quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Regresso de Pessoa


Há mais de uma semana que ele desaparecera. Em sua casa, uma multidão de familiares e amigos aguardava ansiosa por notícias sobre o seu paradeiro. A esposa, sentada na esteira da viuvez, cansava-se em contar e recontar as circunstâncias que envolveram o seu desaparecimento. Pai, já se foi em tudo que é morgue nesta cidade, mas até agora nada! Já fomos no Ecos & Factos, da TPA… O mano não viu ontem a foto dele?… Passou na Televisão, até as famílias da província telefonaram a perguntar… Hummm, azar procura o dono!... Pai, azar não custa que custa é casar! E com gesto pesaroso se erguiam, suspirando as suas angústias e sofrimentos.  Coragem!!!
Ao se verem livres, afastados do quarto, lá fora reuniam seus parceiros para o jogo de cartas, enquanto outros procuravam trocar impressões sobre a vida quotidiana nos seus bairros e aldeias. Os das aldeias, falavam da chuva que caia e da germinação das sementes no campo. O verde da paisagem do milheiral que se estendia para além do horizonte. Contabilizavam os custos com a mão-de-obra, o aluguer do tractor na empresa de mecanização agrícola, o transporte e os inseticidas usados no combate aos insectos nocivos à plantação, antevendo as margens de lucros. E todos eram unânimes: Os agricultores trabalhavam dia e noite para aumentar a produção de milho, hortícolas, feijão, mandioca, batata e tantos outros produtos do campo, mas no fim quem mais ganhava são os comerciantes. Por isso, vêem-se mais gente a comercializar do que a produzir no campo. E o campo começa a se tornar pouco atractivo. Por isso é que as pessoas estão a fugir. O trabalho do campo é muito duro, é preciso ter muita força de vontade para aguentar. O ano inteiro não há feriado. Tudo começa com a preparação do campo para a sementeira: a capina, a recolha e queima do capim, a sementeira, a luta contra as aves e os macacos colocando espantalhos em toda lavra ou marcando presença diária, gritando e batendo o tambor. A sacha, a luta contra os javalis, veados e elefantes que procuram folhas tenrinhas para saborear e matar a fome.
A conjugação de exclamações e interjeições procuravam exprimir a dimensão do estrago que cada interveniente provocaria à plantação:
Eh, pai! Veado quando encontra milho ou campo de kizaca, aquilo é comer ou quê?!!! Ele come para uma semana! Até se esquece que o milho tem dono. Quem se esquece no que é alheio, não valoriza a segurança da sua própria vida.
O velho de chapéu de cowboy e de olhar distante, com uma mão segurando o cajado e outra sobre a cobertura, ergueu-se da cadeira de plástico, vulgo espera condições, ao referir-se aos elefantes que com frequência devastavam a sua plantação no Bié. Eu nunca vi tantos elefantes!… Mas estes bichos andavam aonde? Dizem que tinham fugido para os países vizinhos por causa da guerra que ameaçava as suas vidas. Depois que a paz foi alcançada, eles decidiram regressar para as suas terras. O seu regresso tem gerado muitos conflitos, sobretudo com os homens que, alguns deles, construíram aldeias e lavras nas suas áreas de pasto. O elefante tem memória tipo gente, sempre regressa à sua aldeia de origem. Até aqueles que haviam fugido estão a regressar e a exigir o que era deles. Nova cooperação! Estamos mal!...
O pai acha que as pessoas que vivem hoje aqui em Luanda um dia voltarão às suas aldeias? Perguntou o Pastor Zagueu, da Igreja Justiça Divina!
Todos entreolharam-se e alguém sorriu com desdém antes de comentar: Hehehehe regressar ao campo, nem pensar! A vida no campo é muito dura, difícil. Você no campo, depois de muito trabalho, vende um cacho de banana a 100 kwanzas. O comerciante que vem da cidade bota o cacho na carrinha e chega no mercado do Catintom, em Luanda, revende-o a 1000. Mesmo que o frete seja alto, ele acaba lucrando mais do que o próprio agricultor. O homem do campo continua com muitas dificuldades e a viver com a camisa e as calças rasgadas, enquanto outros enriquecem à sua custa. É mais fácil vender jinguba no muro do quintal ou em qualquer esquina das cidades do que trabalhar a terra.
E todos corroboraram. Quem partiu para a grande cidade dificilmente regressa. Por isso as aldeias estão a ficar vazias de braços e de força jovem para o seu desenvolvimento. Em muitas delas hoje apenas encontras velhos e velhas, esperando o dia da partida. Muitos deles já têm as suas trouxas arrumadas! Cada ano que passa a extensão da plantação diminui. Os velhos estão cansados e o corpo enfraquecido. Contrariamente ao que muitos pensavam, o fim da guerra não incentivou o regresso, mas o êxodo rural. Basta ver que muitos dos bairros que existem hoje, surgiram na era pós conflito.
Aliás, muitas das construções anárquicas nasceram nessa época. Como é que se aceita que um indivíduo construa uma casa naquela ribanceira do Morro da luz? Mas aquilo é perigoso! Não há Polícia para evitar aquela buandja, aquela anarquia? Pai, eles constroem à noite. Mas a polícia não dorme. Como dizia o outro: O inimigo madruga, nós não dormimos. Isso é buandja!
Olha, no tempo colonial nós nem caporroto podíamos fazer. Se te apanhassem destruíam tudo e eras levado para a esquadra donde sairias com as mãos e o matacos inflamados. Aquilo era purrada! Qual Direitos Humanos!
Hoje nas ruas das cidades e nos becos dos bairros, você encontra gente a beber álcool logo de manhã. E tranquilamente! Os outros estão a ir trabalhar ele já está a beber!...  Olha, eles bebem também mata macaco! Mata Macaco? Sim, vocês não conhecem uma bebida que mata macaco? Não?!!! O mais velho pode então nos explicar! Olha, a tal bebida vem numas garrafas pequenas e no rótulo traz uns números. Cada garrafa traz o seu número…
A gente compra as tais garrafinhas na cidade, quando chegar na lavra, colocamos numa tijela. O macaco ao ver o recipiente, desce das árvores e começa a beber. Todo o bando desce para beber. Invadem a bebida. Até eles esquecem o milho! Chega uma altura que eles lutam por causa da bebida! Aquilo vira confusão! Depois de veres que eles já se embutiram da bebida, então você aparece. Olha, quando te verem a chegar, eles partem em correrias, subindo nas árvores… Pai, quando você gritar, eles com medo começam a pular de ramo em ramo. Como estão bêbados, eles não conseguem medir a distância entre um ramo e outro. Resultado, se atiram no abismo, morrendo ao se espatifarem no chão.
E todos sorriram. Não riem! Agora vocês estão a ver por que razão tem hoje muitos acidentes nas nossas estradas?… Bebida, muita bebida! As pessoas quando bebem não calculam as consequências dos seus actos. Quando pegam o volante pensam que não morrem mais. E muitos casos de sida é consequência do álcool, porque quando você bebe, perde o medo e a noção do risco. Depois diz que é feitiço!
Olha, o Governo devia reduzir o comércio de álcool. Daqui para o Sumbe, Benguela, Huambo, Malanje, Uíge..  Ao longo da via você encontra bebida. Os acidentes estão directamente ligados ao consumo de bebidas alcoólicas.
Naquele momento, aproxima-se um homem vestido de calça social e uma garrafa de aguardente na mão. Usava um chapéu de palha. Eram 20 horas. Olharam-no assustados. Uaué, pai, kazumbi do Wandalika voltou! E todas a pessoas puseram-se a correr. Na aflição, deixaram para trás as esteiras, os panos e os bancos.
Era uma algazarra! Uaué, kazumbi do Wandalika voltou!...
E calmamente, Wandalika subiu num banco, ergueu os braços e na sua voz rouca começou a declamar Fernando Pessoa! Os seus gestos foram projectados pela Lua Cheia sobre a parede de blocos. 

“A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar sphyngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal.”

E naquela noite, Wandalika ficou só na casa vazia. Até os cachorros recusaram-se a entrar para o quintal, optando por uivar errantes pelo bairro.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Martelo ou bigorna


Às 7 horas e 30 minutos cruzou com um estudante, meia altura e uma sacola artesanal à tiracolo. Caminhava tranquilo. Ao cruzarem no corredor, cumprimentou-o. Você é da onde? Sou de África, o Continente Berço. Sabia que você era gringo! HEHEHEH Você é do continente onde se dorme muito, né cara? ehehehehe Como assim? Uai, berço não é para bebé dormir?! Não tem nada a ver! Viste o jogo da Nigéria? Perdeu por infantilismo. Vocês são muito emocionados e a emoção é coisa de criança! Hehehehehe… Falando sério. A África é um berço em permanente convulsão. Aquilo é um caos federal, percebe? Já viste o formato, parece uma pistola, cujo gatilho está no Golfo da Guiné, o cão na Somália! A mira está em Moçambique e o cano na África do Sul. Heheheh! Wandalika olhou-o desconfiado… Será mercenário! O célebre francês Bob Denard tinha varias ramificações no mundo, até na América Latina! Amigo, na África não há um único país que possa ser apontado como exemplo de desenvolvimento e de boa governação. A África do Sul! Ok! Talvez seja o único e porque andou lá a mão de ferro. Vais ver o que vai acontecer dentro de alguns anos! Tirando a terra de Mandela, cara, o resto é paisagem, é leões, antílopes e macacos correndo na paisagem! Hehehehe… Não se esquece que a escravatura e o tráfico de escravos afectaram profundamente os africanos. Fomos nós quem construiu a felicidade das Américas, sobretudo no Brasil! Isso teve reflexo no desenvolvimento do continente Negro. Quê isso cara?! Os vossos reis é que eram ambiciosos, pois trocavam os seus filhos com produtos da indústria europeia: pedaços de espelho, cachaça! Foi tudo ambição! Ao invés de se unirem estavam vidrados no negócio. É lógico, os europeus não são bobos, aproveitaram! Aproveitaram roubar a nossa riqueza! Cara, deu moleza, apanha! Na vida ou se é martelo ou bigorna. ................................................

Extrato do livro "Aventura de um estudante Angolano no estrangeiro" apresentado pela Editora Mayamba em Agosto de 2012 em Luanda.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

PONTEIRO NO VERMELHO



 
ESTAMOS NA CIDADE DE JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS, BRASIL, 1995. Nossa Senhora Aparecida era um bairro de gente simples entre as quais muitos brancos, negros e mestiços. Funcionários, operários de construção civil, vendedores e empregados. Algumas ruas eram asfaltadas e outras calçadas de pedra. A casa onde moravam ficava no término dos autocarros daquela linha. A cerca de 20 metros havia duas cantinas e um orelhão (Telefone público). Nossa Senhora Aparecida fazia fronteira com os bairros Santa Rita, Santa Cândida e Nossa Senhora de Lourdes. Era muita Santa à sua volta.

No anexo com o Cativa, também vivia um capitão da Força Aérea chamado Maurício. Um luandense do Bairro Rangel. Mais tarde, vieram a saber que ele era apenas tenente.

Estamos zerados, dizia o Cativa. Estamos zebrados! E sorriam,sorriam... Na primeira semana, Wandalika pegou, a título de empréstimo, em 100 dólares e deu-os a cada um deles. A alegria havia retornado. Dois dias depois, voltaram a pedir mais 100 dólares. Acedeu desconfiado. Semana seguinte, pediram mais 100 dólares. Recusou. Deu-lhes apenas 50. Entretanto, os gastos eram compreensíveis, pois os seus companheiros tentavam atenuar a dívida do aluguer, melhorar a dieta alimentar, comprar roupa e diminuir o cansaço andando de autocarro[2]. Do frango haviam passado para carne, sobretudo de fígado de vaca. Voltaram a gargalhar ao lembrar os esqueletos de frango.

Mas no mealheiro, o nível de segurança baixava. Em menos de um mês Wandalika estava apenas com 300 dólares. O ponteiro estava no vermelho. Para quem não sabia quando receber o reforço de verba, a situação era realmente aflitiva.

Como o quadro degradava-se a cada dia, decidiu manter um encontro com os companheiros de caserna para a revisão da situação: Camaradas! Nós somos militares e temos que buscar soluções. Mas que soluções? Somos comandos desembarcados na profundidade do inimigo. A nossa missão é de alto risco. Não temos como receber apoio da rectaguarda, devemos contar com os nossos próprios meios e capacidade de sobrevivência. Temos de aprender a pescar!

O Cativa acendeu um cigarro com indisfarçável insatisfação pelo diálogo que para si até aí era incompreensível. Wandalika esperou alguns segundos até a conclusão da primeira baforada e prosseguiu com maior acutilância: como vos disse, a guerra em Angola não deixa espaço para vislumbrarmos um futuro de paz dentro de pouco tempo. As tropas do Governo desdobram-se no terreno para rechaçar o inimigo, mas a situação vai ainda durar algum tempo. Sabem que o inimigo está bem municiado! Caxito, Catete, são zonas de guerra! Não temos como receber o dinheiro da bolsa dentro de pouco tempo. Temos de resistir. E o Primeiro-ministro Marcolino Moco?... Todo o esforço vai ser canalizado para a guerra. Esta é a verdade.

A impaciência dos interlocutores empurrou-o precipitadamente para a parte principal do plano. Vamos procurar uma igreja! O falso capitão sorriu numa alta gargalhada, levantou-se, abriu a porta e saiu, fechando-a atrás de si com alguma violência. A porta fechou-se e no caminho que os unia apareceram pedras que cresceram e chegaram a pedregulhos como as que existem no rio Mazungue. Para ele, Wandalika era um doido, um puro exibicionista!

Quem olha em várias direcções não avança! Por isso concentrou o fogo em Cativa. Queria convencê-lo. Fica calmo, nós vamos conseguir manobrar. Os chineses dizem que a arte da guerra é a arte da manobra. Vamos à igreja!

O seu companheiro Cativa manifestava-se relutante, argumentando que era católico desde os tempos de criança no município do Bailundo e não protestante. E ele contra-atacava. Quando a vida está em perigo, as soluções devem ter em conta, primeiro, a sobrevivência. Lá vais seguir todos os movimentos de levantar, fechar os olhos, assentar e ajoelhar. Fica calmo! Mas porquê que você não quer ir na Católica? Até fui baptizado pela Católica, mas ainda era criancinha, apenas tinha dois anos. Então, vamos lá! Nem pensar! A última vez que pus os meus pés numa Igreja Católica foi em 1993. Nem imaginas! O quê? Fomos corridos pelo padre!... Hum, fizeram o quê! Sabes que depois de 1975, após a proclamação da independência quase todos os jovens aderiram ao ateísmo científico. Aliás, era condição para ser-se militante do MPLA, mais tarde transformado em Partido do Trabalho. Todos queriam ser marxistas e leninistas! Depois do Muro de Berlim ruir em 9 de Novembro de 1989, criando um mundo unipolar… O sol se pôs e órfãos da Guerra Fria tacteavam nas trevas, buscando a luz! Então em 1993, familiares de um militar falecido queriam que se celebrasse uma missa em sua memória na Igreja Sagrada Família.

A plateia era composta maioritariamente por militares garbosamente fardados exibindo braços musculosos. São dos debraços e cangurus[3]! Quando começou a missa foi uma desgraça! O diabo desceu? Não, nenhum deles sabia rezar o Pai-Nosso e nem Ave-Maria. Nem ninguém sabia cantar as canções. O Padre sentiu-se solitário diante do cadáver desconhecido. E enfurecido começou a amaldiçoar os presentes: o que é que vieram fazer aqui? São vocês que quando vivos não se preocupam em ir à igreja e fazem-no apenas na hora da morte. Vocês são oportunistas. A Igreja não é loja, onde se compra a fé. De nada adianta pedir a Deus que receba a alma de alguém que em vida foi carrasco do Senhor.

Sem terminar a missa, pegamos no caixão e saímos apressados. O padre tinha razão. As pessoas só procuram a igreja quando têm problemas. Quando estão encravados. Eu não vou mudar de igreja agora. Epá Cativa, então vai me fazer companhia para eu não ir sozinho. Vou pensar no teu caso!...

Agora mais calmo. É preciso ter fé, amigo! A fé move montanhas. Como assim? Olha, quando estava internado no Hospital Militar depois de ter accionado uma mina durante uma emboscada no Lucusse… Quando?  Na altura da ofensiva de Mavinga em 1989. Pensei! Pensaste o quê? Pensei que fosse em Cangamba? Ah, ya durante a guerra de Cangamba eu ainda estava na Academia Inter-Armas… Yá, conheci um capitão que havia fracturado a coluna num acidente. Era domingo e caíram com o camião de marca Ural num precipício na Serra da Leba. Possa, aquilo é perigoso!  Ele estava internado há mais de um ano e não saía da cama. Estava todo magro e as costas cheias de chagas. Todas as necessidades fisiológicas fazia-as na cama. Chorava todas as noites ao pensar na mulher e nos filhos que ele já não via há bastante tempo… É triste! Olha, ele chorava mais nos dias de visita. Tem razão! Quando estás internado ou preso e não recebes visita, ficas maluco. Família faz falta! E o que é que aconteceu com o capitão? Ok. Certo dia, ele chamou-me todo radiante. Wandalika! Wandalika vem só ver! Peguei na muleta canadiana e fui. E ele dizia todo feliz, eu ainda vou andar! Estás a ver o meu dedo do pé?... Yá!... Está a mexer! Aproximei-me  até a um palmo do referido pé, mas não via nada se mexendo. E ele? Ele insistia, estás ver, chefe? Qual era a sua patente? 2º tenente. E ele te chamava chefe? Epá… E depois? Yá! Olhei-lhe nos olhos e comecei a pular de alegria. O capitão Kupessala vai andar! … vai andar!... vai andar! E ele ficou ainda mais feliz. Nunca o tinha visto tão alegre!

Quando se tem fé as coisas acontecem. E o capitão voltou a andar? Não sei, porque eu tive de sair, deixei a cama para doentes mais graves, sobretudo os que chegavam da frente de combate. E não eram poucos! O que me substituiu era um jovem tenente, que tinha o corpo cheio de queimaduras! Será que o camião Gaz 66 em que seguia pegou fogo? Não! Disse que durante o avanço em direcção a Mavinga um obus anti-tanque passou bem perto dele e a farda pegou fogo. Possa, teve sorte! Aquela brincadeira é bem quente e é capaz de derreter um tanque, já imaginaste?!... Nem sei se ele sobreviveu! A vida militar é dura! Yá. Só o patriotismo obriga a tamanhos sacrifícios.

Olha, falando nisso. Certo dia chegou uma ambulância que trouxe muitos feridos. Vinham da frente. Um artilheiro estava a sangrar dos ouvidos. O sangue jorrava como se fosse de hemorragia provocada por uma bala. Segundo informações,foi preciso retirá-lo da peça à força, pois a Unidade já estava a retirar-se, mas ele e o municiador continuavam a disparar e no meio daquela poeira. Eles não viam, nem ouviam mais nada. Apenas resistiam!. À volta da peça viam-se corpos de companheiros tombados. Um ferido pedia para os camaradas o liquidarem. Não queria ser capturado. O outro estava com as duas pernas fracturadas, mas pediu munições e granadas para se defender. E suspiraram quase juntos. Angola tens heróis de verdade. Homens corajosos e valentes. Eles merecem o nosso respeito! O reconhecimento de toda a Nação! Tem o túmulo dos soldados desconhecidos. Yá, nunca entendi bem isso. Como soldado desconhecido, não tinham nome? Epá, é universal!

 



[1] Texto extraído do seu livro com o titulo “Aventura de um estudante angolano no estrangeiro”
[2] Ônibus, para os brasileiros e camioneta, para os portugueses
[3] Tipo de exercício que imitava o movimento dos cangurus

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Palavras do autor na apresentação da Obra

  Excelências membros da Direcção do Departamento de Sociologia da Faculdades de Ciências Sociais!
  Prezados membros do corpo Docente!
     Prezado Editor da Mayamba, Dr. Arlindo Isabel!
  Estimados estudantes!
Queridos amigos!
Minhas senhoras e meus senhores!

Depois de mais de dois anos de várias tentativas, finalmente tenho a alegria de lançar em Angola, a  obra “AVENTURA DE UM ESTUDANTE ANGOLANO NO ESTRANGEIRO. Crónicas de uma viagem ao desconhecido”. 
Como estamos entre sociólogos, creio que para melhor entender a obra do autor, nada melhor que fazer uma incursão, ainda que breve, ao seu mundo, à sua origem e ao conjunto de eventos históricos que marcaram a sua vida. Ou seja, rever o universo de ícones e símbolos que povoam o seu subconsciente.
Chamo-me Augusto Alfredo Lourenço, tenho 49 anos de idade, e sou natural da localidade do Pange, município do Amboim, província do Kwanza Sul. Meu pai é Alfredo Lourenço, carpinteiro, agricultor, caçador e mais tarde motorista da ETP. Recorde-se que meu pai apenas sabia assinar o nome, mas depois que a caça se tornou impraticável, e porque no mato havia outros caçadores que caçavam homens, ele decidiu ser motorista. Como um homem analfabeto conseguiu obter cartas de Condução?
Como os meus irmãos já haviam partido para a guerra, foi a mim que coube a tarefa de ler para si os textos do código de estrada e de mecânica. No fim de meses ele decorou-os do princípio ao fim.
Minha mãe chamava-se Conceição Francisco Durí, doméstica. Ambos são naturais da localidade da Gangula, Novo Redondo, hoje Sumbe.
O Pange, meu berço, é um bairro cercado por um cordão de montanhas de pedra e coberto do verde das palmeiras e das mulembeiras. O Mazungue dá ao cenário o toque de sua magia, que só os rios conseguem transmitir à paisagem verde. Foi nesse ambiente bonançoso que me fiz homem.
Nasci e cresci nas cercanias das fazendas cafeícolas do Mário & Cunha, CADA-Boa Entrada e Marques & Seixas e cedo vi os contratados a trabalhar com as suas catanas e enxadas. Cedo também vi os capatazes a gritarem e a chicotearem os trabalhadores da fazenda. Cedo acompanhei as canções de trabalho dos contratados, que como bálsamo procuravam atenuar a dor da violência. Na minha visão, deste lado, na aldeia, estava a liberdade, e do outro lado, na fazenda, a opressão.
Um dia perguntei ao meu pai por que razão os contratados sofriam tanto, mas não conseguiam reagir e apenas cantavam. Meu pai disse que no cantar estava a sua resistência.
Então fiquei mais curioso. Fiquei mais atento. E hoje ainda me lembro das canções que eles mais cantavam. “KAPALANDADA WA LILA…”
Rezava todos as noites, até que certo dia, ao voltar da escola encontrei dois homens que haviam fugido da fazenda Mário & Cunha. Disseram que, após vários anos ao serviço dos colonos, não suportavam mais a dor do sofrimento e da humilhação.
Meu pai recebeu-os e passaram a morar lá em casa. Eu fiquei feliz, porque agora tinha ganho dois novos amigos e todas as noites ouvia deles estórias de terras longínquas do planalto Central.
Maurício Ernesto Kaesse e Tchiwangula tornaram-se nos meus melhores amigos. Íamos às lavras e almoçávamos juntos e ao regressar tomávamos banho no rio Mazungue, livrando-nos da poeira e do cansaço da lavoura.
Após 25 de Abril, festejamos juntos o fim do regime facista de Salazar e Caetano e igualmente juntos acompanhamos o hastear da nova bandeira da Angola Independente. Nunca os tinha visto tão felizes.
Construíram as suas casas ao lado da nossa, casaram-se e permaneceram até a década de 90, quando já velhinhos acabaram por morrer.
Nessa altura, eu já lá não estava, pois havia ingressado na FAPLA. Mesmo longe da minha aldeia, eu ainda ouvia as suas estórias e as canções de contratados que trabalhavam no cafezal.  
Conheço a dor e o sofrimento. O amor que anima o compasso da vida. A esperança e a fé no amanhã. É tudo isso que nos move todas as manhãs ao acordar para mais um dia.
E mesmo no quartel, nos momentos mais difíceis em que a pátria se viu ameaçada, procuramos forças no sentimento sublime que nos unia e identificava como filhos da mesma pátria.
Ao escrever esse livro, moveu-nos um único sentimento: o de partilhar com generosidade vivências e experiências acumuladas durante os quatro anos do curso no Brasil.
A literatura, com disse Roland Barthes na sua aula inaugural realizada no colégio de Paris, é o único espaço onde é possível agir com liberdade. Pois, nem na linguagem tal era possível já que esta é fascista, não pelo que ela dizia, mas pelo que ela obrigava a dizer.
A criação literária é uma forma de exercício da liberdade, basta ver que o impulso para o acto criador é inusitado.
Senão vejamos: a 3 de Maio de 1988, na noite em que acabava de imprimir o trabalho de fim do curso de graduação em Comunicação Social, recebi a notícia da morte por atropelamento da minha primogénita Edna. Estava na sala de aulas, quando a informação sobre a desgraça chegou. Apenas três meses depois consegui angariar dinheiro para poder viajar para o óbito.
Uma das lembranças que guardava com zelo era uma carta que Edna me havia enviado pouco antes de ser atropelado por um camião no mercado de Artesanato do Bairro Benfica, em Luanda.
Passado 4 anos, quando trocava os documentos da carteira, a esposa, ao ver o seu estado de conservação da referida carta, quis saber por quanto tempo ainda iria guardar a carta. Não respondi. E durante quatro noites consecutivas fiquei a cogitar em como preservar e partilhar a carta com os meus amigos e familiares. Foi assim que iniciei a escrever a história que vós tendes a oportunidade de ler hoje em forma de livro.
Obrigado Edna, por tudo. Pelo seu amor e carinho.
Obrigado à esposa, pelo incentivo involuntário.
 Minhas senhoras e meus senhores!
Eis a obra escrita com a alegria e também com muitas lágrimas.
Todos que um dia foram estudantes no estrangeiro, ao ler estas páginas da “Aventura de Um estudante Angolano no Estrangeiro“ irão com certeza encontrar laços de identidade e de projecção com as cenas e os personagens que costuram o enredo.
E para aqueles que serão um dia bolseiros, as lições ou o aprendizado que colherão da leitura, servir-vos-á de bússola orientadora no caminho da busca de conhecimentos técnicos e científicos indispensáveis para o desenvolvimento do nosso país.
Agradeço o Comando da Marinha, pelo apoio prestado na edição!
Ao Arlindo Isabel, pela rapidez com que aceitou e aprontou o livro.
À Drª Márcia Falabella, pelo carinho e por ter aceite prefaciar o livro.
Aos meus professores e colegas da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora, pela amizade e compreensão. Ao povo brasileiro, pela solidariedade.
A todos os presentes, reitero o meu muito obrigado pelo carinho da vossa audiência!

Faço votos de uma boa leitura !
Obrigado!


OBS. Palavras proferidas pelo autor  dia 13 de Setembro de 2012, no auditório da Faculdade de Ciências Sociais, em , Luanda, durante as jornadas do curso de Sociologia.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

AVENTURA DE ESTUDANTE CHEGA AO MERCADO


 

O livro Aventura de um estudante Angolano no estrangeiro vai ser lançado às 15horas desta quinta-feita, 13 de Setembro, na Faculdade de Ciências Sociais, em Luanda.


A obra de Augusto Alfredo, está escrita em forma de diário, retrata a vida de dois estudantes que partem do país na expectativa de formar-se no estrangeiro, onde se confrontam com várias dificuldades, desde a adaptação cultural, a falta de notícias do país, na altura em guerra, bem como a saudade. Os dois personagens principais Wandalika e Cativa, ao longo do enredo, vão desfiando o rosário dos seus conflitos e dramas em diálogos descontraídos onde estão em pauta os mais variados assuntos desde os corriqueiros do quotidiano, até aos desafios que perpassam o presente e futuro de Angola e do continente africano.

PARTICIPE!

 

 

 






 

 

 
 



 


 

 

 
 



 

 
 
 




 

 





 



 


domingo, 9 de setembro de 2012

AVENTURA DE ESTUDANTE ANGOLANO NO BRASIL

 

Depois de um mês a seguir o Horário Eleitoral pela rádio e TV e ter exercido o dever cívico, pintando com tinta indelével o tal dedo do gatilho, ficou para a CNE e os concorrentes a contagem dos votos conseguidos ou desconseguidos para se obter assentos na Assembleia. Depois de 31 de Agosto, o desejo de paz e concórdia prevalece. Relaxo e nada melhor que um duche.
A passar pela sala, apercebo-me que Televisão Pública de Angola divulga informações sobre a Semana do Brasil em Luanda. O Grito de Ipiranga! Lembro-me que foi no dia 7 de Setembro de 1822, que Dom Pedro proclamou a independência do Brasil.
Não é inconfidência. As gotas do chuveiro sobre a cabeça, sobre o rosto, sobre o corpo fazem a imaginação bater asas e voar livre ao sabor da suavidade do "Meu bem-Querer", de Djavan. E ébrio vou cantarolando: "É segredo, é sagrado. Está sacramentado no meu coração". E na teia de lembranças rebusco o dia em que conheci o Brasil e os laços que me amarram ao tronco da paixão de Zumbi.
28 de Junho de 1994. Estudantes angolanos desembarcaram no Rio de Janeiro, quando eram cerca das 18 horas. Na busca de apoio para encontrar um hotel onde recobrar as forças e os ânimos, gentes conterrânea possuídas pelo espírito de aves de rapina caíram-lhes em cima. E de táxi encaminham-se para a cidade. Estamos na Linha Vermelha, disse o taxista, quando foram surpreendidos por várias explosões. As bombas vinham de todos os lados. Os projécteis riscavam o céu com a violência que lhes é peculiar.
Viram-se emboscados. Rezaram e desejaram ganhar asas e voar de regresso a Luanda. Preferiam regressar mesmo sabendo que haviam saído do país num momento em que se travavam renhidos combates em todo o território nacional, depois de frustrados os Acordos de Paz rubricados a 31 de Maio de 1992, em Bicesse, Portugal.
O taxista olhou para o lado direito e fez o Sinal da Cruz. Agitaram-se e aflitos procuraram refúgio no espaço que não existia no interior do automóvel. Espremidos e receosos espreitavam através do vidro da janela.
Chegaram ao Hotel Copacabana em silêncio. Só na recepção souberam do tamanho disparate. As explosões eram de foguetes lançados para festejar o golo de empate do Brasil contra a Suécia, pois estavam em tempo da Copa do Mundo de 1994. Mais tarde, riram tranquilos e consolados pelo conteúdo fermentado contido no frigo-bar.
Quanto aos guias, um incidente veio pôr a nú os seus malabarismos. Após a chegada ao hotel, eles convidaram os bolseiros para um passeio à Copacabana. Do Ritz Hotel, desceram à rua em direcção ao mar, num passo sem compromisso. A meio do percurso, pararam numa movimentada casa nocturna. Pelo volume da música, adivinhava-se um grande espectáculo. Logo à entrada, os guias exigiram dez dólares. Segundo eles, era para verem strip tease! Stri quê? Na banda, vocês nunca viram coisa igual, vão gostar! Aquilo é o máximo! Procuravam persuadir os mais renitentes.
Enquanto o guia procurava agilizar o acesso, com olhares e gestos de insegurança, os bolseiros buscaram um cantinho formado entre dois pilares do edifício. Não é aqui no Rio que andam falar?!... É... é aqui mesmo! Hum, cuidado! Estão ouvir, já estão a falar em tripas!
Perto, uma mulher vestida com parcas roupas deixando entregues os seios e as ancas ao relento esbracejava. Estou a ficar pu…! Eh, elas aqui falam assim?! Não errou quem disse que a moda feminina oscilava entre o desejo confessável de vestir-se e o inconfessável de despir-se! Jogando no seguro, dois dos bolseiros decidiram regressar ao hotel. Os demais entraram na casa nocturna.
Um dos companheiros de viagem, que durante o voo havia exibido com orgulho o anel de casado ainda fresco no dedo, jurando fidelidade, caiu na armadilha. Depois de algumas cervejas, incitado pelos guias, agarrou numa das dançarinas e levou-a para o hotel. Quando se calculava que o casal já estivesse no ringue, um funcionário bate à porta e anuncia o flagrante. Quase acertou! Foi por um triz. Tremendo, o bolseiro pensou em assalto. A loira exigiu e recebeu a sua parte!
Era proibido levar para os quartos gente não hóspede. A multa deixou-o ainda mais magro do que parecia. Tentou buscar ajuda dos guias, mas estes manifestaram-se incapazes de tirar o seu pezinho da argola. E quase chorando, juntou-se aos demais bolseiros que resignados aguardavam na sala de espera do hotel. Ontem não vos disse?! Não é aqui o tal Rio que andam falar?!...
No dia seguinte, mal recompostos das 7 horas de viagem e do susto, acabariam por enfrentar uma outra dificuldade. O governo do presidente Itamar Franco decidiu trocar a moeda como uma das medidas para combater a inflação galopante. O Real substituiu o Cruzado. Os angolanos vêem-se numa encruzilhada. Um dólar valia 1 real. No mercado paralelo, dominado por gente árabe, 100 dólares valiam 73 reais ou menos. Os cambistas de rua procuravam salvar os aflitos em cada esquina de Copacabana.
Os 2 mil dólares em traveller check ou cheque de viagem foram trocados por 1460 reais. Não havia como resistir. Ou se aceitava trocar ou passava-se fome, pois estava a faltar dinheiro. Cada dia sentiam o frio da ponte mais próximo. Cortaram o vinho ao almoço e o sorvete de sobremesa. Eram momentos de apertar o cinto, acto que, malgrado, se prolongaria ao longo de toda a cintura do curso.
Outra katuta! O valor do hotel veio aterrorizá-los ainda mais. Só mais tarde perceberam o erro: ao invés de serem hospedados em hotel barato, os guias, também angolanos residentes no Rio de Janeiro, preferiram um hotel de cinco estrelas. Resultado! Depois de liquidarem as contas inflacionadas pela cumplicidade dos recepcionistas e guias, pouco sobrou.
Quem, como Wandalika, deixou ficar algum dinheiro em Luanda para manter a família e comprar chapas, que seu o amigo Epumumo ajudou a colocar numa parte da casa, amealhou lágrimas. Mas não podia deixar a família em casa de renda, ademais com o típico senhorio angolano, cuja decisão do aumento da renda ou do despejo pode advir do simples facto do inquilino estar a comer frango grelhado, quando ele abatia um prato de arroz com peixe frito.
Vencidas as dificuldades no Rio de Janeiro, no dia três de Julho de 1994, Wandalika partiu de autocarro para a cidade de Juiz de Fora.
Eram pouco menos das sete da noite. Ele e Deus sentaram-se no autocarro da UTIL. Wandalika sentia-se perseguido pelo perigo. Sem farda, sem revólver e sem fuzil sentia-se indefeso. Mais tarde, até chegou a fazer crescer as unhas para a sua defesa. As unhas somadas aos dentes davam pelo menos para deixar marcas no couro do agressor.
Mas só Deus sabia mesmo o que o esperava. Depois de mais ou menos uma hora de viagem, numa curva o autocarro balança fortemente. Um corpo cai no seu colo. Assustado joga o fardo para o corredor, desengatilha e espera pelo contra-ataque. Na escuridão, vê um vulto a arrastar-se lentamente. Levanta-se com dificuldades e procura uma poltrona vazia...
No Rio, contaram-lhe que no trajecto até Juiz de Fora ocorriam assaltos por altura dos desvios de Petrópolis. Por isso pensou tratar-se de um assalto. Não era! Era uma mulher que tinha ido ao banheiro. Na curva, a porta se abriu e ela foi jogada para fora. Aflita tentou subir a calça. Wandalika sorriu com gosto. Sorriu, sorriu! Depois parou bruscamente de gargalhar, quando se apercebeu que ele era o único que tinha achado graça ao sucedido. Mas deu para esquecer momentaneamente o seu drama. Como é bom sorrir das desgraças dos outros!
Eram 22 horas, quando desembarcou na Avenida Rio Branco. Havia muita gente nas ruas bem iluminadas e restaurantes plantados ao longo da Avenida. Auxiliado por um prestativo mineiro, procurou uma cabina telefónica. Do outro lado, alguém atendeu e prometeu ir ao seu encontro. Minutos depois, estava em presença de um indivíduo baixo, escuro e calvo. Saudou-o efusivamente e quis saber logo de notícias do país. E a guerra como vai? Nem sabe o que respondeu. Será que fazia sentido perguntar-se a alguém: o óbito correu bem?
Enquanto caminhavam em direcção à paragem de autocarro, acalmou-o e ele mudou de assunto. Agora queria saber de dinheiro. Outra maka! E desfiou o rosário do seu drama. Há mais de seis meses que não recebia o complemento de bolsa e as dificuldades começavam a pressionar o rendimento escolar. Faltavam livros, cadernos, cópias, roupas, sapatos, etc. E o aluguer? E as refeições estavam a ficar cada vez mais simples, incompletas, nuas e despidas de ingredientes. Sobremesas, nem pensar!
Os autocarros chegavam e partiam ruidosos: A aflição também embalava na calema, quando foi cortada pela chegada do autocarro do Bairro N.S. Aparecida. Subiram em direcção ao Bairro Nossa Senhora Aparecida, a Padroeira do Brasil. Ficava no alto do morro da cidade. Depois que o recém-chegado soube do nome do bairro, ficou incrivelmente mais calmo. A Santa estaria por perto e com certeza os iria ajudar a resistir.

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O MEU TERCEIRO VOTO

A espera foi alongada pela ansiedade no desfecho de um processo incumbido de fazer desabrochar a flor da paz. No compasso para Bicesse, a trilha sonora tinha a voz de Jacinto Tchipa. A cartinha da saudade era a expressão unânime de um sentimento que perpassava o coração de todos os angolanos patriotas, que haviam dedicado parte preciosa dos seus anos de juventude para sustentar um sonho de independência e de paz.
Depois de Gbadolite, as notícias sobre os novo acordo de paz eram incipientes para remover as incertezas e percalços do caminho. Assim, sexta-feira, 31 de Maio de 1991, o abraço entre o Presidente José Eduardo dos Santos e o líder da UNITA Jonas Savimbi representou o culminar de um longo e sinuoso processo de negociações entre irmãos desavindos.
Finalmente, a paz era um facto. Todos os angolanos estavam novamente juntos e de mãos dadas para a edificação de uma pátria reconciliada e próspera. Independentemente da sua origem étnico tribal, filiação política ou confissão religiosa, todos eram tidos como elementos importantes para a consolidação da paz e reconstrução nacional. Diante da ingente tarefa da criação de condições de vida para as populações, todos eram indispensáveis, como o carreto para o funcionamento de uma máquina.
Na hora do aperto de mão, todo o país entrou em delírio. Com certeza, depois do 11 de novembro de 1975, aquela foi a noite mais bonita, em que não se foi incapaz de conter as lágrimas da alegria, deixando-as, assim, a humedecer a face enrugada pela esperança. Para trás, ficavam os anos agrestes de um conflito que não escolheu as suas vítimas.
Na sexta feira, 30 de Setembro de 1992, parti para exercer o direito de cidadania. Eram 10 horas. Tudo estava calmo até remeteu-se ao silêncio o marulhar das ondas, reclamando das línguas de pedra. A Rádio Luanda se desdobrava em orientar os eleitores a identificar as Assembleias de Voto com menos filas.
Da Ilha de Luanda até a Avenida Marginal, subi de autocarro 28 da Empresa de Transportes Públicos (ETP). Na multidão espremida, espreitava entre axilas, pescoços e braços a paisagem em movimento, onde o Hotel Panorama exibia a sua velha exuberância apesar do passar dos anos agravadas pelo sal do mar.
Os machibombos articulados de marca Volvo, papavam as bichas que se formavam nas paragens e a seguir partiam velozes entre gritos e gemidos de passageiros amedrontados pelas curvas e ultrapassagens. O ai na rotunda da Fortaleza S. Miguel!
No Bailezão, o autocarro 28 cuja rota terminava no Porto de Luanda, parava e despejava alguns dos seus passageiros para que estes pudessem apanhar outros machimbombos como o 32 e 33. Os dois tinham como destino o Bairro Cazenga. O primeiro, tinha o seu término acerca de mil metros do entroncamento da Cuca e o segundo ia até ao Cemitério Catorze, passando pelo centro recreativo Cubata, Mãe-Preta e a fábrica de vulcanização de Pneus, Mabor.
Desembarquei no largo Saydi Mingas, perto do BNA, e parti a pé até ao largo Luniamege, na Rua 1º Congresso do MPLA, pertinho do cine Nacional. Aí estava o término do autocarro 27, que seguia até ao bairro Benfica. Haviam duas opções: o 27-A seguia pela Revolução de Outubro, passando pela FAPA- DAA, Bairro Rocha Pinto e até ao destino. E o 27 que tomava a rota do Supermercado Zamba 2, seguindo para Morro da Luz, Corimba, Futungo de Belas...
Longe das actuais arrelias, a manhã era calma. Ainda me lembro. Era de véspera a chegada dos autómóveis de marca Patrol, Toledo e Passat. Ofuscando os seus antecessores agora rematriculados com a chapa AMF, estes não tardaram em tomar os antigos trilhos dos Urales, LADA’s e WAZ’s. E quanto furor faziam entre os admiradores! Casamento ou relacionamentos frágeis encontraram no Noivo mecânico o melhor pretexto para a ruptura.  
Segui viagem e desembarquei no Zamba 2. Caminhei aparantemente descontraído para a Assembleia de voto, implantada no interior da Escola situada no Jardim do Bairro Azul. A fila já não era longa. Esperei ansioso. Ao chegar a minha vez, o coração acelerou. Tive medo. Meus Deus! E se eu errar... Era a primeira vez que eu iria votar e o meu voto tinha um sabor muito especial, pois punha fim a vários anos de uma guerra atroz. Era como se sobre mim pairasse a pesada missão de resolver o que os generais desconseguiram no teatro de operações.
Naqueles derradeiros metros que me separavam da mesa, um turbilham de lembranças e conjecturas baralhavam a realidade feito um caleidoscópio. Rezei. Quero viver em paz, quero trabalhar em harmonia, ter uma casa condigna e cuidar da família. Quero voltar a estudar e viver com normalidade uma vida saudável. Ah, reencontrar os meus pais...
E momentaneamente refugiei-me nas noites sublimes e coroadas por personagens de fábulas como a lebre e cágado. Era uma vez!... Quem chegará primeiro à meta. Com desgosto, percebo que hoje as noites ganharam um outro ingrediente rompendo as viseiras rurais e impondo um consumo obrigatório e cíclico de telenovelas importadas.
Aproximo-me e recebo o Boletim de Voto, suspiro e dirijo-me com vigor para a cabine. Coloco o Xis no quadradinho, dobro com cuidado o papel e deposito-o na urna.
Ao sair, senti-me incrivelmente aliviado e feliz, como se tivesse com o acto retirado sobre os ombros um enorme fardo que transportara durante vários e longos anos.
Dias depois, a frustração. O recomeço da guerra  com o seu cortejo de mortes. Tinha consciência das dificuldades com que se debatia o processo de paz, mas ainda assim acreditava na capacidade dos homens em ultrapassá-las.
O sonho de voltar às urnas hibernou durante 16 anos. Foram anos de reiteradas esperas e de um acumular de mágoas e decepções.
Quatro anos após a assinatura do Memorando do Luena em 2002, eis que se nos oferece mais uma oportunidade de exercer o direito de cidadania. Era preciso concolidar a paz, reconstruir as infraestruturas rodoviárias e ferroviárias. Construir escolas, hospitais, estabilizar e desenvolver de forma sustentável a economia. Baixar a inflação para dois dígitos, regularizar o fornecimento da água e da energia eléctrica. Aprofundar a reconciliação e a unidade nacionais. Em fim, resgatar o amor e a concórdia, curando e cicatrizando as feridas abertas no corpo e na alma . Por isso, no dia marcado, cheguei ao local da votaçao e Xis. Sabia o que queria. Era impossível errar o quadradinho.
31 de Agosto de 2012. Depois de uma campanha eleitoral em que cada um dos concorrentes teve a oportunidade de expor os seus argumentos com a perspectiva de angariar um maior número voto, é chegada a hora.
Todavia, no processo eleitoral é importante e crucial para o bem-estar comum que todos coloquem a pátria, Angola, acima dos seus interesses pessoais.
Faltam pouco menos de um dia. Passados 20 anos após as primeiras eleições multipartidárias realizadas em 1992, quero reiterar o meu voto de fé numa Angola reconciliada e próspera. Sonho com uma sociedade sem qualquer tipo de exclusão.
Não diga que a canção
Está perdida
Tenha fé em Deus
Tenha fé na vida
Tente outra vez!...

Raul Seixas deixa aqui o seu voto de fé e esperança. A vontade transformará o sonho em realidade e o futuro confirmará as nossas esperanças. Acredite!

O ARROZ COM SALSICHAS

Haverá um bairro com o nome mais bonito do que o de Lua cheia? Tive muitos pelo percurso: Má-Língua, Prenda, Nossa Senhora, Bumba, Benfica, Zango… mas Lua Cheia é o mais belo.
Lua Cheia é um bairro antigo do Amboim. Com as suas casas de adobes cobertas de chapa de zingo, vivia-se perfumado por flores de café e de maracujá. Durante o dia, as sirenes das fábricas eram o relógio que condicionava a vida dos moradores. Era um espaço mágico, onde Modesto era nome do comerciante mais popular do bairro, homem simples que vendia bolachas, pão quentinho e sandes de peixe frito.
O Luar, banhando a terra com o seu romantismo, depois se escondia por detrás da casa do sô Modesto. Só mais tarde o vocabulário ensinou aos alunos nativos o verdadeiro significado da palavra. Modesto é aquele que pensa a seu respeito ou fala de si mesmo sem orgulho; despretensioso; humilde, moderado, desambicioso, simples, pobre.
Alheios, corríamos atrás das sombras e olhávamos para a lua-cheia, onde buscávamos a imagem da Nossa Senhora de Fátima com o menino Jesus ao regaço. À volta da fogueira, as noites eram sublimes e coroadas pelos personagens das fábulas como a lebre e o cágado.
O luar e as estrelas pendiam sobre a paisagem sombreando com o seu lápis as casas, as árvores e as montanhas. Os narradores, mesmo desconhecendo a técnica de interpretação de actores da Commedia dell’arte como Arlequim e Patalone, com empatia faziam a plateia sonhar.
Feitos prisioneiros da alegoria de Platão, dando asas à imaginação, fugia-se da caverna para livres transpor-se a cordilheira de barreiras que cercavam a vida. A plateia cantava, dançava e respondia animada e em uníssono às questões do narrador. Todos eram partícipes e juntos teciam os fios da estória, pois não havia lugar para figurantes.
O candeeiro resignava-se com o espaço domiciliário e nunca ousava andar ao luar, onde os enamorados trocavam as confidências que guardavam seus corações apaixonados. O tempo passou, o cenário mudou.
Hoje as noites ganharam um outro ingrediente, rompendo as viseiras rurais e impondo um consumo continuado de telenovelas. E o ritual obrigatório de sentar-se numa poltrona e seguir o enredo enchendo a cabeça de estórias alheias. As disputas pelo comando da Televisão comprometeram a unanimidade. Em nome da concórdia e da coesão, o refúgio é o consenso do quarto, onde todas as noites, alertado pelo indicativo, o meu garçon sorridente emerge da penumbra e senta-se ao meu lado.
Ele é amigo de longa data e acompanha-me aonde eu estiver. Consola-me quando choro, anima-me quando triste, faz-me sorrir, dá-me de comer e de beber. É fiel desde os tempos do pré-escolar. Conheci-o por acaso ao passar diante do restaurante Guaraná, quando me encaminhava para o Jardim Escola, da cidade da Gabela.
Às 12H30, no regresso, a fome espreitava na sala cheia e o tempero baralhava os sensores do cérebro, pois, aquela refeição tinha condimentos que inundavam as redondezas. Era uma combinação harmoniosa da cebola, pimenta, alho e folha de louro, salsa e outros. Quem não queria passar naquele local à hora do almoço.
Actualmente a imaginação tenta refogar feijão com cebola, alho, salsa, mas na época não era comum. Nem sei se o resultado é o esperado.
Habituado aos pratos da aldeia, ao se aproximar a hora do almoço, as lições ficavam para o esquecimento, pois a concentração vagueava nas portas de restaurantes como Guaraná, Central, Esmeralda, Aquário, Bar Estrela e outros. Sonhava o dia em que pudesse provar o paladar dos pratos denunciados por aqueles temperos que perfumavam a cidade.
Até aí apenas conhecia o arroz do Natal de Jesus que era cozido com óleo de palma queimado. O mesmo óleo que entrava como ingrediente fundamental na confecção da quipicula, funge feito com óleo de palma e sal. Poucos se lembram deste prato da fome. Mas fez sua época, durante a plantação do algodão em Porto Amboim.
Era dia da independência nacional. A alegria pairava no ar como fogo de artifício, tornando impossível qualquer indiferença. Todos estavam tocados pelo evento e felizes partilhavam tudo que tinham em casa por pouco que fosse: pão, banana, garapa ou vinho tinto guardado à propósito para o momento tão especial. Era preciso dar vasão ao impulso que vinha bem no fundo do coração.
Independência, dipanda… um novo vocábulo ganha espaço no linguajar local. O tempo foi passando e lentamente, como a poeira que se decanta sobre as plantas, a rotina foi tomando o seu lugar ajustando-se à vida comum de pequenas aldeias.
Numa tarde, depois de chegar da lavra, vi a minha mãe a abrir com a faca uma lata de salsicha, logo fiquei feliz. Iria comer a novidade vinda de longe e embebida por molhos de outras culturas. Já conhecia o sabor da sardinha enlatada, mas da salsicha e do presunto eram novidades trazidas pela revolução através das Lojas do Povo.
A minha mãe, coitada, ainda feriu o dedo polegar ao abrir a lata. Tudo era novo. Todos se aproximaram curiosos para espreitar o produto que pelo formato facilmente provocou gargalhadas insinuadas por outras coisas da vida guardas no disco. Outros se retiravam horrorizados, dizendo tratar-se de dedos humanos de operários incautos, cujas mãos foram colhidas pela guilhotina. Nunca ouviram falar em corta-cabeça? Então, quem corta a cabeça de uma pessoa tem algum remorso ao cortar os dedos de alguém? A busca da resposta gerou outra controvérsia.
Portanto, arroz já estava pronto, faltava apenas juntar-se-lhe a salsicha, mas o problema estava em saber se o líquido também devia ser usado. Alguém introduziu o dedo indicador na lata e provou com a língua, facto que agudizou o conflito. O líquido tinha sal.
Uns diziam que SIM outros diziam que NÃO. Os do NÃO eram a minoria e defendiam que as salsichas deviam juntar-se ao arroz e o líquido jogado fora, mas estes não tinham argumentos suficientes, convincentes, para persuadir os do SIM. Impacientes, na ausência de consenso, despejou-se as salsichas e o líquido, salmoura, sobre o arroz, que depois de provado ficou sem clientes.
Um dos SIM ao provar, fez uma cara de horror. Estava tudo salgado e estragado. Todos ficaram sem tomar a refeição por não terem sabido encontrar a melhor e a correcta opção que beneficiasse toda a família, mas era tarde para remediar o jantar estragado. Os do NÃO culparam os do SIM.
Tudo ocorreu devido a ausência de reflexão profunda e distanciada na tomada de decisão sobre um aspecto que era de importância capital para todos: o arroz com salsichas.
Todas a vezes que vou ao supermercado, lembro-me deste episódio e do dramaturgo alemão Berlot Brecht: "O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo". Afinal de contas, continuam perenes os ensinamentos deixado por si na peça: "Aquele que diz sim e aquele que diz não". O diálogo ilumina os caminhos obscuros da sabedoria e da busca do bem-estar comum.
Bom apetite!

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Conversa com o herdeiro!


Os tempos mudaram! Ontem eu era jovem como tu. Sim! Não te parece? Incrível, você pensa que eu nasci com rugas, cabelos brancos e queixas de reumatismo crónico nas pernas! Eu fui um rapaz bonito, brincava, corria, jogava futebol, pulava de alegria, dançava a noite inteira e sonhava como vós sonhais!

O tempo é voraz, a idade avança e se evaporam os sonhos, se entorpecem os músculos e se envelhecem as esperanças. Esse é o ciclo inevitável da vida, meu filho! E apesar de tudo, é preciso nunca perder a temperança.

Sabes por que chilreiam os pássaros ao amanhecer e também ao pôr-do-sol?... Filho, você está crescido, sente-se aqui ao meu lado e ouça! Ainda ontem eras uma criança frágil. Quando você nasceu, me lembro como se fosse hoje, tinhas o rosto redondo e bochechas avermelhadas! As parteiras chamavam-te kamatama. Nasceste com 3 quilos e 800 gramas. Era um homenzinho e com um vozeirão que nem TIM MAIA! Choravas muito, ah mas como choravas! Houve noites em que a tua mãe e eu entravamos em aflição, pois não sabíamos o que se passava contigo. Se era dor do ouvido, bucho virado, maculo, mau-olhado ou sei lá o quê! Olha, tu ganharias qualquer concurso de choro, juro! Olha, sê empreendedor, podes investir na criação de uma Agência Nacional de Carpideiras de Angola (ANCA), para atender velórios de gente sem família! Papá, não gosto disso! Calma, filho!… Isso é normal, as crianças ao nascer têm rosto grosseiro. Olha filho, preste atenção no que lhe vou dizer…

Há mais de uma semana que ando atrás do senhor, só hoje é que o pai quer conversar comigo? Claro que reconheço o facto de eu nem sempre ter tempo suficiente para pelo menos jantarmos juntos e aproveitarmos a oportunidade de trocarmos impressões sobre as mais variadas coisas da vida.

Mas em nenhum momento eu me esqueci de ti. Eu sempre gostei de ti. Digo isso com toda a sinceridade do mundo, porque tu és das coisas mais importantes da minha vida. Que isso papá? Eu não acredito que esteja a falar a verdade! Eu não sou a coisa mais importante da sua vida, pai! Sou sim o primeiro do círculo de suspeitos de tudo que de errado ocorre nesta casa. Me são atribuídas as tarefas mais difíceis e penosas e ainda depois dizem: “Assim foi temperado o aço”. Meu Deus, não fui eu quem jogou pedra na cruz!...

Enquanto os outros vão à escola de automóvel, eu devo caminhar a pé ou de candongueiro por alegada falta de dinheiro. Para comprar uma simples calça, é uma luta. O cartão da parabólica acabou faz tempo e tudo continua calmo que nem as águas da Baía de Luanda. Ninguém diz nada! Agora, nem telenovelas devemos ver, pois aparece sempre o protagonista que busca argumentos no passado, na sua tradição, para nos acusar de múmias! Para ele, o Kuduro é coisa para bandidos, marginais, digo, a escória, para usar o seu português importado. Sempre: ah, porque no meu tempo não era assim. Esquece-se que nem sempre as lições do passado servem para ler o futuro.

Eu agora virei coisa?… É assim que se coisificam as pessoas?... Agora sei, enquanto a tua filha está sempre a ser tratada como ovo, eu sou o osso que só serve para sopa ou feijoada. Outros têm bolsa de estudo no exterior, recebem mesada, viajam pelo mundo e desfilam por Luanda em limousines, enquanto nós nem soubemos o que comer logo ao jantar.

O pai suspirou, espreitou na porta semiaberta da cozinha e fez aquela cara de cansaço e impaciência. Meu filho, sabes quanto ganho por mês? E o abono de família! Já não tens direito! Na tua idade, eu já trabalhava. E você? Com mais de 25 anos continuas a viver de mesada. Tudo para ti é difícil e complicado, nunca és indivíduo decidido e perseverante, não te aplicas para realizares o teu sonho. Vives seguindo modelos alheios, modismos, coisas supérfluas, chicletes. Ontem querias estudar no exterior, pagamos uma bolsa na Namíbia. Depois de seis meses voltaste de férias e nunca mais quiseste ouvir falar do curso de engenharia. Dei-te dinheiro para a matrícula na escola de condução, até hoje nada! Os teus colegas há muito trabalham e você continua encalhado aqui em casa, pedinte. Só se presta ajuda àquele que esteja a fazer algo. Caso contrário, nem Deus o socorrerá.

Pai, eles têm tido oportunidades. Sempre estudaram em boas escolas. Já distribui o curriculum em várias instituições, mas até agora apenas em cinco fui chamado para entrevista. Continuo a espera. Tudo é esquema, o critério não é a competência.

Meu filho, diga-me uma coisa! Que patrão contrataria um indivíduo que usa cabelo grande e despenteado, unhas compridas, brinco na orelha e calças arreadas? Você assusta o patrão! Devias ganhar prémio de melhor espectador do mundo! És um autêntico abacate, sentastes à frente desta TV e apodreces aí mesmo na poltrona. Um homem assim, feito carro de mão, nem a mulher pode contar com ele para mudar uma simples lâmpada da sala. Todos os dias nem te apercebes quando saímos, aliás, naquela hora ainda estás no quarto sono. Pudera, dorme tarde devido ao bate papo com as garotas e amigos no facebook.

Nós saímos às 4H30 para não pegar o trânsito engarrafado e voltamos a encontrar-te no mesmo lugar. Com todos estes perigos do trânsito e da bandidagem, durante o dia nem se sequer te preocupas em saber se nós chegamos bem ao centro da cidade. Tu não fazes ideias do número de pessoas que morre poucos minutos depois de acordar?... Olha, nós já encontramos muitos caídos a esvair-se em sangue no asfalto negro das estradas.

Ao chegarmos a casa no fim da jornada, voltamos cansados nem prazer temos de comer. Buzinamos para abrirem o portão, mas nenhum de vós se levantais para o fazer, pois estão distraídos com a TV ou com o playstation e PSP. Nós trabalhamos todo o dia e ainda por cima, depois do trabalho temos de fazer as compras para alimentar todos os membros da família. Ao chegar a casa, não vemos ninguém para descarregar os produtos. Depois eles são os primeiros a se embutir de banana, laranja ou a beber o sumo e a gasosa.

Não estás preocupado connosco, com a nossa vida, com o nosso trabalho, senão com o dinheiro para tudo que precisas. Quem trabalha passa por dificuldades e humilhações no local de trabalho. Você desconhece o que é trabalhar e ser subordinado de uma cadeia enorme de hierarquias! Os sapos que temos de engolir. Ingrato! Não lava a loiça, não lava a roupa, não sabe engomar, aliás não sabe fazer nada, porque os tempos são novos.

Não queres aprender a cozinhar, porque é coisa feminina, ai é? A vida é dura e só os fortes sobrevivem diante dos lobos. Pergunte à gazela, quanto perigo corre na selva para dormir e acordar! Basta veres a quantidade de predadores que gostaria deliciar-se com a carne de veado! Homens, leões, leopardos, hienas, lobos, jibóias e etc. Quem está na camada mais baixa da cadeia alimentar ou profissional vive esse mesmo drama todos os dias. Pois se não fosse assim ainda hoje os dinossauros estariam vivos.

Pai, se não parar de falar, jamais poderei contar-lhe o meu problema. Mas qual é o problema? Pai, ontem ao sair com o carro da mãe, bati, digo, não bati, raspei num Jeep daqueles que estão na moda. Quero pedir a sua ajuda para resolver o problema. O dono é… Como que se dá a chave do carro a alguém desencartado? O mimo, o excesso de protecção impede que cresçam! Veja a tua irmã! Ela lutou até ingressar na Faculdade, finalizou com distinção, conseguiu emprego. Pai, ela é dama! Cala essa boca! Ela foi sempre uma estudante do Quadro de Honra! É dedicada e disciplinada. É competente! Você é vaidoso, preguiçoso e indisciplinado! Contrário de ti, sabe ouvir conselhos! Sempre disse p’ra não ficar muito próximo da TV. Resultado, estás com dor de vista e obrigado a usar óculos. Quem paga, eu, sempre eu! Sempre disse para não comer coisas muito doce como rebuçados, doces etc. Ninguém ouviu a voz do homem ultrapassado, vulgo papoite! Resultado: tem de ir ao dentista para restaurar os dentes cariados. Os dentistas são caros! Disse que deviam ao menos aprender a cozinhar, mas quando a empregada faltou, todo mundo ficou a andar a toa. O lixo da noite, fica guardado em casa, até a empregada voltar ao trabalho. Não me espantaria se um dia a empregada passar a dar-te banho! Está a falar atoa! Você não me respeita, meu filho: ameaças os teus irmãos na minha presença, inclusive noutro dia, pegastes num pau de fazer funge para espancá-los debaixo dos meus olhos!... Eu não sou eterno!... Você também é homem como eu, terás mulher e filhos, vais lembrar-se das minhas palavras! E vai se preparando, esta casa é alugada! Quando eu morrer, não desejo filho algum fazer-me companhia na cova. A morte é individual e radical!… Olha, pare de chorar, o dono do Jeep está no portão! Coragem! “Assim foi temperado o aço”!