terça-feira, 21 de agosto de 2012

FIM DO MITO


Era sempre assim. Seguíamos tranquilos a rotina das nossas vidas humildes, como o rio Mazungue faz o seu percurso, descendo silencioso o mesmo leito de antigamente.

Lá em casa, a mesa farta se enchia de algazarra nas horas das refeições, mas quando a estiagem minguava a colheita, o prato de funge e de feijão tornavam-se comuns para toda a miudagem. Era a melhor forma para distribuir o pouco que se tinha na dispensa. Os adultos vigiavam cada colherada, sendo a desonestidade no encher a colher ou no comer apressado entulhando a boca de alimentos, punidas com censura ou com a suspensão temporária de voltar ao prato até que os demais recuperassem o atraso. Quem fosse último, lavaria os pratos, porém, apesar da fome, poucos aceitavam essa empreitada, saltando antes de ser declarado comilão.

Dezembro de 1973. Ainda fervilhava a saudade do paladar dos pratos feitos com folhas de mandioqueira, de abóbora e rama de batata. Na fome, as folhas de gindungo e mamoeiro viravam também alimento.

Foi na busca da sobrevivência, que meu pai acordou cedinho, aprontou a sua moto vermelha de marca Floret e partiu. Passou na Boa-Entrada, desceu o morro da Giraul e passou pelas salinas com destino às Cachoeiras da Binga, ali perto do Novo Redondo (actual Sumbe). Na bagagem amarrada no suporte com fitas de borracha, levava sal para a carne de prováveis presas. Ao chegar, com a sua arma de bala 375 embrenhou-se na profundidade da mata dominada por gordos embondeiros e cactos altos.

Semanas depois, vimos uma carrinha a aproximar-se da nossa casa. Na carroçaria, estava sob a lona, a perna e o braço de uma pacaça. Perfilados, esperamos sobressaltados. O condutor era-nos estranho. Mal o carro parou, abriu-se com vigor a porta do pendura. Era o meu pai!

Contrariamente ao que era normal, todos ficaram assustados, pois ele trazia a cabeça envolta em ligaduras ensanguentadas. Tremi. Minha mãe, correu com os braços abertos na sua direcção. Abraçou-o e preocupadíssima quis saber logo o que havia ocorrido ao seu amor. Sorrateiro, olhou-nos com carinho e a mornes do sorriso que trazia no rosto, amainou a tortura da espera.

Com certeza, pensou-se logo em acidente de motorizada, mas não. Na ausência dos telemóveis de hoje, a notícia tardava a chegar ao destinatário. E se ele jamais tivesse voltado a casa?

Diante da impaciência da curiosidade, depois de beber a água de jatona (lata de um litro transformada em copo), contou animado as suas peripécias.

Numa tarde, depois de ter perseguido uma manada por mais de dez quilómetros, num vale, avistou uma pacaça solitária a pastar. Mastigava calmamente. Parou e olhou à volta desconfiada. A brisa farfalhava a vegetação. O caçador, com respiração suspensa, rastejou sobre o capim verde. Acomodou a coronha no ombro direito e fez a pontaria. Premiu o gatilho calmamente e a agulha percutora veloz atingiu o cartucho. A explosão cortou o silêncio da floresta, despertando bichos adormecidos ou interrompendo as carícias que a embriaguez do entardecer propiciava.

O animal surpreendido pelo disparo, correu desnorteado. Rapidamente, o caçador se levantou e aproximou-se de um embondeiro. Afastou a folhagem com o cano e pé-ante-pé, aproximou-se do local, onde antes se encontrara o animal a tomar a sua última refeição. No rasto, apenas as marcas dos cascos, na hora do arranque precipitado em prol da vida.

Cinco metros depois do local, confirmou a sua pontaria sempre infalível. A pacaça havia sido atingida, mas teve ainda força para fugir.

Com atenção redobrada e a arma desengatilhada, continuou minuciosamente a perseguição. Depois de 20 metros, o rasto inverteu para a esquerda descrevendo a letra U. Com o coração aos pulos, parou e olhou desconfiado para os lados, foi exactamente naquele instante que a pacaça ferida partiu para a desforra, atirando os seus mais de 500 quilogramas contra o caçador.

Este instintivamente saltou feito uma mola antes comprimida e agarrou-se ao ramo de um arbusto. O chifre do animal atingiu as suas nádegas, na sequência o corpo foi projectado para cima e a cabeça atingiu os espinhos do ramo do pau-ferro.

Há cinco metros, a pacaça, ofegante, preparava um novo assalto, quando o caçador, depois de apanhar a arma fez um novo disparo, atingindo a testa do animal.

Meu pai era um grande herói. Era a imagem de um homem forte, corajoso e valente diante do qual nada era impossível. Mesmo ferido gravemente na cabeça, ainda sorria.

Cresci com essa imagem masculina depositada no subconsciente até que em 1976, ao entardecer, ele recebeu a notícia sobre algo que havia ocorrido com a sua mãe, Lemba Zongo. Papá, está chorar por quê?

A avó havia morrido de repente na localidade da Gangula, quando regressa da lavra. Meu pai e minha mãe choraram juntos. Ela enxugava as lágrimas com o pano. Mamã, é quê? Não respondeu, mas perguntou-me entre lágrimas: tens fome?... Eu disse que não, mas mesmo assim ela fez o funge, serviu para mim e continuou a chorar.

Então, desamparado, também comecei a gritar acelerando as minhas lágrimas. Assim, ficou abandonado pela primeira vez o almoço. A refeição é agradável, quando tomada em boa companhia.

Eu na minha inocência apenas chorava, mas não entendia, o motivo pelo qual estava aquele homem, que era meu ídolo, com os olhos cheios de lágrimas.

Então se desfez o mito segundo o qual os homens nunca choravam. No berço, se inaugurava um ciclo de lágrimas que apenas terminava com o apagar da luz da vida. Ao nascer, com o primeiro suspiro, uma criança normal chora, caso contrário os adultos solícitos com palmadinhas nas nádegas obrigar-lhe-iam a fazê-lo. E se mesmo assim o recém-nascido se mantivesse em silêncio, um mundo de preocupações invadiriam os pais e os demais adultos.

Para a criança com a sua angélica fragilidade, o choro é importante, pois passa a funcionar como um sinal de alarme estridente que alerta os pais de alguma anormalidade. O grito desesperado da fome pelo leite ou mesmo a reclamação pela humidade das fraldas descartáveis, cuja promessa da impermeabilidade para as 24 horas consecutivas são apenas publicidade. Essa que desde a ágora vende ilusões.

Aos 12 anos, termina a infância e é desse período de que tenho mais saudade, talvez porque tinha mais tempo para brincar e sonhar. Quando se é criança até as lágrimas possuem sabor que a língua interceptava no seu trajecto descendente.

Eis a lição das crianças que fica para os adultos: bebé que não chora não mama. Mas se não houver leite e não tiver dentes, o melhor é comer matete, para enganar fome.

Os adultos também choram, por mais variados motivos. Eu, no dia 31 de Agosto de 2012, quero chorar. Quero chorar de amor por Angola. Quero chorar de alegria, pois com o meu voto quero contribuir decisiva e definitivamente para a paz, para o aprofundamento da reconciliação nacional e para a construção de uma sociedade desenvolvida assente na solidariedade social e na justiça. Com a urna nunca se brinca!


1 comentário:

Soberano Kanyanga disse...

Kota, grandes temas
Canhanga