Era
sempre assim. Seguíamos tranquilos a rotina das nossas vidas humildes, como o
rio Mazungue faz o seu percurso, descendo silencioso o mesmo leito de
antigamente.
Lá
em casa, a mesa farta se enchia de algazarra nas horas das refeições, mas
quando a estiagem minguava a colheita, o prato de funge e de feijão tornavam-se
comuns para toda a miudagem. Era a melhor forma para distribuir o pouco que se
tinha na dispensa. Os adultos vigiavam cada colherada, sendo a desonestidade no
encher a colher ou no comer apressado entulhando a boca de alimentos, punidas
com censura ou com a suspensão temporária de voltar ao prato até que os demais
recuperassem o atraso. Quem fosse último, lavaria os pratos, porém, apesar da
fome, poucos aceitavam essa empreitada, saltando antes de ser declarado
comilão.
Dezembro
de 1973. Ainda fervilhava a saudade do paladar dos pratos feitos com folhas de
mandioqueira, de abóbora e rama de batata. Na fome, as folhas de gindungo e
mamoeiro viravam também alimento.
Foi
na busca da sobrevivência, que meu pai acordou cedinho, aprontou a sua moto
vermelha de marca Floret e partiu. Passou na Boa-Entrada, desceu o morro da
Giraul e passou pelas salinas com destino às Cachoeiras da Binga, ali perto do
Novo Redondo (actual Sumbe). Na bagagem amarrada no suporte com fitas de
borracha, levava sal para a carne de prováveis presas. Ao chegar, com a sua
arma de bala 375 embrenhou-se na profundidade da mata dominada por gordos
embondeiros e cactos altos.
Semanas
depois, vimos uma carrinha a aproximar-se da nossa casa. Na carroçaria, estava
sob a lona, a perna e o braço de uma pacaça. Perfilados, esperamos
sobressaltados. O condutor era-nos estranho. Mal o carro parou, abriu-se com
vigor a porta do pendura. Era o meu pai!
Contrariamente
ao que era normal, todos ficaram assustados, pois ele trazia a cabeça envolta
em ligaduras ensanguentadas. Tremi. Minha mãe, correu com os braços abertos na
sua direcção. Abraçou-o e preocupadíssima quis saber logo o que havia ocorrido
ao seu amor. Sorrateiro, olhou-nos com carinho e a mornes do sorriso que trazia
no rosto, amainou a tortura da espera.
Com
certeza, pensou-se logo em acidente de motorizada, mas não. Na ausência dos
telemóveis de hoje, a notícia tardava a chegar ao destinatário. E se ele jamais
tivesse voltado a casa?
Diante
da impaciência da curiosidade, depois de beber a água de jatona (lata de um
litro transformada em copo), contou animado as suas peripécias.
Numa
tarde, depois de ter perseguido uma manada por mais de dez quilómetros, num
vale, avistou uma pacaça solitária a pastar. Mastigava calmamente. Parou e
olhou à volta desconfiada. A brisa farfalhava a vegetação. O caçador, com
respiração suspensa, rastejou sobre o capim verde. Acomodou a coronha no ombro
direito e fez a pontaria. Premiu o gatilho calmamente e a agulha percutora
veloz atingiu o cartucho. A explosão cortou o silêncio da floresta, despertando
bichos adormecidos ou interrompendo as carícias que a embriaguez do entardecer
propiciava.
O
animal surpreendido pelo disparo, correu desnorteado. Rapidamente, o caçador se
levantou e aproximou-se de um embondeiro. Afastou a folhagem com o cano e
pé-ante-pé, aproximou-se do local, onde antes se encontrara o animal a tomar a
sua última refeição. No rasto, apenas as marcas dos cascos, na hora do arranque
precipitado em prol da vida.
Cinco
metros depois do local, confirmou a sua pontaria sempre infalível. A pacaça
havia sido atingida, mas teve ainda força para fugir.
Com
atenção redobrada e a arma desengatilhada, continuou minuciosamente a
perseguição. Depois de 20 metros, o rasto inverteu para a esquerda descrevendo
a letra U. Com o coração aos pulos, parou e olhou desconfiado para os lados,
foi exactamente naquele instante que a pacaça ferida partiu para a desforra,
atirando os seus mais de 500 quilogramas contra o caçador.
Este
instintivamente saltou feito uma mola antes comprimida e agarrou-se ao ramo de
um arbusto. O chifre do animal atingiu as suas nádegas, na sequência o corpo
foi projectado para cima e a cabeça atingiu os espinhos do ramo do pau-ferro.
Há
cinco metros, a pacaça, ofegante, preparava um novo assalto, quando o caçador,
depois de apanhar a arma fez um novo disparo, atingindo a testa do animal.
Meu
pai era um grande herói. Era a imagem de um homem forte, corajoso e valente
diante do qual nada era impossível. Mesmo ferido gravemente na cabeça, ainda
sorria.
Cresci
com essa imagem masculina depositada no subconsciente até que em 1976, ao
entardecer, ele recebeu a notícia sobre algo que havia ocorrido com a sua mãe,
Lemba Zongo. Papá, está chorar por quê?
A
avó havia morrido de repente na localidade da Gangula, quando regressa da
lavra. Meu pai e minha mãe choraram juntos. Ela enxugava as lágrimas com o
pano. Mamã, é quê? Não respondeu, mas perguntou-me entre lágrimas: tens
fome?... Eu disse que não, mas mesmo assim ela fez o funge, serviu para mim e
continuou a chorar.
Então,
desamparado, também comecei a gritar acelerando as minhas lágrimas. Assim,
ficou abandonado pela primeira vez o almoço. A refeição é agradável, quando
tomada em boa companhia.
Eu
na minha inocência apenas chorava, mas não entendia, o motivo pelo qual estava
aquele homem, que era meu ídolo, com os olhos cheios de lágrimas.
Então
se desfez o mito segundo o qual os homens nunca choravam. No berço, se
inaugurava um ciclo de lágrimas que apenas terminava com o apagar da luz da
vida. Ao nascer, com o primeiro suspiro, uma criança normal chora, caso
contrário os adultos solícitos com palmadinhas nas nádegas obrigar-lhe-iam a
fazê-lo. E se mesmo assim o recém-nascido se mantivesse em silêncio, um mundo
de preocupações invadiriam os pais e os demais adultos.
Para
a criança com a sua angélica fragilidade, o choro é importante, pois passa a
funcionar como um sinal de alarme estridente que alerta os pais de alguma
anormalidade. O grito desesperado da fome pelo leite ou mesmo a reclamação pela
humidade das fraldas descartáveis, cuja promessa da impermeabilidade para as 24
horas consecutivas são apenas publicidade. Essa que desde a ágora vende
ilusões.
Aos
12 anos, termina a infância e é desse período de que tenho mais saudade, talvez
porque tinha mais tempo para brincar e sonhar. Quando se é criança até as
lágrimas possuem sabor que a língua interceptava no seu trajecto descendente.
Eis
a lição das crianças que fica para os adultos: bebé que não chora não mama. Mas
se não houver leite e não tiver dentes, o melhor é comer matete, para enganar
fome.
Os
adultos também choram, por mais variados motivos. Eu, no dia 31 de Agosto de
2012, quero chorar. Quero chorar de amor por Angola. Quero chorar de alegria,
pois com o meu voto quero contribuir decisiva e definitivamente para a paz,
para o aprofundamento da reconciliação nacional e para a construção de uma
sociedade desenvolvida assente na solidariedade social e na justiça. Com a urna
nunca se brinca!
1 comentário:
Kota, grandes temas
Canhanga
Enviar um comentário