quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O ARROZ COM SALSICHAS

Haverá um bairro com o nome mais bonito do que o de Lua cheia? Tive muitos pelo percurso: Má-Língua, Prenda, Nossa Senhora, Bumba, Benfica, Zango… mas Lua Cheia é o mais belo.
Lua Cheia é um bairro antigo do Amboim. Com as suas casas de adobes cobertas de chapa de zingo, vivia-se perfumado por flores de café e de maracujá. Durante o dia, as sirenes das fábricas eram o relógio que condicionava a vida dos moradores. Era um espaço mágico, onde Modesto era nome do comerciante mais popular do bairro, homem simples que vendia bolachas, pão quentinho e sandes de peixe frito.
O Luar, banhando a terra com o seu romantismo, depois se escondia por detrás da casa do sô Modesto. Só mais tarde o vocabulário ensinou aos alunos nativos o verdadeiro significado da palavra. Modesto é aquele que pensa a seu respeito ou fala de si mesmo sem orgulho; despretensioso; humilde, moderado, desambicioso, simples, pobre.
Alheios, corríamos atrás das sombras e olhávamos para a lua-cheia, onde buscávamos a imagem da Nossa Senhora de Fátima com o menino Jesus ao regaço. À volta da fogueira, as noites eram sublimes e coroadas pelos personagens das fábulas como a lebre e o cágado.
O luar e as estrelas pendiam sobre a paisagem sombreando com o seu lápis as casas, as árvores e as montanhas. Os narradores, mesmo desconhecendo a técnica de interpretação de actores da Commedia dell’arte como Arlequim e Patalone, com empatia faziam a plateia sonhar.
Feitos prisioneiros da alegoria de Platão, dando asas à imaginação, fugia-se da caverna para livres transpor-se a cordilheira de barreiras que cercavam a vida. A plateia cantava, dançava e respondia animada e em uníssono às questões do narrador. Todos eram partícipes e juntos teciam os fios da estória, pois não havia lugar para figurantes.
O candeeiro resignava-se com o espaço domiciliário e nunca ousava andar ao luar, onde os enamorados trocavam as confidências que guardavam seus corações apaixonados. O tempo passou, o cenário mudou.
Hoje as noites ganharam um outro ingrediente, rompendo as viseiras rurais e impondo um consumo continuado de telenovelas. E o ritual obrigatório de sentar-se numa poltrona e seguir o enredo enchendo a cabeça de estórias alheias. As disputas pelo comando da Televisão comprometeram a unanimidade. Em nome da concórdia e da coesão, o refúgio é o consenso do quarto, onde todas as noites, alertado pelo indicativo, o meu garçon sorridente emerge da penumbra e senta-se ao meu lado.
Ele é amigo de longa data e acompanha-me aonde eu estiver. Consola-me quando choro, anima-me quando triste, faz-me sorrir, dá-me de comer e de beber. É fiel desde os tempos do pré-escolar. Conheci-o por acaso ao passar diante do restaurante Guaraná, quando me encaminhava para o Jardim Escola, da cidade da Gabela.
Às 12H30, no regresso, a fome espreitava na sala cheia e o tempero baralhava os sensores do cérebro, pois, aquela refeição tinha condimentos que inundavam as redondezas. Era uma combinação harmoniosa da cebola, pimenta, alho e folha de louro, salsa e outros. Quem não queria passar naquele local à hora do almoço.
Actualmente a imaginação tenta refogar feijão com cebola, alho, salsa, mas na época não era comum. Nem sei se o resultado é o esperado.
Habituado aos pratos da aldeia, ao se aproximar a hora do almoço, as lições ficavam para o esquecimento, pois a concentração vagueava nas portas de restaurantes como Guaraná, Central, Esmeralda, Aquário, Bar Estrela e outros. Sonhava o dia em que pudesse provar o paladar dos pratos denunciados por aqueles temperos que perfumavam a cidade.
Até aí apenas conhecia o arroz do Natal de Jesus que era cozido com óleo de palma queimado. O mesmo óleo que entrava como ingrediente fundamental na confecção da quipicula, funge feito com óleo de palma e sal. Poucos se lembram deste prato da fome. Mas fez sua época, durante a plantação do algodão em Porto Amboim.
Era dia da independência nacional. A alegria pairava no ar como fogo de artifício, tornando impossível qualquer indiferença. Todos estavam tocados pelo evento e felizes partilhavam tudo que tinham em casa por pouco que fosse: pão, banana, garapa ou vinho tinto guardado à propósito para o momento tão especial. Era preciso dar vasão ao impulso que vinha bem no fundo do coração.
Independência, dipanda… um novo vocábulo ganha espaço no linguajar local. O tempo foi passando e lentamente, como a poeira que se decanta sobre as plantas, a rotina foi tomando o seu lugar ajustando-se à vida comum de pequenas aldeias.
Numa tarde, depois de chegar da lavra, vi a minha mãe a abrir com a faca uma lata de salsicha, logo fiquei feliz. Iria comer a novidade vinda de longe e embebida por molhos de outras culturas. Já conhecia o sabor da sardinha enlatada, mas da salsicha e do presunto eram novidades trazidas pela revolução através das Lojas do Povo.
A minha mãe, coitada, ainda feriu o dedo polegar ao abrir a lata. Tudo era novo. Todos se aproximaram curiosos para espreitar o produto que pelo formato facilmente provocou gargalhadas insinuadas por outras coisas da vida guardas no disco. Outros se retiravam horrorizados, dizendo tratar-se de dedos humanos de operários incautos, cujas mãos foram colhidas pela guilhotina. Nunca ouviram falar em corta-cabeça? Então, quem corta a cabeça de uma pessoa tem algum remorso ao cortar os dedos de alguém? A busca da resposta gerou outra controvérsia.
Portanto, arroz já estava pronto, faltava apenas juntar-se-lhe a salsicha, mas o problema estava em saber se o líquido também devia ser usado. Alguém introduziu o dedo indicador na lata e provou com a língua, facto que agudizou o conflito. O líquido tinha sal.
Uns diziam que SIM outros diziam que NÃO. Os do NÃO eram a minoria e defendiam que as salsichas deviam juntar-se ao arroz e o líquido jogado fora, mas estes não tinham argumentos suficientes, convincentes, para persuadir os do SIM. Impacientes, na ausência de consenso, despejou-se as salsichas e o líquido, salmoura, sobre o arroz, que depois de provado ficou sem clientes.
Um dos SIM ao provar, fez uma cara de horror. Estava tudo salgado e estragado. Todos ficaram sem tomar a refeição por não terem sabido encontrar a melhor e a correcta opção que beneficiasse toda a família, mas era tarde para remediar o jantar estragado. Os do NÃO culparam os do SIM.
Tudo ocorreu devido a ausência de reflexão profunda e distanciada na tomada de decisão sobre um aspecto que era de importância capital para todos: o arroz com salsichas.
Todas a vezes que vou ao supermercado, lembro-me deste episódio e do dramaturgo alemão Berlot Brecht: "O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo". Afinal de contas, continuam perenes os ensinamentos deixado por si na peça: "Aquele que diz sim e aquele que diz não". O diálogo ilumina os caminhos obscuros da sabedoria e da busca do bem-estar comum.
Bom apetite!

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