terça-feira, 21 de agosto de 2012

Língua da morte


Ontem, acabado de chegar a casa, depois das habituais arrelias provocadas pelo trânsito apertado, suspirei e retomei a leitura da véspera:

- Quem nunca quis ter uma casa de sonhos numa colina com o sol filtrado pelos limbos das plantas do quintal e lá no fundo um lago com patos a nadar? Pois é, no sonho todos podem, aliás diz-se que sonhar está previsto em Constituições de todas os Estados. Sim! Todos têm direito de sonhar! Talvez seja esta obsessão que impele uma minúscula semente a germinar rompendo a terra e erigindo o caule em direcção ao Sol.

“Nossa Vila”, “Nosso Lar” e “Bem morar” deixaram para atrás de si um grande remoinho de frustrações e descontentamento, pois foi um sonho que terminou em pesadelo para a grande maioria dos angolanos. Para quem mesmo perto dos 50 anos, ainda anda às voltas com o espinho da casa própria na garganta, sabe o que isso significa para um chefe de família, que tem sob sua responsabilidade o bem-estar e a auto estima da mulher e dos filhos. Por isso, a corrente de solidariedade para com os burlados no caso Grupo Build Angola. Sabe-se o quanto dói o dinheiro ganho com grande sacrifício e a expectativa frustrada de toda a família que ansiava mudar-se para uma nova casa com quarto para cada criança, cozinha espaçosa, quintal, suites, escritório, enfim uma casa com habitabilidade. Mas tudo isso acabou como um simples sonho enfronhado pela dor. Agora entendes?

Ingressou ao grupo dos sem casa própria, logo após atingir a maior idade. Abandonou o doce lar com a esperança de caminhar com os seus próprios pés. Ao desembarcar em Luanda, morou em casa de aluguer. Primeiro, no bairro Prenda, ali bem perto da Oitava Esquadra. Dia e noite deambulava com outros jovens da sua idade a busca de festas para comer, beber e dançar. Para ir ao trabalho descia à pé ao invés de esperar pelo autocarro. Descia pelo areal, apanhava a estrada da Samba, passava pelo Zamba 2 e seguia tranquilo até à Mutamba. Prenda ainda era Prenda e não tinha esse amontoado de chapas, lixo e blocos!

Aos 23 anos, já com a cônjuge mudou-se para a Ilha de Luanda, ali bem perto do Marítimo e da Loja do Povo onde fazia as compras no tempo do célebre Cartão de Abastecimento. A casa tinha apenas um cómodo para o casal e a filha, a primeira de uma lista que supera os dedos de uma mão! Num canto, estava o fogão da Sonangol, adquirido graças a requisição do patrão da esposa, e do aparelho de TV preto-e-branco atribuído a si por ter sido considerado Destacado na Emulação Socialista. Do outro lado, separado por cortina de pano de Congo, estava a cama e duas malas de chapa com roupas. Um fio unindo as duas paredes do ângulo recto, feito a hipotenusa de um triângulo, servia de cabide. É lá onde pendurava os trajes, na sua maioria roupa usada, e outra adquirida em lojas abastecidas pelos Sábados Vermelhos.

Durante a noite, o delírio de prazer alheio chegava através da abertura deixada pela meia parede que separava o cómodo da do vizinho. E sobressaltados, avisados por uma voz masculina do outro lado, sabiam-no: a neblina cairia dentro de pouco tempo.

Na hora do almoço, voltava para casa, ia e vinha com o autocarro nº 28 que ligava a Ilha do Cabo ao Porto de Luanda. O Panorama ainda era Hotel e sobressaia no Cartão Postal da Ilha da Kianda.

Certo dia, uma contrafé bateu-lhe a porta. A vizinha dos delírios da noite e que se exprimia com sotaque francês reivindicava a outra parte da casa. Os fiscais também percebiam francês e acabaram por se entenderem para a sua desgraça.

Na época, os despejos eram frequentes, pressionados por falta de habitação. Requerimentos com denúncias inundavam a Secretaria de Estado da Habitação. Ainda guarda zeloso a cópia de muitos deles pedindo mui respeitosamente que se dignassem a autorizar a ocupação de um imóvel para morar.

Nada! Com a mulher grávida, seis meses depois de se ter mudado para a Ilha, partia errante por Luanda à busca de um novo paradeiro. Poisou novamente no Bairro Prenda e depois foi para o Cassenda. Sempre em casa de aluguer!

No Cassenda, depois das eleições de 1992, o casal dono do apartamento entra em litígio e decidem vendê-lo. Apanhado de surpresa, demanda-se aflito para o bairro Benfica, levando sempre consigo o sonho da casa própria.

Hoje vive no Zango, conformado com a recusa de um banco em conceder-lhe crédito habitacional, pois apontam a idade como condicionante. Com 50 anos idade, teria de pagar o crédito em apenas 10 anos, o que significaria um esforço financeiro que o seu salário não suportaria. Saiu da agência desiludido. O limite de crédito habitação são os 60 anos de idade. A exigência, atrás da qual se escudam os bancários engravatados, é que aos 60 anos deve-se liquidar todas as dívidas com as instituições bancárias. E os anos restantes que se nos acrescentarem são considerados de compensação e neutralizações.

Pronto, já está-se no Zango! Desde que mudou-se por iniciativa própria para o Zango, nos últimos 4 anos converteu-se, de forma inusitada, num verdadeiro fiscal de obras. Conhece de tudo um pouco, inclusive a data de início e as respectivas empreiteiras a quem as mesmas foram adjudicadas. Ainda lembra-se da alegria pueril com que foi acolhida a boa nova. Troços, traços, pregos, buracos, empreiteiras, vala. As câmaras e as manchetes amplificaram o Projecto ainda em maquete. Viu as obras de alargamento da estrada de Viana e as dificuldades encontradas pelo engenheiro para vencer as águas que nasciam por debaixo do pavimento. Não entendia do assunto, era como um médico querer tratar de ensinar a redacção do lead ao um jornalista decano. Mas há polivalentes por aí que alegam possuir experiência para leccionar todas as disciplinas de um curso. Era leigo, mas já construiu uma casa de raiz, numa altura em que o tijolo dominava o mercado de construção civil. Fazia as misturas de cimento e areia sem obedecer a qualquer proporção. Mais cimento para ficar firme! Será que pode ser considerado engenheiro?

Voltemos aos carris. … Acompanhou animado as várias etapas da obra da estrada da Samba, Benfica-Cabolombo. Os seus olhos viram a poeira, que levantada pelos pneus, pairava sobre os limbos das árvores e do capim das bermas da estrada. As obras da Nova Centralidade, do Estádio 11 de Novembro e os vários projectos habitacionais que foram nascendo ao longo da via, feito cogumelos, atraídos pela perspectiva de se ter um pólo de desenvolvimento por perto. Morar na periferia tem-se essa vantagem de saber-se tudo que se passa fora e dentro da cidade.

Angustiado também viu os vários acidentes que passaram a ocorrer com maior frequência à medida que o pavimento era melhorado. Não entendia de engenharia mas tinha uma opinião, mas que raros escutavam. Dizia: Atenção às línguas da morte que existem espalhadas pela cidade. Os retornos vieram substituir as rotundas, tudo devido o aumento do trânsito rodoviário. Mas uma coisa o intriga: Sempre que se realizam campanhas de prevenção rodoviária, às culpas pelo alto grau de sinistralidade é imputada aos motoristas e peões. Alegando excesso de velocidade, imprudência, consumo de álcool etc.

Das línguas da morte nada se falava. Uma boa parte dos acidentes na estrada de Viana e Samba ocorre nos retornos. Aliás, na via da Samba por altura do Morro da Luz, depois de variadíssimos acidentes e vítimas, a empreiteira retornou ao local para reduzir a língua de betão. A noite, as ruas estão escuras e esta língua traiçoeira facilmente se confunde com o escuro. Ao menos que fossem devidamente sinalizadas com reflectores, caso contrário, ainda teremos mais vítimas nesta noite.

Cuidado com a língua da morte, seu beijo pode ser fatal!

1 comentário:

Paulo Brjonev disse...

Grande Crônica sr. Professor!