quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Quando Lénine dormiu lá em casa

Pouco depois dos jovens da aldeia terem partido para o Centro de Instrução, seguiu-se-lhes o eclodir do conflito com rajadas, explosões e correrias. Isso afinal é a sério! Meu Deus, e os nossos filhos? Os aldeãos viviam sobressaltados, situação agravada pela falta de notícias.
Mesmo assim com o coração atravessado pelo espinho da incerteza, terça-feira, 11 de Novembro de 1975, festejaram a proclamação da independência dando pausa instantânea na dor que os corroía. Cantaram e choram de alegria.
Na Rádio Nacional de Angola, os noticiários lidos pelas vozes de Rui de Carvalho, Francisco Simon e Manuel Berenguel, as questões da guerra agitavam a audiência. Adicionada às preocupações com a guerra que ameaçava a vida dos filhos da aldeia e não só, havia surgido um outro fenómeno, um neologismo no vernáculo dos humildes aldeãos, mas que continha um mesmo grau de violência: o fraccionismo. Ele trouxe um cortejo de intolerâncias, revanchismos, desaparecimentos e mortos.
As pessoas viviam, sorriam, mas não como dantes, era um sorriso insípido, sem sal do humor. Eh, é assim mais!!!... Era um sorriso ajustado ao sentimento de deixar a vida ao sabor do vento que sopra a copa da mulembeira. Um sorriso com braços abertos em jeito de resignação. Vamos fazer mais como… 
Eram volta das 20 horas do dia 22 Julho de 1977. Sexta-feira. Nos ouvidos, um zumbido de longe foi se aproximando. Só minutos depois, avistou-se o feixe de luz de faróis que cortaram a noite escura. Eram dois. Todos entreolharam-se desconfiados. A aldeia acabava de jantar o seu calulu de rama de batata com funge de milho e preparava-se em seguida para dormir. Quem será a esta hora?... Aqui nunca mais passou carro desde que o CIR(Centro de Instrução Revolucionária) Comandante Arguelles mudou-se para o Planalto Central. Da marca do carro não tinham dúvida. Com essa situação que vivemos, quem será o homem que se atreve vir até à aldeia naquela hora? Isso só pode ser azar!
Meus Deus! Um mensageiro da desgraça está prestes a anunciar um novo infortúnio. Crescia a impaciência. Crescia o medo. Tremiam os pés, as mãos. Tudo. Suku, a vida é mesmo assim?!
O carro foi descendo devagar a estrada rudimentar até a ponte de paus colocados sobre riacho Lussumbo e depois com a tracção ligada atingiu a outra margem. Os fortes faróis varreram a escuridão afugentando as cabras, que dormitavam na cinza morna da fogueira do terreiro. Correram berrando atordoadas. E decifrou-se para alguns o enigma: Hoje minha vista tremia, sabia que era algo estranho que iria acontecer. Alguém lembrou-se também do uivar de lobos na noite anterior. O outro teve durante o dia o coração a palpitar. Um outro ainda foi perseguido por uma abelha teimosa durante o dia inteiro. E o pássaro preto de mau agoiro que sobrevoou a campa da velha Cauabela? E o gato que miava como se fosse uma criança recém-nascida? Hum, agora está tudo explicado: Era o sinal do mau presságio. 
Assim, com o coração suspenso, esperaram minutos sofridos até o carro chegar no terreiro. E mal parou, o motorista baixo, vestindo garbosamente farda verde e botas castanhas, apagou as luzes e saltou gritando pelo nome do seu pai.  Assustados, todos fugiram nas bananeiras, inclusive o cachorro Pouca-Sorte. Surpreendido o visitante gritou: sou eu Minguito, não fujam! Sou vosso filho, não sou Kazumbi.   Ame Ulo! Estou aqui!
Claro, depois de notícias desencontradas sobre a sua morte numa emboscada na Nhareia, os aldeãos, apesar dos apelos reiterado, não acreditaram facilmente. Mantiveram-se escondidos até que o visitante voltou a acender os faróis do veículo e a colocar-se bem afrente deles para que fosse reconhecido: Pai, tira também o chapéu! Pediu uma voz trémula. Era a da sua mãe. Ao que se seguiu uma explosão de alegria e de lágrimas. Atatewe, Meus Deus! Omóla uangue, meu filho! atatewe ongueva!... Meu Deus, a saudade!
Depois dos abraços demorados, abriu a porta traseira do carro, para que fossem retiradas as malas. Eram duas, uma pequena e outra grande. A primeira, foi fácil ser transportada por um único homem, a segunda, foram requeridas duas pessoas. A mãe com o candeeiro iluminando o caminho dirigiu-se à capoeira que ficava a 20 metros da casa principal. Gritou por ajuda para agarrar o galo, mas as crianças estavam curiosas em ver o que continham as malas. Na pressa, alcançou a primeira galinha a aproximar-se da porta.
Mano veio. Quem sabe, talvez sairia alguma roupa ou sapatos para estriar na escola. O pai recebeu um casaco sobretudo e umas botas de cabedal que tinham o interior coberto por algodão. Ficou felicíssimo. Não sabia o que esperava os seus pezinhos no tempo de calor. A mãe ganhou uma blusa e uma saia com flores. Todos ficaram contentes e procuram exibir-se como aprendizes de modelos na passarela improvisada na sala.
Depois do jantar, regado por uma garrafa de Vodga, mergulharam na conversa. Falaram da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, dos Kolkoses, Bolcheviques e Mencheviques, da industrialização e da electrificação. Falava inspirado da abra “Um passo a frente e dois a rectaguarda”, da “Doença infantil do esquerdismo no Comunismo. Depois pulou para os shoppings. A Coca-cola e a roupa jeans só eram comercializadas em lojas diplomáticas para estrangeiros. Por quê? São produtos do imperialismo! Falou do metro de Moscovo. Todos exclamaram! Comboio que passa debaixo da terra? Não é possível. Coitados, na memória dos aldeãos, só tinham o comboio do Caminho de Ferro do Amboim que funcionava graças a força da lenha. E o visitante explicava, explicava. Falou da assistência médica e medicamentosa, das escolas e da organização das cidades e das Forças Armadas. Kremilin! E imitava a marcha do soldado soviético. Elogiou o passo firme, o queijo levantado e o alinhamento. Para exemplificar, formou uma secção onde se destacava o pai e os irmãos. E deu vozes de Comando: Firme! Direita Volver. Esquerda Volver! Caiu! Apenas ele próprio cumpriu a ordem. Todos ficaram a sorrir. Ainda podes se aleijar! Olha, o comunismo é um exemplo a seguir por todos os povos livre do imperialismo. O internacionalismo proletários. O Manifesto de Marx e Engls. A luta contra a Mais-Valia. O partido do novo tipo de LÉNINE.
Mas filho, o vinho também é no cartão da loja do povo como aqui? Sim. Ah, então isso não vai dar certo! Pai, essa é a visão dos reaccionários. Dos saudosistas! São todos agentes do imperialismo! É preciso que os operários conquistem o poder e implantem a ditadura do proletariado. Por que? Porque os operários foram os mais explorados, e na sequência são eles mais disciplinados e organizados. Filho, eu vi o quanto custou desenvolver Angola. Gerir um país não é fácil. Por exemplo, ontem o antigo tractorista da Fazenda Boa Esperança esteve aqui a pedir a sua lavra de volta. Mas eu comprei-lhe a lavra em 1963, quando à noite foi apanhado a roubar café na fazenda do branco. É com este que estamos a contar desenvolver a economia? Isso ainda vai da confusão. Meu filho, ouve bem o que estou a te dizer: os nguetas um dia vão voltar e vão querer receber as suas casas e fazendas que hoje ocupamos. Pai, tem de entender que entramos numa nova fase, o da revolução. Agora quem vai mandar são aqueles que antes eram os explorados. Haverá igualdade entre os homens.
Em seguida, ergueu o olhar para perguntar à plateia sedenta. Vocês conhecem Lénine? Não?!!!... Lénine é o grande revolucionário que dirigiu o partido dos bolcheviques à conquista do poder aos tzares.
Diante da ignorância da plateia, o orador então lembrou-se, pedindo a um dos irmãos que fosse ao quarto buscar o busto de Lénine que trazia na mala. Na pressa de voltar para a sala, não soube procurar com cuidado. Foi aí que o busto de mármore de V.I. Lénine com cerca de 20 cm de altura e 10 de raio, saiu da mala raspando-lhe a tíbia e caindo em cheio sobre o dedo maior do pé. Este deixou cair o candeeiro e correu aos gritos até á sala.  O dedo foi atingido por um dos vértices do busto abrindo uma ferida de onde brotava muito sangue… O candeeiro tombado, por um tris não ateou fogo à mala. 
Os adultos aflitos e com as mãos à cabeça, levantaram-se da mesa. Mas o que é que foi? Mano, foi uma pedra que saiu da mala e me caiu no pé! O Lénine? Sim! Foi isso mesmo que me aleijou no dedo. Olha só. E mostrava o dedo do pé ensanguentado.  
Foi preciso, quatro pontos para estancar a hemorragia. O militar tinha experiência em primeiros socorros. Foi assim que o então adolescente, nunca mais se esqueceu daquela noite e da imagem do líder dos bolcheviques Vladimir Ilitch Ulianov Lénine. Sempre que cruzava com um velho careca lembrava-se de Lénine. Depois, em Dezembro de 1977, quando ouviu o discurso do Dr Agostinho Neto: “sob o olhar silencioso de Lénine...” Já sabia de quem se tratava. 
O busto talvez ainda continue lá no Amboim jogado num dos cantos da casa de adobe. Com seu olhar silencioso quiçá, resista ao tempo agreste e ao salalé.

Que adolescente imaginaria que aquele velho careca o acompanharia em quase toda a vida. E hoje, passados mais de 30 anos, o então adolescente ao questionar o mano ainda militar ele apenas sorri e diz: foi uma Mais-Valia!

terça-feira, 25 de junho de 2013

INTOLERÂNCIA DE CADA DIA




SEGUNDA-FEIRA: É cacimbo! Camponeses regressam ansiosos às margens húmidas do rio para a plantação de hortícolas. Nas cidades, para a surpresa de muitos, voltou à baila, e ocupando espaço editorial nos jornais, rádios e televisões o uso do antónimo da tolerância.
Existe ou não intolerância? Uns dizem que sim, outros dizem que não! E quando em debate, os representantes de várias cores político-partidárias procuram com sagacidade esgrimir os seus argumentos puxando as brasas para o seu carapau. Aos ouvidos arrebitados do público chegam as mais variadas verdades e inverdades sobre o tema. Cada um defende e persiste na sua dama, mesmo quando esta já vai em trajes menores. Na sequência, instala-se um ruído perigoso para o processo comunicacional entre os actores políticos, ambiente que pode afectar, de uma maneira ou de outra, o resto da sociedade. O diálogo pode virar monólogo.
Lamenta-se, mas a vida está cheia de contrariedades. Há opiniões com as quais não estamos de acordo, mas somos obrigados a aceitar, sob o risco de sermos taxados de intolerantes. E pelos visto ninguém gosta de ser considerado intolerante. Então, tente ser diferente. Tente ser uma pessoa melhor! Melhoral caiu em desuso. Depois da Aspirina, agora é Paracetamol que bate.
 A tolerância é semente e estrume. É assim que se constrói e perduram estáveis amizades, namoros, casamentos, relacionamentos, parcerias e projectos de sociedades.
Quem já nunca ouviu palavras semelhantes?
- Eu gosto muito dela e quero sempre estar do seu lado, porque ela me aceita tal como sou! Não vê as minhas opiniões, ainda que tenham alguma dose de disparate, como vindo de gente pueril. Ela procura generosamente entender, perceber. E sempre chegamos a conclusão que a diferença de opinião resulta do ponto. É uma questão de ponto de vista! Por isso, a instabilidade tem sempre no seu bojo um acto de intolerância.
A tolerância semeia-se e germina como alfobres de flores do campo. Mas o que é a tolerância e intolerância, quais as suas derivadas! De tanta confusão que o ruído provoca nas mentes, nada melhor que procurar o Dicionário Moderno da Língua Portuguesa, para saber o que de facto significa. E prontamente encontro: Condescendência, ou indulgência para com aquilo que não se quer ou não se pode impedir. Boa disposição dos que ouvem com paciência opiniões opostas às suas. Faculdade ou aptidão que o organismo dos doentes apresenta para suportar certos medicamentos.  
Então, paro, cogito e no mesmo dicionário, busco o termo intolerância. Esfolheio. Esfolheio e finalmente encontro. Intolerância quer dizer falta de tolerância. Violência.
Raciocino. Quem é intolerante? Pessoa que carece de tolerância. Que não suporta as crenças e as opiniões alheias, se divergem das suas.
Já mais satisfeito acesso a internet em http://pt.wikipedia.org: «tolerância, do latim tolerare (sustentar, suportar), é um termo que define o grau de aceitação diante de um elemento contrário a uma regra moralculturalcivil ou física. Do ponto de vista da sociedade, a tolerância é a capacidade de uma pessoa ou grupo social de aceitar outra pessoa ou grupo social, que tem uma atitude diferente das que são a norma no seu próprio grupo. Numa concepção moderna é também a atitude pessoal e comunitária de aceitar valores diferentes daqueles adoptados pelo grupo de pertença original.
O conceito de tolerância se aplica em diversos domínios:
- Tolerância social: atitude de uma pessoa ou de um grupo social diante daquilo que é diferente de seus valores morais ou de suas normas.
- Tolerância civil: discrepância entre a legislação, a sua aplicação e a impunidade.
- Tolerância segundo Locke : «parar de combater o que não se pode mudar».
- Tolerância religiosa: atitude respeitosa e convivial diante das confissões de fé diferentes da sua.
- Tolerância farmacológica ou medicamentosa: diminuição da responsividade a um fármaco, ou seja, a diminuição do efeito farmacológico com a administração repetida da substância.
- Tolerância técnica: margem de erro aceitável (ver Tolerância, engenharia), ou capacidade de resistência a uma força externa.
- Tolerância: em gestão de riscos constitui o nível de risco aceitável normalmente definido por critérios pré-estabelecidos.»

TERÇA-FEIRA: Volto a pesquisar sobre o assunto em http://pt.wikipedia.org/wiki/Intoler%C3%A2ncia «Intolerância é uma atitude mental caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças em crenças e opiniões. Num sentido político e social, intolerância é a ausência de disposição para aceitar pessoas com pontos-de-vista diferentes. Como um constructo  social, isto está aberto a interpretação. Por exemplo, alguém pode definir intolerância como uma atitude expressa, negativa ou hostil, em relação às opiniões de outros, mesmo que nenhuma acção seja tomada para suprimir tais opiniões divergentes ou calar aqueles que as têm. Tolerância, por contraste, pode significar "discordar pacificamente". A emoção é um factor primário que diferencia intolerância de discordância respeitosa
A intolerância pode estar baseada no preconceito, podendo levar à discriminação. Formas comuns de intolerância incluem acções discriminatórias de controle social, como racismosexismo, homofobiaheterossexismoetaísmo  (discriminação por idade), intolerância religiosa e intolerância política. Todavia, não se limita a estas formas: alguém pode ser intolerante a quaisquer ideias de qualquer pessoa.
É motivo de controvérsia a legitimidade de um governo em aplicar a força para impedir aquilo que ele considera como incitamento ao ódio. Por exemplo, a Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América permite tais manifestações sem risco de acção criminal. Em países como AlemanhaFrançaPortugal e Brasil, as pessoas podem ser processadas por tal atitude. Esta é uma questão sobre quanta intolerância um governo deve aceitar e como ele decide o que constitui uma manifestação de intolerância.
Enquanto prossegue o debate sobre o que fazer com a intolerância alheia, algo que frequentemente ignora-se é como reconhecer e lidar com a nossa própria intolerância.»
QUARTA-FEIRA: Nas palavras, nos gestos e mímicas, quanta intolerância está presente no nosso dia-a-dia. Nos relacionamentos. Lá em casa. Quanta intolerância no trânsito engarrafado da cidade capital, que não raras vezes acaba em violência e morte. Quanta intolerância nos transportes públicos. Quanta intolerância nas salas de aulas. Quanta intolerância nos locais de trabalho, nos bancos das igrejas, nos hospitais, nos partidos políticos, nos parlamentos, nos mercados, em fim! Quanta intolerância habita ainda as nossas mentes! Reconhecer que esse mal existe seria um grande avanço no caminho da superação. MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES! Para a consolidação da paz e da reconciliação importa trabalharmos diariamente, procurando sermos mais tolerantes com o próximo. A palavra de ordem deve ser: Tolerância! Tolerância! Tolerância!
E porque não tornar a Tolerância disciplina obrigatória para todos os níveis de escolaridades?
QUINTA-FEIRA- APLAUSO! Desde o Soyo, o Projecto LNG fez a sua primeira entrega ao mercado internacional. É o coroar de vários anos de trabalho persistente de funcionários, engenheiros e técnicos. A todos eles a nossa merecida homenagem. As ofertas de gás no mercado nacional irão com certeza aumentar, para atender a crescente demanda.

SEXTA-FEIRA: 21 de Junho. «Deus se agrada bem de tais sacrifícios» Heb. 13:16.

SÁBADO: «Pastoreai o rebanho de Deus… aos vossos cuidados» 1 Ped. 5:2

DOMINGO: O olho-por-olho pode deixar os contendores cegos e o dente-por-dente desdentados. A era é outra. «Não vos esqueçais de fazer o bem» Heb. 13:16

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Espionagem arbitrária



SEGUNDA-FEIRA: São 4H00. Acordo sob o som da música do despertador. É “A Via Láctea” de Renato Russo!- Sempre existe uma luz/Quando tudo está perdido… 
Acordei, mas permaneço imóvel na cama morna, buscando na sinfonia o recobrar das forças e energias, o conectar da alma à vida com os seus devaneios. O esfolhear das lições anteriores na projecção de um novo dia, buscando transcendência na poesia de cada manhã com seus gorjeios arrebatadores. Cada pássaro o seu cantar e juntos formam a harmonia da orquestra matinal. E a água fria do chuveiro completa o milagre divino. O fornecimento da água e da luz estão normalizados. Cresce o optimismo. Antes de descer espreito através da cortina da sala a normalidade da cidade ainda adormecida.
Aperto cinto. Dou o arranque. Ligo o rádio. Enquanto aqueço o motor do carro, percorro mentalmente a totalidade do trajecto. Nas curvas, reduzo a velocidade e nos entroncamentos paro, olho e escuto. Preparo-me psicologicamente para suportar as arrelias provocadas pelo engarrafamento e seus protagonistas. Quantos litros de combustíveis são consumidos por veículos em pequenos trajectos. Quanto o país gasta com o trânsito parado? Milhões de dólares em combustíveis subvencionados pelos cofres do Estado, que serviriam para outras demandas das populações! Talvez desse para a criação de um subsídio de natalidade para acudir às populações de baixa renda: Durante e depois da gravidez, toda a mulher desempregada receberia no Banco um valor mensal até que o seu filho atingisse os 18 anos. Por exemplo, 10 mil kwanzas para quem hoje vive com menos de 100 kwanzas/dia seria uma grande fortuna. Seria uma das formas para atenuar os efeitos nefastos da pobreza nas famílias angolanos, elevando assim o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Inspiro e expiro sonhador. O engarrafamento no trânsito luandense também gera negócios, não só para as gasolineiras, mas também para os ardinas e outros vendedores ambulantes que encontram aí vitrina para os seus produtos. As Rádios são outras que facturam com os nervos dos automobilistas encurralados em estradas sem alternativas. O caos do trânsito faz emergir orgulho no Radialismo angolano, animando ou desanimando as manhãs com palavras e músicas de vários quadrantes. Entre a plateia estressada, ele encontra homens energúmenos, boçais, ignorantes talvez que lhe contrariem. Quem o contrariar pode ser taxado de invejoso… Mas responder ouvintes igualmente com insultos pode não ser a melhor escola! Ah, o Manual de Rádio Jornalismo Jovem Pan! Trate o ouvinte com delicadeza, ainda que este use linguagem pouco cortês. Avance irmão angolano. Como diz Nelson Rodrigues, “quem pensa com unanimidade não precisa de pensar”.

Sair do Lar do Patriota para a Corimba é uma verdadeira guerra de nervos. Outros buscam saída ou entrada na antiga estrada do Futungo de Belas. Mas aí encontram uma placa “ÁREA RESTRITA”, limitando a passagem. Apenas alguns poucos passam através do filtro fino do controlo militar. Logo o desassossego destoa da calma transmitida pelas manhãs de cacimbo. Perde-se muito tempo para se alcançar o Morro da Luz. É demasiado. Consulto as horas! São 6H30 e percebo, pela fila de carros, que até à baixa de Luanda gastaria mais de 3 horas. Preciso chegar antes, para conseguir um espaço para o estacionamento, pois a Marginal está em obras e não foram criadas alternativas. Não há alternativas! Que fazer? Entro em sofrimento. Depois da passagem superior do Morro da Luz retorno e apanho a estrada do lado da praia. Seguimos em coluna numa estrada cheia de buracos e solavancos. O cheiro do mar e de peixe deteriorado pairam na atmosfera. Náuseas! É preciso calma e muita paciência.  
Os autocarros públicos sumiram das estradas. Se alguém investisse em transportes colectivos de qualidade para os que moram no Kilamba, eu deixaria de investir em carro pessoal. Um autocarro VIP com toda a acomodação e prestação de serviço de bordo quem não pagaria? Cada passageiro obteria um cartão reservando a sua poltrona. Às 5H00, 5H30, 6H00 e 6H30 partiriam do Kilamba, regressando apenas no período da tarde. Ou seja, a partir das 15H30, 16H00, 17H00, 18H10. Era também uma forma de os socializar, pois andam muito ilhados.

TERÇA-FEIRA: A Polícia Nacional abre inscrição para novos candidatos. Um erro de cálculo, leva a suspensão de todo o processo horas depois de ter iniciado. O número de jovens candidatos que procuram pelo primeiro emprego, supera as expectativas das autoridades. A preparação minuciosa de qualquer processo é premissa de êxito. Valeu a correcção atempada do tiro! O improviso é inimigo da perfeição.

QUARTA-FEIRA: Exausto regresso a casa. Não tem jeito. Já no Kilamba, passo e não acredito no que vejo. Paro e recuo. Pestanejo. Me belisco. Continuo incrédulo. Repito o gesto com maior violência. E caio na real. Alguém ateou fogo ao relvado ressequido do Quarteirão A da Centralidade do Kilamba. Suspiro com desgosto e parto desiludido. O que é que essa gente tem na cabeça. E fico a pensar na minha infância! Já fui inocentemente feliz! Apesar das arrobas de café cereja e de milho que levava para a moagem, eu era uma criança feliz. Atenção: A arroba são 15 quilos, diferente da @ da Internet. Por iniciativa própria recolhia e partia coconote no palmar para comercializar na cantina do sô Manuel, recebendo em troca quedes-praia e lenço de bolso, rebuçados, amêndoas e bolachas. Mas nada de trocar a escola e as brincadeiras pelo trabalho. Lavar a loiça fazia parte do exercício de adestramento. Não era como as crianças que combatem de armas na mão em alguns países. 12 de Junho assinala-se o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A data começou a ser comemorada em 2002, por iniciativa da OIT (Organização Internacional do Trabalho), com o objectivo de chamar a atenção da sociedade e governos sobre a importância da implementação da Convenção que estabelece a idade mínima para admissão ao emprego.

QUINTA-FEIRA: O sistema bancário está lento. Com ranger de dentes, aguento a fila durante toda a manhã. As filhas no estrangeiro clamam. Tento acalma-las, justificando, mas a barriga não aceita as explicações: Pai, não queremos palavras. Queremos dinheiro da bolsa. Ok. Calo. No fim, também quero bons resultados.

SEXTA-FEIRA: O avanço das novas tecnologia propicia um rápido desenvolvimento das sociedades jamais vista em toda a sua história, todavia o seu uso indevido pode acabar por criar conflitos com a legalidade diante da exposição da privacidade alheia. É nesse âmbito que se inscreve o gesto inusitado do ex-agente da CIA Edward Snowden, de 28 anos de idade, denunciando o programa de espionagem em massa da Agência norte-americana. A tal democracia na América também funciona assim?!!! Então estamos entalados! Então, as inquietações de Jorge Orwell expressas na sua obra 1984 eram justas. Publicado em 8 de Junho de 1949, o romance narrada história de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do regime através da falsificação de documentos públicos. Smith fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável e assim começa uma rebelião contra o sistema.
“Estou disposto a sacrificar tudo por não poder, em sã consciência, permitir que o governo norte-americano destrua a privacidade, a liberdade na Internet e a liberdade básica das pessoas em todo mundo com uma máquina de espionagem”, diz o ex-agente da CIA Edward Snowden.
O termo Big Brother, popularizado pelo romance, refere-se à fiscalização e controle de um determinado governo na vida dos cidadãos, além da crescente invasão sobre os direitos do indivíduo.
SÁBADO: Falando em espionagem, lembro-me de um episódio da minha infância. Muitas mulheres andavam inquietas devido aos rumores que perpassavam a aldeia descrevendo com minúcia as suas partes íntimas. Alguém estaria a monitora-las. Quem seria? Desconfiaram. Só pode ser um homem que se tenha escondido nas margens do rio Mazungue, para as espionar durante o banho. Foi assim que decidiram montar uma emboscada. Um grupo de senhoras entrou no rio e um outro permaneceu na Aldeia, aguardando o cair do sol. Quando o crepúsculo espalmava as sombras do arvoredo sobre a paisagem, nas margens, o grupo de patrulha seguiu um rasto. Devagarinho, caminharam até confirmarem as suas suspeitas. Ajoelhados, o homem perscrutava as senhoras através das folhagens. As mulheres gritaram. Surpreendido, jogou-se no rio desaparecendo na outra margem. Mas foi reconhecido. Era o guarda-redes da equipa do bairro. Foi assim, que no sábado, no Comité do bairro, todos os aldeões conheceram e puniram o espião da aldeia. Zé Liengue, apesar de analfabeto e mesmo sem TV, já conhecia os dois sabores do Big Brother!

DOMINGO: Desligo o telefone. Quero voltar a ser um homem livre!



segunda-feira, 13 de maio de 2013

Busca de uma identidade




SEGUNDA-FEIRA: Faz um ano que procuro encontrar-me comigo mesmo, mas em vão. Minhas mãos, minhas pernas, meu rosto, tudo estranho. Nem mesmo olhando ao espelho me reconheço. Meu pensamento titubeia entre o ser e o não ser. Entre o antônimo e o sinónimo. Sou metáfora do iceberg! Na encruzilhada, vacilo entre a esquerda e a direita. Procuro a minha identidade…! Que perfume estranho!
TERÇA-FEIRA: Finalmente ontem, consegui escapar-me do quimbanda. Que horror! Mais de um mês que não tomo banho. Meu corpo tem o cheiro de folhas e raízes.  Esta gente devia merecer um tratamento especial, pois é extremamente empreendedora. Sabe retirar dinheiro do bolso do pacato cidadão sem anunciar assalto. São psicólogos das aldeias globais. Aldeias? Agora também das grandes cidades. O quimbanda modernizou-se a ponto de ter tradutor para português, francês e inglês, cobra em dólar, tem cartão multicaixa, cartão-de-visita, Internet, portfólio e anda em jeep zero 0 km. Pudera, com tanta clientela de luxo!... Incrível, quimbanda também usa entre os seus amuletos a bíblia como um pastor!
QUARTA-FEIRA: Vagueio sem destino. Dizem que estou a enlouquecer. Também essa era a opinião do quimbanda. Disse que tudo começou, quando um gato preto apareceu no telhado lá de casa naquela noite em que acordei sobressaltado. O gato miava como criança faminta. Segundo ele, se esse gato não fosse caçado seria um dilúvio em toda a família.  E para apanhar o gato pediu 5 mil dólares e uma cesta básica, onde incluiria uma lata grande de leite Nido selada. Mandou colocar a lata de leite no tecto lá de casa e pediu que a trouxesse de volta uma semana depois. Qual foi o espanto ao abrir a lata! O espanto foi ver um gato inflamado a sair do seu interior e com uma corda atando-lhe o pescoço. Era preto. Não acreditei! Pediu mais 5 mil dólares para remover todas as desgraças lá de casa. Foi aí que perdi a cabeça! Uma cabeçada no olho esquerdo deixou-lhe inconsciente. A seguir agarrei no pescoço do tradutor afrancesado e obrigue-o a ingerir uma mistura que havia preparado para mim. Minutos depois, caiu exausto sobre a possa de fezes e vómitos. Seria eu!
QUINTA-FEIRA: Falo ao vento, mas falar ao vento na cidade não é mesma coisa que na aldeia. As palavras faladas ao vento na aldeia não se perdem no ar, são captadas pelos deuses, nossos antepassados… São estes que intercediam por nós. Agora, o pôr-do-sol perdeu o seu colorido e as palmeiras a sua valsa vespertina. As perdizes pararam de esgaravatar o solo, deixaram-se enlear pela mornes da terra e as garças taciturnas evitam o horizonte.  
Sabe por que o sonho acaba na melhor parte? Não?! Porque o destino espera que você acorde para vida e realiza o teu sonho, pois não serão os outros a fazerem-no por ti. A única razão para escrever-te é porque preciso falar, desabafar, libertar-se do fardo do silêncio condoído, antes que este petardo exploda aqui no peito e pare o palpitar inquieto do coração. Mas tenho medo! Mas como dizes muito bem no seu mural, se não encontras solução para determinado problema, pode ser que você seja parte dele. Desculpa se lhe vou incomodar, talvez encontre nesse gesto o pretexto para continuar a seguir adiante a solo mesmo com os solavancos do caminho. Temo melindra-lo com as minhas conjecturas, equívocos, conflitos e cobranças, quando você barganha tempo ao sono e ao sossego familiar para dar conta dos imperativos que os seus afazeres lhe impõe. Eu tenho medo de não me entenderes, porque o passar dos anos talvez cristalizem o pensamento - estigmatizem o reiterar dos dias comuns. Mas o medo é antigo. Desde pequeno que era proibido chorar ou gritar à noite, pois dizia-se, sua voz podia ser levada pela alma de outro mundo. E onde fica o outro mundo, ninguém sabia ao certo. Acreditava-se apenas.
Olhava enviusado, quando a voz áspera do velho Quitumba Kiazumba gritava da sua casa cercada pela floresta . Toda a aldeia estremecia e calava-se o choro de crianças rabugentas. Ele era o medo, ninguém ousava desafia-lo.
– Está a ouvir o tutú? Ninguém se ria do filósofo da aldeia, cujas tiradas ficaram na memória de hoje: O mundo é feito de coisas que estão em permanente movimento, dizia com sua voz de trovão… Ainda me lembre!... Certa vez, o filósofo foi ao Posto Médico da roça de café, pois tinha febres e dores em todo corpo. Pediram-lhe que trouxesse fezes e urina em dois frasquinhos para serem analisadas. Contrariado recebeu os dois fraquinhos vazios antes usados para Penicilina. Caminhou indeciso até a casa de banho. Tudo estava asseado, era a primeira vez que entrava para uma casa de brancos. E ficou a olhar intrigado para a sanita e o bidé. Os tamanhos eram diferentes. Um era alto, parecendo um pequeno pilão, instrumento multiuso, que servia para triturar o milho, as folhas para fazer kizaca, moer o feijão para o quitandé (Feijão descascado e posteriormente pisado e cozido, Nkalé). É multiuso que até já vi pilão a caminho do Kilamba!...
Velho Quitumba, depois de vários minutos de indecisão, optou pelo bidé. Era mais largo. E cometeu a maior desgraça. Os excrementos espalharam-se pelo chão e o cheiro inundou o ambiente. Aflito abriu a porta e correu alucinado em direcção à aldeia. Jurou jamais voltar. Ao verem-lhe chegar com o pânico estampado no rosto, justificou-se dizendo que havia encontrado um corta-cabeças no caminho do hospital. Queria chupar o seu sangue. E contava com todos os pormenores. Toda a aldeia acreditou.
Dias depois, a doença imobilizou-lhe na cama. Aflito chamou pelo enfermeiro da aldeia que o aconselhou procurar um médico. Ele recusou-se a voltar para o Posto Médico, optando em ficar a dormir na sua cama de paus. Doente dorme, doença não! Certa noite, chamado de urgência, o enfermeiro encontrou-o a gemer de febre.
- Têm que analisar as tuas fezes e a urina para ver se tens infecção de parasitose ou de bactérias.
-Bataria? – Disse entre os dentes, enquanto gemia!
- Bactéria!
- Sukuama! Pessoa também tem bataria!
O enfermeiro preferiu o silêncio. Não adiantava insistir. Aplicou-lhe analgésicos para baixar a febre.
- Vais ao hospital e lá, depois das análises, irás saber se o resultado é positivo ou negativo. Mas trate de levar o produto. Se for positivo…
- Brututu?... E se for pujitivo?
- Se for positivo, quer dizer que tens alguma infecção.
- Pujitivo, está male?... - Uá-ué, nga fu, quer dizer que tem infenção na bataria?!!! – e ficou ainda mais intrigado.
Mas forçado pela enfermidade, dia seguinte, partiu cedinho em direcção ao Posto Médico, levando no saco de pano dois recipientes. Ao chegar apresentou-os ao enfermeiro de serviço. Questionado, disse que vinha da parte do enfermeiro Ferreira e que tencionava fazer exames. E exibiu as duas garrafas de refrigerante Mission, uma cheia de urina e outra de fezes. O enfermeiro deu um grito e o velho deixou cair os vasilhames. A urina e as fezes espalharam-se na sala, afugentado os doentes que aguardavam atendimento.
Envergonhado partiu e jamais voltou ao hospital. Daí, sempre buscou a cura nas plantas do campo.
- O branco é complicado! Faz as coisas só p’ra ele! Nós também podemos fazer o que é nosso. - E foi assim que ele se tornou em quimbandeiro.
Me perdi. Desculpa, amigo! Pois, dizia: Queria falar-te. Os anos estão a passar e a vida se esvai no ritmo do tempo. Um temporal de ansiedades nos persegue e abate. Viu? É a memória ainda povoada de estórias do mato e de pretos rotos que sobem as palmeiras a correr. Bebem marufo e aguardente de milho e dormem felizes, despertando tranquilos sob a sinfonia do chilrear de pássaros. Dizem que são matumbos porque não são civilizados como os da cidade. Qual cidade? Perdi a fronteira.
SEXTA-FEIRA: Estou algures na estrada de Catete. Carros velozes sobem e descem. Quem estará no seu interior?! Deve ter alguém com coração. Estico o braço em vão. Ninguém olha p’ra mim. Boleia na carrinha Datsun, Bedford ou Peugeot foi com o colono. Caridade emigrou.
SÁBADO: Ardinas vendem jornais aos condutores. Aumentaram o número de jornais, mas nunca mais os li. Ando demasiado ocupado com o meu destino! Tenho 500 dólares que retirei do bolso do casaco do quimbanda. Mas do jeito esfarrapado como me apresento, ninguém vai acreditar nem em mim nem no meu dinheiro. Maluco não pode ter dinheiro! Serei logo assaltado pelo vendedor.
DOMINGO: Cheguei, mas ninguém está em casa. Foram todos à igreja. Não tenho forças para subir o muro. É preciso ter fé! Adormeço e espero, mas a mão está no bolso do dinheiro. Suku, suku, suku!...

sábado, 6 de abril de 2013

Olho mágico


  • A algazarra conquistava a natureza. O sol sumia lá longe deixando no rasto a ternura do adeus. Como no cais, as aves, depois de mais um dia de luta pela vida, aconchegavam-se tranquilas nos ninhos. E celebravam alegres, entoando a canção de enleio à vida. O quimbanda ébrio de tanta aguardente de banana olhava perdido para o horizonte onde a brisa do ocaso brincava serena sobre o verde da paisagem.
O homem recém-chegado, e que tinha a perna, dizia-se, inflamada por uma tala maligna, com ais de dores contorcia-se, tendo estampado no rosto o sofrimento em forma de uma máscara rústica.
A esposa desesperava-se na ânsia de encontrar a cura para a enfermidade que deixara inesperadamente o seu homem sem a capacidade para se movimentar por suas próprias pernas.
A assistência olhava em silêncio, esquecendo-se momentaneamente da sua própria dor. Foi naquele instante que o telefone de um dos ocupantes do Corolla despertou tendo como ton a música: “SÓ ME RESTA É CHORAR, MAMÃE UÉ!…UÓUÓUÓ…” O homem atendou afastando-se do enxame onde estivera.
- Alô mano, estás onde? Localização…! – Na voz do interlocutor, percebia-se nitidamente uma certa urgência.
- Estou a tratar daquele assunto da mana! Que se passa?
- Durante o dia, andei a tentar várias vezes para contactar-lhe, mas o teu telefone dava sempre fora de área de cobertura. Estavas com telefone desligado?
- Não, meu telefone esteve sempre ligado, deve ser a maca da rede. Sabe, quando cai chuva ela traz sempre problemas na rede de telecomunicações, na rede rodoviária, na rede ferroviária, na rede eléctrica, na rede de abastecimento de água! Se chove, é porque choveu. Se não chove…!
- Olha, tens de regressar com urgência! Hoje de manhã encontramos um aviso pregado na porta do edifício a exigir o pagamento dos meses atrasados.
-A tua cunhada não foi lá?
- Olha, por outro lado, teu filho está com dengue.
- O Kandengue?
- Sim! O Kandengue está com dengue!
-Dengue é quê?
- É uma nova doença, irmã do paludismo! Paludismo vai contar coma ajuda da irmã dengue…A cunhada está desesperada. Não sabe se vai ao hospital ou ao Banco. A imobiliária ameaça inclusive despejar todos aqueles que não o façam nos prazos solicitados, isto é dentro de quatro dias.
- Este aviso é de quando?
- Tem data de 13 de Março, mas foi afixado no dia 23. Tens de pagar os cinco meses de atraso, senão…! A mana, foi lá na imobiliária na segunda-feira. No local encontrou dezenas de moradores abraços com a mesma situação. Faltaram ao serviço para resolver o tal problema, mas até às 10 horas não apareceu ninguém. O Hiace da empresa passava e repassava sem dizer nada. Quando foram 11 horas, apareceram alguns funcionários… Você não vai acreditar no que disseram!
- Disseram o quê?
- Apenas vieram para os informar que o local indicado no aviso já não era aquele. E apontaram um outro lugar. E lá foram todos a correr para o outro local. Postos lá, funcionária não tinha nem papel para escrever nem informações para dar aos moradores, porque o chefe não estava. Aquilo é mesmo brincar com os cidadãos.
- No acto da assinatura dos contratos, cada arrendatário fez a entrega do número da conta com o respectivo IBAN para que fossem descontados mensalmente. A maioria não foi descontada. E tem mais! Outros pagaram ou devem pagar renda de apartamentos que não são o que de facto ocupam. Por exemplo, há quem more no nº 22 mas o recibo faz referência ao 24. Isso assim ainda vai dar diculo.
- Mas isso não é possível!... O contrato foi assinado numa altura que o meu apartamento custava 125 mil dólares. Como é renda resolúvel devia paga 603 dólares por mês. Mês depois, o Executivo baixa os preço para 70 mil dólares. Não seria justo reverem o valor da renda?... Se não vamos pagar um valor superior ao preço do apartamento… Eu até já queria pagar a totalidade do valor do apartamento, mas a imobiliária exigiu requerimento para o efeito Fundo de Fomento Habitacional. Fiz. Depois me disseram que era na Delta. Possa, na casa de renda o sono não acaba mesmo!...
- Então, é melhor vir. Porque se já começaram assim, com estas ameaças, com estas arrogâncias, tudo pode acontecer. Com tanta gente aflita em busca de casa para morar, as vezes é pretexto para vos retirar do apartamento. E preparem-se, quando a factura da água e da energia eléctrica chegar, muita gente vai arrumar a trouxas para o Zango 5… As gémeas de Luanda, a Edel e a Epal o que fazem!
O homem agitou-se. O telefone mudava de mão e de orelha várias vezes. Ele estava inconformado. Cinquenta anos esperou ansioso por aquela oportunidade: a de ter acesso a uma casa condigna num espaço com as melhores condições de habitabilidade jamais vista desde que seu país se tornara independente da potência colonizadora. Por isso fizera grande festa, quando recebeu as chaves do apartamento. A espera foi angustiante. As noites mal dormidas.
Acompanhado da esposa e do funcionário da imobiliária, depois de abrirem a porta, jogou-se e rolou na poeira que cobria o chão da sala. Naqueles instantes, percorrera as léguas da vida. A sua vida humilde na aldeia em que nascera e crescera. Os pés descalços no caminho da escola e a humilhação da gente rica ao troçarem a sua bata furada pelo uso reiterado ou o seu lanche que era quase sempre banana ou mandioca cozida com dendém ou ainda milho torrado trazido numa garrafa com água. Mastigava com dor e raiva. Algumas vezes chorou inconsolável a sua sorte. Inclusive já fizera queixa à professora, mas esta não se manifestara solidária. - Rapaz, tu és pobre, o que esperas? – disse, enquanto alisava descontraída a sua maquiagem.
Naquele dia, ele voltou para casa e ao longo de todo o percurso, continuou a repetir com lágrimas as palavras da professora: - Rapaz, tu és pobre, o que esperas?
Informou ao seu pai do sucedido. O pai abraçou-lhe com carinho e depois tirou 5 escudos da algibeira para que ele comprasse pão com ginguba no recreio. E quando ia receber a moeda percebeu que seu pai também chorava. Nunca mais se esqueceu daqueles dois momentos.
Cresceu repetindo as palavras da professora loira e a lembrar as lágrimas do pai sobre o rosto engelhado. Quando os Capitães de Abril saíram à rua de Lisboa, ele ficou feliz, pois ninguém mais depois de tudo lhe iria voltar a humilhar.
Lembrou-se da Lua-cheia, da Má-língua, do seu rio da infância onde se banhava antes de ir à escola. Memória dos seus amigos e companheiros de todas a horas. César, Prazeres, Pascoal, Fama…
Agora estava feliz. Não se importou com a poeira nem com os chuveiros que haviam sido roubados no apartamento.
Passados cinco meses eis que despertou do sonho. Ofegante, não acreditava no que ouvia. Recebera o apartamento em Setembro e mudou-se. Foi o primeiro morador a desembarcar com os seus parcos haveres. Seus móveis cansados de tantos anos de espera por substituição, por isso fez a mudança à noite, por volta das 20 horas, para evitar a bisbilhotice de gente disponível para comentar a vida alheia.
Pagara apenas o primeiro mês, depois a imobiliária, em comunicado afixado na soleira da porta do edifício, pediu aos moradores que não fizessem qualquer tipo de pagamento, aguardando por novas ordens. Aguardaram por novas informações desde Outubro, Novembro, Dezembro. Janeiro, Fevereiro. Eis que agora em Março chega o novo aviso em forma de ultimato. Um pedregulho no vidro da esperança!
Desligou o telefone e chamou rapidamente pelos seus companheiros. Wandalika também aproximou-se na ânsia de partir.
-Temos de bazar, me querem tirar o apartamento do Kilamba!... Vamos, antes que não seja tarde!... Tu estás doente, vais ficar! – disse o condutor dirigindo-se com rispidez ao Wandalika.
Os demais embarcaram e partiram apressados acelerando o Corolla. Wandalika ficou estático entre a fumaça expelida pelo velho motor. E teve dó.
- Coitados! Se acreditam tanto no quimbanda, então, antes de partirem, deviam pelo menos fazer um tratamento para ver se conseguiam acalmar a imobiliária… Isso ainda vai-lhes render aborrecimentos. Mil desassossegos!
Suspirou e procurou um adobe de consolo para sentar-se enquanto aguardava resignado pela sua sorte! E pela primeira vez, nos últimos anos, voltou a sentir aquela saudade que diante do vazio, destroça qualquer coração. Saudade da sua vida simples e despreocupada da aldeia. Da sua modesta casa construída na colina e afagada pela sombra de frondosas mangueiras. Saudade do milho torrado e do funge quipicula feito com óleo de palma e sal. E do sono sossegado no colchão de palha ou na esteira. O acordar tranquilo sob a sinfonia do canto de galos e pássaros! As cidades possuem tudo, mas não têm galos nem galhos para poleiros dos mais variados pássaros da sua infância.
- Ai Chorinho doce, de Adélia:
Eu já tive e perdi/Uma casa,/Um jardim, uma soleira, uma porta/Um caixão de janela com um perfil./Eu sabia uma modinha e não sei mais./Quando a vida dá folga, pego a querer/A soleira/O portal/O jardim mais a casa/O caixão de janela e aquele rosto de banda. Tudo impossível./Tudo de outro dono,/Tudo de tempo e vento. Então me dá choro, horas e horas,/O coração amolecido como figo em calda.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Encontro com Salif Keita no deserto


No caleidoscópio, como nevoeiro que cobre as manhãs do interior, Wandalika ainda trazia no semblante a inquietude e na retina a imagem de crianças famintas, angariadas no interior da província da Huila para o trabalho agrícola nas fazendas do Namibe. Na fusão, se sobrepõe o retrato de adultos e adolescentes carregando água em baldes e bidons amarelos na cidade do Kilamba, enquanto aí perto uma fila de camiões cisternas abastecem-se do precioso líquido para comercialização.
Bidons, bacias e baldes são adereços obrigatórios, que ganharam com justiça um lugar cativo em todos os apartamentos, daí a sua justificada demanda no inflacionado mercado luandense. Estes utensílios de tão procurados até entraram para a longa lista de pedidos de casamento, sentando-se à direita do incontornável companheiro, o gerador.
Os seus sentidos confundem a realidade e a ficção. Talvez seja da ansiedade! Talvez seja da sonolência. Talvez seja da fome. Talvez seja da sede. Talvez seja do cansaço da espera incerta. A espera é como as melancias, verdes por fora e sangrando por dentro. Talvez seja da demência. Talvez seja dos solavancos e da poeira da obra da estrada da Penitenciária de Luanda.
Apesar da conjugação do futuro imperfeito, ele sentia-se aliviado. Pelo menos não ficaria preso como cogitara ao ser forçado a iniciar uma odisseia ao lado de quatro desconhecidos. Estar preso é ser privado da liberdade. É não puder ir onde se quer na hora que se quiser. E ele já acumulara experiência de sobra desde a primeira vez que fora preso por brincar com a Esperança. Dormiu no chão da cela, cobriu-se com papelões e a casa de banho estava desprovida do lavatório e da sanita. No lugar da sanita, apenas sobrara um buraco negro vigiado por dezenas de moscas. Usá-lo era preciso uma dose de pontaria, para não falhar o alvo. O procedimento era: 1º - apoiar correctamente os pés fixando-os no pavimento ao lado da abertura; 2º - regular a altura, flexionando as pernas e seguidamente tranca-las com os antebraços atrás dos joelhos. Era como se de uma corrediça da alça de mira se tratasse.
A refeição? Quando houvesse era arroz com chouriço ou com frango. As poucas vezes em que melhor se alimentou, foi graças à refeição trazida pela esposa de um presidiário que havia sido condenado por homicídio. Era tempo de estiagem e a manutenção dos presos era uma tarefa bastante difícil num contexto marcado pela escassez.
Wandalika partilhava a cela com o autor de um crime hediondo. Pelo facto do seu crime não ser grave, podia muito bem aguardar o julgamento em liberdade… Sim. E logo se lembra da estratégia gizada pelo anterior ministro do Interior para o combate à superlotação das cadeias. As pulseiras electrónicas seriam usadas pelos presos para o seu controlo à distância. Por isso torce para que o projecto conste no Orçamento Geral do Estado para 2013.
A implementação do projecto das tornozeleiras electrónicas iria reduzir o número de presos que entupem as prisões e pouparia milhões de dólares canalizados para a construção de novas cadeias, infra-estruturas de apoio, abastecimento com alimentação, água, energia eléctrica, assistência médica e medicamentosa, bem como o pagamento de pessoal de segurança.
A criminalidade custa cara a qualquer Estado. A título de exemplo, tendo em conta valores de 2011, a vigilância electrónica custa ao Estado português 16,35 euros, enquanto o custo médio diário de um recluso é de 47,81 euros.
Já no Brasil, o custo com cada preso é de pouco mais de 1.800,00 reais por mês, cerca de 900 dólares. Com o novo sistema, o custo será de R$ 539,58 por mês (300 dólares aproximadamente).
Além da redução dos recursos canalizados para a manutenção dos presidiários, a medida deverá trazer também mais benefícios para o processo de reinserção social dos condenados, que passam a ter convivência familiar e condições de estudar e trabalhar normalmente.
Por conta das reduções dos números de detentos, aqueles que permaneceriam nos presídios, teriam maior espaço e condições de maior sanidade.
Assim, combater-se-ia a ociosidade que é outra inimiga do presidiário. Permanecer todos os dias fechado numa jaula é coisa que mais os fragiliza comprometendo a sua reeducação. A criação de hortas, carpintarias, oficinas de veículos e máquinas, fábrica de blocos, escolas e bibliotecas era importante para que pudessem vencer o relógio preguiçoso da prisão.
Eram quase 13 horas. Naquele momento, um peão procura atravessar a rua movimentada. Ao chegar no meio da faixa de rodagem, ele vacila e recua correndo para o ponto de partida. No trajecto quase foi colhido por uma motocicleta. Elas estão em todo lado e não respeitam nada e ainda reclamam batendo arrogantes com o punho nas viaturas quando os condutores destas não os deixam passar. E acham que têm sempre razão!
O Corolla, em que ia Wandalika, teve de travar de repente.
- Olha o jornal! Olha o Jornal!
Naquele instante, um ardina aproximava-se com várias publicações. Wandalika esticou o pescoço para espreitar as manchetes do único diário da República de Angola. Assustou-se…
Mas logo o carro acelerou, deixando para trás o adolescente. E a alma reteve o susto. A figura que aparecia na capa usava traje tradicional onde sobressaía o lenço feito túnica cobrindo a cabeça. Quem será?... Será o presidente líbio Muammar Khadafi?...
Khadafi não pode ser, pois este foi morto em 2011, depois de vários meses de resistência contra os revoltosos vindos de Benghazi e sempre apoiados pela OTAN.  
- Em 20 de Outubro de 2011, foi formada uma coluna de mais de 40 veículos que deveria, antes do amanhecer, fugir de Sirte  em direcção à aldeia de Jaref, localizada a 20 quilómetros a oeste da cidade sitiada. Mas a coluna somente partiu por volta das 8 horas da manhã e aviões da OTAN rapidamente atingiram um dos veículos da mesma. Um segundo ataque aéreo causou um maior número de vítimas e atingiu o carro onde ele estava e, por isso, teve que tentar continuar a fuga a pé, mas foi cercado, capturado e morto.
Wandalika ainda se lembra do antigo líder líbio com seu traje e a sua guarda percorrendo os corredores da Sede da União Africana. Ainda ouve a sua voz entusiástica e vê os seus gestos frenéticos no palanque da União Africana projectando os Estados Unidos da África. Ele queria uma África livre e independente de facto, que fosse capaz de ser dona dos seus próprios destinos.
- Na véspera  de uma das Cimeiras, naltura na qualidade de presidente da UA, o líder líbio Muammar Khadafi, concedeu uma longa entrevista a agência PANA, manifestando o seu cepticismo quanto aos resultados alcançados pela organização desde a sua criação. Segundo ele, passados cerca de dez anos após a proclamação da UA “e na sequência de um trabalho laborioso, os africanos rendem-se, infelizmente, à evidência de que o continente continua longe de realizar o seu projecto de uma África Unida.
Kadhafi foi morto sem conseguir atingir o seu sonho. E mesmo nos momentos mais derradeiros dos combates em Trípoli, poucos ou raros irmãos africanos o ajudaram.
 Como praga, na sequência da sua morte, deflagraram ou se acirraram conflitos antes latentes em vários pontos do continente: Costa do Marfim, Guiné Bissau, Mali, RDC e República Centro africana. E o continente, 50 anos depois da proclamação da Unidade Africana, tem-se mostrado incapaz de solucionar os seus próprios conflitos e carências, a ponto de apelar para a presença de tropas francesas e de apoio logístico de outros países da OTAN e dos EUA para fazer face à ameaça de desagregação do Mali.
A conflitualidade que se regista na República do Mali tem probabilidade de afectar países vizinhos. Basta observar a dimensão territorial e a quantidade de países que o cercam. Argélia, (que ainda procura curar as feridas deixadas pelo ataque terrorista contra as suas instalações petrolíferas), o Níger, Burquina Faso, Cote D´Ivoire, Guiné Bissau, Guiné Conacry, Senegal.
As mesmas armas que assassinaram o antigo líder líbio estão hoje apontadas contra os tuaregues, que são tão africanos como ele. Que futuro?
Como disse o europeu Henry Palmerston “Nós não temos aliados eternos nem inimigos perpétuos. Nossos interesses é que são eternos e perpétuos, e nosso dever está em perseguir esses interesses.”
 E os interesses geoestratégicos das grandes potências vão vincar, pois o Mali é um país rico em Ouro, Urânio, tendo também reservas de cobre, diamante, ferro, manganês, fosfato, bauxita, zingo, lítio entre outros minerais.
Afro-pessimistas, afro-optimistas, pan-africanistas… Wandalika suspira com mágoa. E rumina no silêncio as palavras do Presidente António Agostinho Neto: - «Hoje a África é como um corpo inerte, onde cada abutre vem debicar o seu pedaço».
E com a sonoridade da música “Yamore”, do cantor maliano Salif Keita e Cesária Évora, os ocupantes do Corolla seguem em direcção ao município do Cacuaco... Todos gargalham descontraídos. Só ele está triste, introspectivo!... - Abutres sobre o corpo inerte!…

Não grita seus anseios                                  
no receio de perturbar um mundo
que o ofusca
com o falso brilho dos seus ouropéis.”

E Wandalika chora suas lágrimas de indignação.
AI NETO!...