Algures, o
Mundo espreguiçava-se no leito para o esforço de um novo dia e tão logo como
abelhas se lançarão de mangas arregaçadas ao labor em busca do pólen da vida,
suando na ânsia de se alcançar o sonho de felicidade. Esta felicidade dos
homens, que o modernista brasileiro Oswald de Andrade, considerou como sendo
uma felicidade carniceira, pois a última coisa que sobrava no cadáver era o
dente. A felicidade, todos nós queremos! E é por ela que se batem em renhidas
disputas indivíduos, povos e nações inteiras.
Aqui
Wandalika, incrédulo, na esguelha das suas lembranças vespertinas, o raiar do
sol encaminhava-lhe para um novo destino. Murmúrios de vozes brotam do seio de
uma multidão espremida à saída do quintal de portão rudimentar para verem
passar o carro que o transportava.
Em silêncio
e com o olhar ainda fortemente marcado pelas mazelas da surpresa, lá estava ele
ensardinhado entre dois varões. Um uá-ué desabrocha e perpassa a multidão
angustiada desfazendo-se em lágrimas. Mas ficam apenas no gemido resignado.
Condoíam-se com a sorte alheia, porém muito pouco ou nada tinham para
contrariar a torrente do destino.
Como ovelhas
submissas viviam suas vidas lineares sem grandes ambições, nem cobranças,
palmilhando os mesmos caminhos, encruzilhadas e prazeres da infância com os
mesmos pés descalços, que resmungavam aos espinhos e colisões contra as pedras
do trajecto.
Era o
sentimento comum de gente simples, de bairros também simples, criados na
periferia das cidades, oscilando errante entre a modernidade e tradição. Aí a
notícia chegava calma, descia a encosta e perdurava além das 24 horas, num
cenário que o relógio tinha pouca serventia. Tinham o Rei-Sol como guia. Não
viviam apressados, aflitos, ofegantes, como se o Fim do Mundo estivesse a
poucas horas.
Apesar do
vendaval urbano que sopra persistente despenteando o capim da floresta do vale,
eles ainda zelosos, cultivavam valores como a obediência, a humildade, a
honestidade e o amor ao próximo. A alegria repousava no partilhar com equidade
o pouco que se tinha e, assim, se diziam felizes, pelo menos compreendiam na
devida dimensão que riso à solo podia ser o limiar da demência.
Na sua
lhaneza, os dias tinham todos o mesmo colorido do pôr-do-sol com seus lilases e
perfumes de flores silvestres, embriagando a tela da vida com a sua magia.
Ao
anoitecer, depois do jantar, ao luar brincavam e cantavam e contavam as suas
estórias procurando costurar o sentido da vida. Não falavam do Patinho Feio
vindo da Europa. Para eles, esta estória dos brancos era triste. Pois como
aceitar que um patinho só por ter nascido feio fosse excluído do seio da sua
família sendo obrigado a refugiar-se. Eles não pensavam assim. Se fosse assim,
talvez as aldeias estivessem vazias, mas não. Cimentavam a harmonia e a
concórdia como ingredientes para a solidificação das suas comunidades. A
Estória do Patinho Feio é uma lição flagrante de exclusão, que não deve ser
apreendida pelas suas crianças, que desejam felizes e fortes na solidariedade.
Felicidade!...
Os anos iniciavam e terminavam, deixando atrás de si lembranças boas e más ou
rugas da longa espera por um dia de sonho. Mas tinham esperança. A tal
esperança que é a última que perece no confronto renhido pela sobrevivência.
A esperança
do náufrago por uma folha ou tronco ainda que minúsculo que flutue sobre as
águas tempestuosas do rio. A esperança do moribundo pelo milagre para reverter
o quadro clínico definido pelo médico como altamente reservado, quando os
gestos dos enfermeiros traduzem o vazio da espera vaga por algo que supere as suas
capacidades sempre limitadas.
- Nem sei se
acordará amanhã.
Mas, contra
todos os prognósticos e diagnósticos, dia seguinte, o paciente, não só continua
vivo, mar soergue-se trôpego da cama para ir ao banheiro e no seu regresso pede
água para humedecer a garganta e sopa para reabrir o caminho dos alimentos. A
esperança pela promessa ainda promessa.
Esperança-fé.
Esperança, mola que impulsiona energias e vontades para se alcançar a meta. A
esperança pelo amor que nos faça depois do altar definitivamente livres-felizes
e remova do escaninho da memória as placas de lembranças e frustrações feitas
paradigma do reiterar dos anos. Para ele Wandalika, não havia desespero pois
este estava fixado no limite além espera.
E lembra-se
da sua Esperança. E nesse instante, o seu rosto triste é iluminado por um morno
sorriso. A Esperança, alta, andar senhorial, era uma moça bonita nos seus 18
anos, exalando perfume de sua beleza e juventude nos caminhos da aldeia. Atrás
de si a cobiça fazia brotar da mente comentário miúdo de adultos envelhecidos
pelo passar dos cacimbos. Nos jogos de cabra-cega, garrafinha ou de
banana-verde era incansável, corria, driblava sem perder equilíbrio, feita
flecha atirada certeira para o alvo. Usava duas tranças na cabeça arredondada,
vulgo tranças bailundo. Nela, cabeça, corpo, olhos, lábios, nariz e voz. Tudo
era harmónica despertando suspiros de antropófagos.
Wandalika,
descarregou num suspiro todo o seu desgosto. Lá estava ele olhando através da
janela do velho Corolla uma miscelânea de rostos de olhares terrosos, cabelos
multicolores e gestos e mímicas. Confuso, não acenou, deixou-se ficar quieto
entre os seus algozes.
E seguiram
viagem em direcção à Baixa de Luanda. O homem que ia ao lado do condutor olhava
frequentemente para trás, enquanto andava de um lado para o outro com o
sintonizador do rádio receptor. Os demais mascavam de forma ruidosa uma mistura
de raízes e folhas de Santamaria na ânsia de afugentar os maus espíritos.
Durante
alguns instantes uma música suave invadiu os seus ouvidos, mas depois saltou
para uma outra rádio. Não demorou-se. Talvez pela baixa qualidade sonora e dos
seus programas. Era Para-Lamentar! Devia estar em quarentena durante algum
período até melhorar a qualidade da sua grelha. Logo o homem mudou de frequência
e, pela primeira vez, estavam de acordo.
RÁDIO3: Um
correspondente falava de camiões atolados na lama da estrada no Kuando Kubango.
As chuvas que se abateram no sul de Angola abriram ravinas e cortaram a
circulação rodoviária. Um grito aflito temendo a deterioração das mercadorias
do Natal. Tinham esperança…
- RÁDIO4.
Falava da preparação dos Palancas para o CAN da África do Sul. A Esperança é
chegar o mais longe possível. Por que não às meias-finais?
RÁDIO5-
Abordava aspectos relacionados com a economia do país. A agricultura, pecuária
e indústria, crédito à economia, agricultores do fim-de-semana. Irrigação!
Ordenamento do território. O Vector da economia! Que já devia ganhar prémio
nacional de jornalismo pelo contributo que tem dado para a reflexão sobre as
questões do desenvolvimento do país. A esperança é viúva, é última que morre!
RADIO6- Tudo
está atoa no trânsito da grande metrópole. Inquilinos de bairros dormitórios
vêem-se aflitos para chegar ao centro da cidade. Essa é sua rotina. De manhã,
descem aturando longo engarrafamento e à tarde idem. O custo do engarrafamento
não entra nas estatísticas, mas é alto. Milhões de litros de combustíveis
consumidos num trajecto de 30 quilómetros. E o custos com o stress e suas
doenças derivadas? E a baixa produtividade? E o mau-humor? E os conflitos
domésticos?
RADIO7-
Diz-se de Escola, mas concebida para servir de laboratório para os alunos de
jornalismo, no viés do projecto, virou rádio comercial. Os cursos de rádio, Tv
e de jornalismo, que até tinham muita audiência e importância, jamais foram
leccionados. Cefojor é simples sigla na memória como Dinaprop, Econdipa, Empa,
Egrosbind, Egrosbal…
RADIO8- Era
o de Línguas Nacionais. A língua é um instrumento importante para a preservação
da identidade de um povo, mas cada dia que passa o número de falantes cai
perigosamente para o vazio. A força da língua está no perfil dos falantes.
Língua apenas falada por velhos, pobres e analfabetos está moribunda. A
Faculdade ensina língua nacionais, mas quantos estudantes aprenderam
comunicar-se de facto. É só para passar de classe. Ainda que aprendessem, onde
iriam poder exercitar? Na Rua?... No serviço?… O preconceito ainda reina.
Nenhuma telenovela Nacional tem um personagem que se exprima em língua
nacional. Só na Radionovela Camatondo! Que valores nacionais se quer preservar?
Naquele
momento, o carro que transportava Wandalika atinge finalmente a Maria Pia.
Pensou que o internariam, mas não. Ficou triste, pois pelo menos terminaria a
incerteza, o suspense.
Desceram a
Avenida 1º Congresso, admirou as novas construções com vidros reluzentes e os
vários guindaste q eu se disseminavam
pela baixa luandense e arredores. E ficou feliz. Depois, ao passar no Cine
Nacional, lembrou-se dos velhos tempos. Henrik Ibsen era a sua paixão. E jamais
se esqueceu da peça “Um inimigo do povo”. Lembra-se que depois de ter sido
escolhida pelo seu Grupo, ela não foi encenada por falta de actores à altura do
texto dramático. Teatro tem de contar com bons actores. Mede-se a cultura de um
povo pelo seu teatro, dizia Garcia Lorca. E ele sorri. Olharam-no, assustados.
Atingem a
Marginal e rapidamente chegam ao Porto, encaminhando-se para o bairro Boa
Vista. Poeiras mil! Havia um grande engarrafamento. A estrada que sai de um dos
portos comerciais mais importantes do Continente africano, que movimenta
milhões de dólares em mercadorias por dia, está altamente degradada. Camiões
com contentores circulam com dificuldade e os acidentes fazem rotina. As
construções desceram o morro e invadiram a antiga estrada.
- Chefe, vão
me levar pra onde?
- Você não é
pessoa, não tem direito à palavra!...
- Eu então
não fiz nada! Estão a me levar na penitenciária por que?...
- Cala essa
boca, Kazumbi!... Vou te levar na igreja
- Pai, não me faz isso, faz
favor. Vão me matar!...