazia-as na cama.
Chorava todas as noites ao pensar na mulher e nos filhos que ele já não via há
bastante tempo… É triste! Olha, ele chorava mais nos dias de visita. Tem razão!
Quando estás internado ou preso e não recebes visita, ficas maluco. Família faz
falta! E o que é que aconteceu com o capitão? Ok. Certo dia, ele chamou-me todo
radiante. Wandalika! Wandalika vem só ver! Peguei na muleta canadiana e fui. E
ele dizia todo feliz, eu ainda vou andar! Estás a ver o meu dedo do pé?... Yá!...
Está a mexer! Aproximei-me até a um
palmo do referido pé, mas não via nada se mexendo. E ele? Ele insistia, estás
ver, chefe? Qual era a sua patente? 2º tenente. E ele te chamava chefe? Epá… E
depois? Yá! Olhei-lhe nos olhos e comecei a pular de alegria. O capitão
Kupessala vai andar! … vai andar!... vai andar! E ele ficou ainda mais feliz.
Nunca o tinha visto tão alegre!
Quando se tem fé
as coisas acontecem. E o capitão voltou a andar? Não sei, porque eu tive de
sair, deixei a cama para doentes mais graves, sobretudo os que chegavam da
frente de combate. E não eram poucos! O que me substituiu era um jovem tenente,
que tinha o corpo cheio de queimaduras! Será que o camião Gaz 66 em que seguia
pegou fogo? Não! Disse que durante o avanço em direcção a Mavinga um obus
anti-tanque passou bem perto dele e a farda pegou fogo. Possa, teve sorte!
Aquela brincadeira é bem quente e é capaz de derreter um tanque, já
imaginaste?!... Nem sei se ele sobreviveu! A vida militar é dura! Yá. Só o
patriotismo obriga a tamanhos sacrifícios.
Olha, falando
nisso. Certo dia chegou uma ambulância que trouxe muitos feridos. Vinham da
frente. Um artilheiro estava a sangrar dos ouvidos. O sangue jorrava como se
fosse de hemorragia provocada por uma bala. Segundo informações,foi preciso
retirá-lo da peça à força, pois a Unidade já estava a retirar-se, mas ele e o
municiador continuavam a disparar e no meio daquela poeira. Eles não viam, nem
ouviam mais nada. Apenas resistiam!. À volta da peça viam-se corpos de
companheiros tombados. Um ferido pedia para os camaradas o liquidarem. Não
queria ser capturado. O outro estava com as duas pernas fracturadas, mas pediu
munições e granadas para se defender. E suspiraram quase juntos. Angola tens
heróis de verdade. Homens corajosos e valentes. Eles merecem o nosso respeito!
O reconhecimento de toda a Nação! Tem o túmulo dos soldados desconhecidos. Yá,
nunca entendi bem isso. Como soldado desconhecido, não tinham nome? Epá, é
universal!