quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Martelo ou bigorna


Às 7 horas e 30 minutos cruzou com um estudante, meia altura e uma sacola artesanal à tiracolo. Caminhava tranquilo. Ao cruzarem no corredor, cumprimentou-o. Você é da onde? Sou de África, o Continente Berço. Sabia que você era gringo! HEHEHEH Você é do continente onde se dorme muito, né cara? ehehehehe Como assim? Uai, berço não é para bebé dormir?! Não tem nada a ver! Viste o jogo da Nigéria? Perdeu por infantilismo. Vocês são muito emocionados e a emoção é coisa de criança! Hehehehehe… Falando sério. A África é um berço em permanente convulsão. Aquilo é um caos federal, percebe? Já viste o formato, parece uma pistola, cujo gatilho está no Golfo da Guiné, o cão na Somália! A mira está em Moçambique e o cano na África do Sul. Heheheh! Wandalika olhou-o desconfiado… Será mercenário! O célebre francês Bob Denard tinha varias ramificações no mundo, até na América Latina! Amigo, na África não há um único país que possa ser apontado como exemplo de desenvolvimento e de boa governação. A África do Sul! Ok! Talvez seja o único e porque andou lá a mão de ferro. Vais ver o que vai acontecer dentro de alguns anos! Tirando a terra de Mandela, cara, o resto é paisagem, é leões, antílopes e macacos correndo na paisagem! Hehehehe… Não se esquece que a escravatura e o tráfico de escravos afectaram profundamente os africanos. Fomos nós quem construiu a felicidade das Américas, sobretudo no Brasil! Isso teve reflexo no desenvolvimento do continente Negro. Quê isso cara?! Os vossos reis é que eram ambiciosos, pois trocavam os seus filhos com produtos da indústria europeia: pedaços de espelho, cachaça! Foi tudo ambição! Ao invés de se unirem estavam vidrados no negócio. É lógico, os europeus não são bobos, aproveitaram! Aproveitaram roubar a nossa riqueza! Cara, deu moleza, apanha! Na vida ou se é martelo ou bigorna. ................................................

Extrato do livro "Aventura de um estudante Angolano no estrangeiro" apresentado pela Editora Mayamba em Agosto de 2012 em Luanda.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

PONTEIRO NO VERMELHO



 
ESTAMOS NA CIDADE DE JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS, BRASIL, 1995. Nossa Senhora Aparecida era um bairro de gente simples entre as quais muitos brancos, negros e mestiços. Funcionários, operários de construção civil, vendedores e empregados. Algumas ruas eram asfaltadas e outras calçadas de pedra. A casa onde moravam ficava no término dos autocarros daquela linha. A cerca de 20 metros havia duas cantinas e um orelhão (Telefone público). Nossa Senhora Aparecida fazia fronteira com os bairros Santa Rita, Santa Cândida e Nossa Senhora de Lourdes. Era muita Santa à sua volta.

No anexo com o Cativa, também vivia um capitão da Força Aérea chamado Maurício. Um luandense do Bairro Rangel. Mais tarde, vieram a saber que ele era apenas tenente.

Estamos zerados, dizia o Cativa. Estamos zebrados! E sorriam,sorriam... Na primeira semana, Wandalika pegou, a título de empréstimo, em 100 dólares e deu-os a cada um deles. A alegria havia retornado. Dois dias depois, voltaram a pedir mais 100 dólares. Acedeu desconfiado. Semana seguinte, pediram mais 100 dólares. Recusou. Deu-lhes apenas 50. Entretanto, os gastos eram compreensíveis, pois os seus companheiros tentavam atenuar a dívida do aluguer, melhorar a dieta alimentar, comprar roupa e diminuir o cansaço andando de autocarro[2]. Do frango haviam passado para carne, sobretudo de fígado de vaca. Voltaram a gargalhar ao lembrar os esqueletos de frango.

Mas no mealheiro, o nível de segurança baixava. Em menos de um mês Wandalika estava apenas com 300 dólares. O ponteiro estava no vermelho. Para quem não sabia quando receber o reforço de verba, a situação era realmente aflitiva.

Como o quadro degradava-se a cada dia, decidiu manter um encontro com os companheiros de caserna para a revisão da situação: Camaradas! Nós somos militares e temos que buscar soluções. Mas que soluções? Somos comandos desembarcados na profundidade do inimigo. A nossa missão é de alto risco. Não temos como receber apoio da rectaguarda, devemos contar com os nossos próprios meios e capacidade de sobrevivência. Temos de aprender a pescar!

O Cativa acendeu um cigarro com indisfarçável insatisfação pelo diálogo que para si até aí era incompreensível. Wandalika esperou alguns segundos até a conclusão da primeira baforada e prosseguiu com maior acutilância: como vos disse, a guerra em Angola não deixa espaço para vislumbrarmos um futuro de paz dentro de pouco tempo. As tropas do Governo desdobram-se no terreno para rechaçar o inimigo, mas a situação vai ainda durar algum tempo. Sabem que o inimigo está bem municiado! Caxito, Catete, são zonas de guerra! Não temos como receber o dinheiro da bolsa dentro de pouco tempo. Temos de resistir. E o Primeiro-ministro Marcolino Moco?... Todo o esforço vai ser canalizado para a guerra. Esta é a verdade.

A impaciência dos interlocutores empurrou-o precipitadamente para a parte principal do plano. Vamos procurar uma igreja! O falso capitão sorriu numa alta gargalhada, levantou-se, abriu a porta e saiu, fechando-a atrás de si com alguma violência. A porta fechou-se e no caminho que os unia apareceram pedras que cresceram e chegaram a pedregulhos como as que existem no rio Mazungue. Para ele, Wandalika era um doido, um puro exibicionista!

Quem olha em várias direcções não avança! Por isso concentrou o fogo em Cativa. Queria convencê-lo. Fica calmo, nós vamos conseguir manobrar. Os chineses dizem que a arte da guerra é a arte da manobra. Vamos à igreja!

O seu companheiro Cativa manifestava-se relutante, argumentando que era católico desde os tempos de criança no município do Bailundo e não protestante. E ele contra-atacava. Quando a vida está em perigo, as soluções devem ter em conta, primeiro, a sobrevivência. Lá vais seguir todos os movimentos de levantar, fechar os olhos, assentar e ajoelhar. Fica calmo! Mas porquê que você não quer ir na Católica? Até fui baptizado pela Católica, mas ainda era criancinha, apenas tinha dois anos. Então, vamos lá! Nem pensar! A última vez que pus os meus pés numa Igreja Católica foi em 1993. Nem imaginas! O quê? Fomos corridos pelo padre!... Hum, fizeram o quê! Sabes que depois de 1975, após a proclamação da independência quase todos os jovens aderiram ao ateísmo científico. Aliás, era condição para ser-se militante do MPLA, mais tarde transformado em Partido do Trabalho. Todos queriam ser marxistas e leninistas! Depois do Muro de Berlim ruir em 9 de Novembro de 1989, criando um mundo unipolar… O sol se pôs e órfãos da Guerra Fria tacteavam nas trevas, buscando a luz! Então em 1993, familiares de um militar falecido queriam que se celebrasse uma missa em sua memória na Igreja Sagrada Família.

A plateia era composta maioritariamente por militares garbosamente fardados exibindo braços musculosos. São dos debraços e cangurus[3]! Quando começou a missa foi uma desgraça! O diabo desceu? Não, nenhum deles sabia rezar o Pai-Nosso e nem Ave-Maria. Nem ninguém sabia cantar as canções. O Padre sentiu-se solitário diante do cadáver desconhecido. E enfurecido começou a amaldiçoar os presentes: o que é que vieram fazer aqui? São vocês que quando vivos não se preocupam em ir à igreja e fazem-no apenas na hora da morte. Vocês são oportunistas. A Igreja não é loja, onde se compra a fé. De nada adianta pedir a Deus que receba a alma de alguém que em vida foi carrasco do Senhor.

Sem terminar a missa, pegamos no caixão e saímos apressados. O padre tinha razão. As pessoas só procuram a igreja quando têm problemas. Quando estão encravados. Eu não vou mudar de igreja agora. Epá Cativa, então vai me fazer companhia para eu não ir sozinho. Vou pensar no teu caso!...

Agora mais calmo. É preciso ter fé, amigo! A fé move montanhas. Como assim? Olha, quando estava internado no Hospital Militar depois de ter accionado uma mina durante uma emboscada no Lucusse… Quando?  Na altura da ofensiva de Mavinga em 1989. Pensei! Pensaste o quê? Pensei que fosse em Cangamba? Ah, ya durante a guerra de Cangamba eu ainda estava na Academia Inter-Armas… Yá, conheci um capitão que havia fracturado a coluna num acidente. Era domingo e caíram com o camião de marca Ural num precipício na Serra da Leba. Possa, aquilo é perigoso!  Ele estava internado há mais de um ano e não saía da cama. Estava todo magro e as costas cheias de chagas. Todas as necessidades fisiológicas fazia-as na cama. Chorava todas as noites ao pensar na mulher e nos filhos que ele já não via há bastante tempo… É triste! Olha, ele chorava mais nos dias de visita. Tem razão! Quando estás internado ou preso e não recebes visita, ficas maluco. Família faz falta! E o que é que aconteceu com o capitão? Ok. Certo dia, ele chamou-me todo radiante. Wandalika! Wandalika vem só ver! Peguei na muleta canadiana e fui. E ele dizia todo feliz, eu ainda vou andar! Estás a ver o meu dedo do pé?... Yá!... Está a mexer! Aproximei-me  até a um palmo do referido pé, mas não via nada se mexendo. E ele? Ele insistia, estás ver, chefe? Qual era a sua patente? 2º tenente. E ele te chamava chefe? Epá… E depois? Yá! Olhei-lhe nos olhos e comecei a pular de alegria. O capitão Kupessala vai andar! … vai andar!... vai andar! E ele ficou ainda mais feliz. Nunca o tinha visto tão alegre!

Quando se tem fé as coisas acontecem. E o capitão voltou a andar? Não sei, porque eu tive de sair, deixei a cama para doentes mais graves, sobretudo os que chegavam da frente de combate. E não eram poucos! O que me substituiu era um jovem tenente, que tinha o corpo cheio de queimaduras! Será que o camião Gaz 66 em que seguia pegou fogo? Não! Disse que durante o avanço em direcção a Mavinga um obus anti-tanque passou bem perto dele e a farda pegou fogo. Possa, teve sorte! Aquela brincadeira é bem quente e é capaz de derreter um tanque, já imaginaste?!... Nem sei se ele sobreviveu! A vida militar é dura! Yá. Só o patriotismo obriga a tamanhos sacrifícios.

Olha, falando nisso. Certo dia chegou uma ambulância que trouxe muitos feridos. Vinham da frente. Um artilheiro estava a sangrar dos ouvidos. O sangue jorrava como se fosse de hemorragia provocada por uma bala. Segundo informações,foi preciso retirá-lo da peça à força, pois a Unidade já estava a retirar-se, mas ele e o municiador continuavam a disparar e no meio daquela poeira. Eles não viam, nem ouviam mais nada. Apenas resistiam!. À volta da peça viam-se corpos de companheiros tombados. Um ferido pedia para os camaradas o liquidarem. Não queria ser capturado. O outro estava com as duas pernas fracturadas, mas pediu munições e granadas para se defender. E suspiraram quase juntos. Angola tens heróis de verdade. Homens corajosos e valentes. Eles merecem o nosso respeito! O reconhecimento de toda a Nação! Tem o túmulo dos soldados desconhecidos. Yá, nunca entendi bem isso. Como soldado desconhecido, não tinham nome? Epá, é universal!

 



[1] Texto extraído do seu livro com o titulo “Aventura de um estudante angolano no estrangeiro”
[2] Ônibus, para os brasileiros e camioneta, para os portugueses
[3] Tipo de exercício que imitava o movimento dos cangurus