Os tempos mudaram! Ontem eu era jovem como tu. Sim! Não te
parece? Incrível, você pensa que eu nasci com rugas, cabelos brancos e queixas
de reumatismo crónico nas pernas! Eu fui um rapaz bonito, brincava, corria,
jogava futebol, pulava de alegria, dançava a noite inteira e sonhava como vós
sonhais!
O tempo é voraz, a idade avança e se evaporam os sonhos, se
entorpecem os músculos e se envelhecem as esperanças. Esse é o ciclo inevitável
da vida, meu filho! E apesar de tudo, é preciso nunca perder a temperança.
Sabes por que chilreiam os pássaros ao amanhecer e também ao
pôr-do-sol?... Filho, você está crescido, sente-se aqui ao meu lado e ouça!
Ainda ontem eras uma criança frágil. Quando você nasceu, me lembro como se
fosse hoje, tinhas o rosto redondo e bochechas avermelhadas! As parteiras
chamavam-te kamatama. Nasceste com 3 quilos e 800 gramas. Era um homenzinho e com
um vozeirão que nem TIM MAIA! Choravas muito, ah mas como choravas! Houve
noites em que a tua mãe e eu entravamos em aflição, pois não sabíamos o que se
passava contigo. Se era dor do ouvido, bucho virado, maculo, mau-olhado ou sei
lá o quê! Olha, tu ganharias qualquer concurso de choro, juro! Olha, sê
empreendedor, podes investir na criação de uma Agência Nacional de Carpideiras
de Angola (ANCA), para atender velórios de gente sem família! Papá, não gosto
disso! Calma, filho!… Isso é normal, as crianças ao nascer têm rosto grosseiro.
Olha filho, preste atenção no que lhe vou dizer…
Há mais de uma semana que ando atrás do senhor, só hoje é que o
pai quer conversar comigo? Claro que reconheço o facto de eu nem sempre ter
tempo suficiente para pelo menos jantarmos juntos e aproveitarmos a
oportunidade de trocarmos impressões sobre as mais variadas coisas da vida.
Mas em nenhum momento eu me esqueci de ti. Eu sempre gostei de
ti. Digo isso com toda a sinceridade do mundo, porque tu és das coisas mais
importantes da minha vida. Que isso papá? Eu não acredito que esteja a falar a
verdade! Eu não sou a coisa mais importante da sua vida, pai! Sou sim o
primeiro do círculo de suspeitos de tudo que de errado ocorre nesta casa. Me
são atribuídas as tarefas mais difíceis e penosas e ainda depois dizem: “Assim
foi temperado o aço”. Meu Deus, não fui eu quem jogou pedra na cruz!...
Enquanto os outros vão à escola de automóvel, eu devo caminhar a
pé ou de candongueiro por alegada falta de dinheiro. Para comprar uma simples
calça, é uma luta. O cartão da parabólica acabou faz tempo e tudo continua
calmo que nem as águas da Baía de Luanda. Ninguém diz nada! Agora, nem
telenovelas devemos ver, pois aparece sempre o protagonista que busca
argumentos no passado, na sua tradição, para nos acusar de múmias! Para ele, o
Kuduro é coisa para bandidos, marginais, digo, a escória, para usar o seu português
importado. Sempre: ah, porque no meu tempo não era assim. Esquece-se que nem
sempre as lições do passado servem para ler o futuro.
Eu agora virei coisa?… É assim que se coisificam as pessoas?...
Agora sei, enquanto a tua filha está sempre a ser tratada como ovo, eu sou o
osso que só serve para sopa ou feijoada. Outros têm bolsa de estudo no
exterior, recebem mesada, viajam pelo mundo e desfilam por Luanda em
limousines, enquanto nós nem soubemos o que comer logo ao jantar.
O pai suspirou, espreitou na porta semiaberta da cozinha e fez
aquela cara de cansaço e impaciência. Meu filho, sabes quanto ganho por mês? E
o abono de família! Já não tens direito! Na tua idade, eu já trabalhava. E
você? Com mais de 25 anos continuas a viver de mesada. Tudo para ti é difícil e
complicado, nunca és indivíduo decidido e perseverante, não te aplicas para
realizares o teu sonho. Vives seguindo modelos alheios, modismos, coisas
supérfluas, chicletes. Ontem querias estudar no exterior, pagamos uma bolsa na
Namíbia. Depois de seis meses voltaste de férias e nunca mais quiseste ouvir
falar do curso de engenharia. Dei-te dinheiro para a matrícula na escola de
condução, até hoje nada! Os teus colegas há muito trabalham e você continua
encalhado aqui em casa, pedinte. Só se presta ajuda àquele que esteja a fazer
algo. Caso contrário, nem Deus o socorrerá.
Pai, eles têm tido oportunidades. Sempre estudaram em boas escolas.
Já distribui o curriculum em várias instituições, mas até agora apenas em cinco
fui chamado para entrevista. Continuo a espera. Tudo é esquema, o critério não
é a competência.
Meu filho, diga-me uma coisa! Que patrão contrataria um
indivíduo que usa cabelo grande e despenteado, unhas compridas, brinco na
orelha e calças arreadas? Você assusta o patrão! Devias ganhar prémio de melhor
espectador do mundo! És um autêntico abacate, sentastes à frente desta TV e
apodreces aí mesmo na poltrona. Um homem assim, feito carro de mão, nem a
mulher pode contar com ele para mudar uma simples lâmpada da sala. Todos os dias
nem te apercebes quando saímos, aliás, naquela hora ainda estás no quarto sono.
Pudera, dorme tarde devido ao bate papo com as garotas e amigos no facebook.
Nós saímos às 4H30 para não pegar o trânsito engarrafado e
voltamos a encontrar-te no mesmo lugar. Com todos estes perigos do trânsito e
da bandidagem, durante o dia nem se sequer te preocupas em saber se nós
chegamos bem ao centro da cidade. Tu não fazes ideias do número de pessoas que
morre poucos minutos depois de acordar?... Olha, nós já encontramos muitos
caídos a esvair-se em sangue no asfalto negro das estradas.
Ao chegarmos a casa no fim da jornada, voltamos cansados nem
prazer temos de comer. Buzinamos para abrirem o portão, mas nenhum de vós se
levantais para o fazer, pois estão distraídos com a TV ou com o playstation e
PSP. Nós trabalhamos todo o dia e ainda por cima, depois do trabalho temos de
fazer as compras para alimentar todos os membros da família. Ao chegar a casa,
não vemos ninguém para descarregar os produtos. Depois eles são os primeiros a
se embutir de banana, laranja ou a beber o sumo e a gasosa.
Não estás preocupado connosco, com a nossa vida, com o nosso
trabalho, senão com o dinheiro para tudo que precisas. Quem trabalha passa por
dificuldades e humilhações no local de trabalho. Você desconhece o que é
trabalhar e ser subordinado de uma cadeia enorme de hierarquias! Os sapos que
temos de engolir. Ingrato! Não lava a loiça, não lava a roupa, não sabe
engomar, aliás não sabe fazer nada, porque os tempos são novos.
Não queres aprender a
cozinhar, porque é coisa feminina, ai é? A vida é dura e só os fortes
sobrevivem diante dos lobos. Pergunte à gazela, quanto perigo corre na selva
para dormir e acordar! Basta veres a quantidade de predadores que gostaria
deliciar-se com a carne de veado! Homens, leões, leopardos, hienas, lobos,
jibóias e etc. Quem está na camada mais baixa da cadeia alimentar ou
profissional vive esse mesmo drama todos os dias. Pois se não fosse assim ainda
hoje os dinossauros estariam vivos.
Pai, se não parar de falar, jamais poderei contar-lhe o meu
problema. Mas qual é o problema? Pai, ontem ao sair com o carro da mãe, bati, digo,
não bati, raspei num Jeep daqueles que estão na moda. Quero pedir a sua ajuda
para resolver o problema. O dono é… Como que se dá a chave do carro a alguém
desencartado? O mimo, o excesso de protecção impede que cresçam! Veja a tua
irmã! Ela lutou até ingressar na Faculdade, finalizou com distinção, conseguiu
emprego. Pai, ela é dama! Cala essa boca! Ela foi sempre uma estudante do
Quadro de Honra! É dedicada e disciplinada. É competente! Você é vaidoso,
preguiçoso e indisciplinado! Contrário de ti, sabe ouvir conselhos! Sempre
disse p’ra não ficar muito próximo da TV. Resultado, estás com dor de vista e
obrigado a usar óculos. Quem paga, eu, sempre eu! Sempre disse para não comer
coisas muito doce como rebuçados, doces etc. Ninguém ouviu a voz do homem
ultrapassado, vulgo papoite! Resultado: tem de ir ao dentista para restaurar os
dentes cariados. Os dentistas são caros! Disse que deviam ao menos aprender a
cozinhar, mas quando a empregada faltou, todo mundo ficou a andar a toa. O lixo
da noite, fica guardado em casa, até a empregada voltar ao trabalho. Não me
espantaria se um dia a empregada passar a dar-te banho! Está a falar atoa! Você
não me respeita, meu filho: ameaças os teus irmãos na minha presença, inclusive
noutro dia, pegastes num pau de fazer funge para espancá-los debaixo dos meus
olhos!... Eu não sou eterno!... Você também é homem como eu, terás mulher e
filhos, vais lembrar-se das minhas palavras! E vai se preparando, esta casa é
alugada! Quando eu morrer, não desejo filho algum fazer-me companhia na cova. A
morte é individual e radical!… Olha, pare de chorar, o dono do Jeep está no
portão! Coragem! “Assim foi temperado o aço”!
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