No
cimo do seu orgulho muangolê, sorri: Kupapata, Kuduro, Kaenche, Quinguila,
Quilápi…! E admira a força e a facilidade com que o popular consegue introduzir
novos termos linguísticos, ou seja neologismos, no vernáculo oficial. Queda-se
na empatia de heróis do guetto, como “Nagrelha”, “Dadão” e outros, que
transformaram rapidamente o país num gigante e afinado grupo coral: Moré, moré Moré, moré … Corré, corré, corré,
cooooorré!
Espirra
e olha de soslaio as pedras e blocos colocados sobre as chapas para segurarem o
tecto das tempestades. Todo candidato a Governador de Luanda devia sobrevoar a
cidade durante várias horas, antes de aceitar a proposta!
Suspira.
Liga o reprodutor e a música suave do octogenário Nga Petelo afaga a alma e dá
um outro colorido à sua manhã. O músico, aos 80 anos, prepara a apresentação do
seu primeiro disco. É como se a vida começasse aos 80. Bem-haja, antes tarde!
Emerge
relutante do sublime! Naquele instante, trava bruscamente para superar um
buraco no pavimento e esboça um sorriso ao avistar um outro carro com vidros
todos fumados. Essa aí vai passar despercebida. Investe num “noivo mecânico”,
ou para passar invisível, como uma ilustre desconhecida.
Afastou
esses pensamentos e prosseguiu calmo e indiferente às traquinices dos taxistas,
à arrogância dos automobilistas e ao desmazelo dos ambulantes, que fechavam a
via com os seus embrulhos.
Desceu
paciente até à baixa luandense. Era importante manter a serenidade, pois sabia
o que o esperava no guiché da empresa que era obrigado a contactar naquele dia.
Era cliente antigo e perdera o número de vezes que fora atendido sempre por aquelas
duas funcionárias. Ela eram as donas do espaço. Conheceu-as ainda jovens e esbeltas!
Ah, como o tempo foi daninho para aquelas duas criaturas!
Sabia
as suas vidas de cor e salteado. Quanta inconfidência! Se ela viajou para o
Dubai com o marido, as compras que fez, o hotel onde se hospedou. Toda a
empresa e a restante clientela sabiam o que trazia na bagagem para revender à
quilápi a todos que desejassem. Os pedidos de noivados e os casamentos em que
participara, o cabelo da noiva, a roupa do noivo, o buffet e as censuras sobre
a cor do batom, do vestido ou dos sapatos femininas das convivais. Toda a vida
andava às claras no guiché, esventrada pela má-língua, sem quaisquer fronhas.
Aquelas
duas há muito eram colegas numa empresa pública na baixa de Luanda. As
amicíssimas eram parecidas pelo volume dos pneus na região do abdómen, pela cor
da peruca e na lentidão como se locomoviam durante o atendimento. Nunca tinham
pressa e eram imunes às reclamações: Aqui não é casa da mãe Joana! O senhor não
manda aqui! Se quiser vai passear! Incrível, uma delas chamava-se exactamente
Joana!
Não
adiantava reclamar, talvez elas tivessem os seus corpos envoltos em colectes
protectores contra qualquer perfurante! Nunca se sabe, quem fala assim não é
gago! Por isso, a prudência recomendava sobretudo ponderação! Seguro morreu de
velho ou de medo?
Quem
nunca ouviu falar delas, que também eram conhecidas pela rabugice no
atendimento e por isso acumulavam sacos de censuras do público por ficarem a
conversar, enquanto deviam trabalhar? Este e outros comportamentos semelhantes
que levaram muitas empresas a caíram na falência e, na curva, algumas entregues
de quiabo para a outra gestão.
A
chegada dos telemóveis agravou ainda mais o sofrimento de quem procura os serviços
daquela instituição. Ontem a conversa versava sobre o cônjuge da Joana.
Comentavam: Mas um homem que é homem de verdade nem casa própria tem? Uh, a
fulana, ela sim, é que se casou de verdade. Tem casa própria e carro novo na
garagem. Agora nós, é só esfrega!
Há
tanto tempo que estamos a construir a casa mas as obras não acabam. Parece obra
de igreja! Quando começamos, eu estava grávida da minha primeira filha! É? Quantos
anos tem o seu marido? … JÁ DEU CACHO. Nesta idade ainda vive na casa de renda!
É VERGONHOSO! Estou cansada de mudar de bairro todos os anos. A família até
pensa que estás a fugir das dívidas. Olha, melhor assim, também há família do
marido que é um verdadeiro horror. Só falta uma declaração de guerra. É
verdade! Hoje estás aqui, amanhã estás não sei lá aonde! De tanto mudar de casa
ainda acabas por chorar óbito sozinha. Pelo menos, não te vão expulsar da casa!
Cambadas de ambiciosos, quando trabalhamos eramos só os dois na vida até que a
morte nos separasse, mas depois aparecem outros figurões! É verdade, pelo menos
nunca vão saber para onde te mudastes. Se não fosse os telemóveis estávamos
perdidos no meio urbano! Somos embora ciganos!
Mas
o problema é que a mobília não dura por causa das mudanças frequentes. O meu
sofá que comprei na última viagem, você nem acredita como ele ficou depois do
Coqueiros. Está todo rasgado. Também, do jeito que seguram as coisas, aquilo
até parece que estão com inveja. Esses raboteiros sabem o que é boa mobília?
E
a outra sorriu. Roboteiro. Raboteiro? Vem de quê, de rabo?... Nem sei. Talvez
de robô. Ya, meu marido também disse que vinha da palavra russa rabota, que
quer dizer. Trabalha! Imagino os russos a gritarem para o angolanos: Rabota!
Rabota! Rabota! Sorriram longamente e fecharam com o gesto de bater as mãos abertas uma na outra. Hum, até já virei
gira-bairro, disse a outra, enquanto colocava os óculos para atender um cliente
que lhe havia aproximado a ficha até bem perto do rosto.
Não
precisa esfregar-me o tal papel na cara. Eu não sou cega!... O homem ficou
calmo, olhou-lhe nos olhos e estendeu-lhe a mão fechada com o punho virado para
baixo. E a tempestade evaporou-se numa onde de espumas. Sabia o remédio certo.
Ele continuou calmo. Não queria estragar a promessa de não se irritar naquele
dia. Aguentou como pôde e finalmente suspirou de alívio quando se viu livre
daquelas duas. Mas o seu diálogo sobre a casa de aluguel o perseguiu.
Interessante!
Numa cidade em que tem-se dificuldade de se indicar o endereço, porque
anualmente mudamos de casa, num verdadeiro nomadismo urbano. Interessante,
conhece-se novos lugares, novos vizinhos com seus bons-raros hábitos e
maus-copiosos-vícios. Arrastam o saco de lixo escada a baixo, estaciona
enviusado fechando as outras viaturas, e quando chamado, manda passeia a buala
toda, buzina à meia-noite para abrirem a porta do apartamento no 9º andar. Pára
para conversar com o outro automobilista seu amigo e esquece os restantes,
rabujando ao ser incomodado. Depois dizem que gente que nasceu na esteira no
quimbo é que se comporta assim.
Há mais
30 anos, ou melhor desde os 18 anos que se está na procura angustiada de uma
casa condigna para se morar. O fim de cada ano, renova-se a esperança no ano
seguinte. E o caso habitação perpetuou-se na agenda das prioridades. Angustia-se,
sobretudo para quem aos 50 anos, depois de tantos programas quinquenais, ainda
tenha a casa do sonho pendurada no plano.
Casa de
aluguel é um fenómeno urbano, porque nas aldeias, quem quer habitação construía
com os materiais locais. Tudo que se necessitava estava aí à mão de semear: terra,
paus, pedras e capim.
A conjuntura, marcada pelo êxodo das
populações das províncias para Luanda, fruto do conflito, propiciou o aumento
vertiginoso da procura por habitações. Assim a década 80 e 90 do século passado
foram os mais marcantes no que diz respeito aos despejos administrativos, por
falta de documento que legalizavam a posse de determinada habitação.
Inexistem
dados estatísticos para fiabilizar essa afirmação, mas há realidades que se
constatam sem a frieza dos números. Para quem viveu aquela época na cidade de
Luanda, mesmo sem óculos, chegaria à presente conclusão. A desonestidade ganhou novos e fortes
adeptos!
Certo
dia com a ajuda de um amigo obteve informações fidedignas de que o apartamento
estava sem qualquer proprietário. Pois o inquilino, vendo-se incapaz de
liquidar o aluguel atrasado de vários anos de inadimplência, numa noite saiu
sorrateiramente depois de construir a sua casa no bairro da Petrangol.
O
caminho estava aberto. Dia seguinte, fez deslocar uma patrulha. Elaborou-se o
requerimento dirigido ao Comissário Provincial de Luanda. Naquela altura, bastava
vigiar um apartamento durante uma ou duas semanas, caso não se notasse qualquer
presença humana, para que se pudesse despoletar o competente processo de
denúncia e consequentemente de despejo.
É assim que a bananeira deu
cacho, imbondeiro sumo e gelado, mas ele ficou a espera. E como cigano continua
a cantar:
Hoje tô aqui/amanhã ali/Benfica, Cacuaco/ não
tenho endereço/não Zango não/se quiser espera/na porta do Camama! Viva sem
fronhas/Nem amortecedores
Viva os ciganos urbanos!
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