terça-feira, 21 de agosto de 2012

Lições de Papai


O cacimbo chegou, mas hoje acordei meio introspectivo, pois já não vejo o vermelho cereja cobrindo os cafezeiros e o terreiro das roças. Nem avisto homens e mulheres sorridentes com cestos ao pescoço, colhendo o bago vermelho. Também já não ouço as suas canções que marcavam o compasso durante a safra e serenava a dor da saudade dos que haviam partido. Apenas cafezeiros envelhecidos sobressaem numa paisagem cada dia mais calva com o abate indiscriminado de árvores de sombra. E a silhueta de um agricultor de olhar distante e gestos indolentes ainda persiste para a sobrevivência do seu orgulho.

Ao chegar o cacimbo, imagino meu pai com um tronco ao ombro para fazer fogueira no terreiro ao lado do café e minha mãe agasalhada com panos de flanela, transportando a sanga de água! E nós crianças traquinas envolvidas em brincadeiras intermináveis, que faziam esquecer a hora de buscar às cabras ao pasto ou a louça por lavar. Ah, como o tempo passa!

Ainda me lembro da noite, com estrelas e o luar cobertas pelo denso nevoeiro, quando chegou a casa um camião alemão de marca IFA com o número 56 e a sigla ETP na porta. Era alto e de cor creme, tinha lona cobrindo a carroceria e quatro pneus no diferencial traseiro, sendo dois de cada lado. Respirava, tinha vida! Na cabine, no painel de instrumentos, as luzes de várias cores imitavam a iluminação das grandes cidades e que só víamos no cinema. Mas era realidade, um aldeão, como nós, ia ao volante!

Como é que um simples camponês analfabeto consegue obter cartas de condução e dirigir um camião daqueles? Diante do incrédulo, alguns aldeões refugiaram-se numa única explicação: É feitiço! Outros, procurando abafar o mérito alheio, diziam: Cuidado, é motorista de 25 de Abril!

Com a sua robustez, os IFA’s rapidamente conquistaram a simpatia do povo e as estradas de Angola de Norte a Sul. Com o IFA, meu pai conheceu Quibala, Calulo, Wako Kungo, Cassongue, Atome, Conda, Seles, Huambo, Bié, Benguela e Lobito. Depois veio o tempo das colunas!

Ministério dos Transportes, da Agricultura (Encodipa, Dinaprop), UNTA Finanças, Construção e Habitação… República Popular de Angola! Eram os frutos da independência e da liberdade, conquistadas com o sacrifício de milhares de patriotas angolanos.

Scania 81, depois foi a vez do famoso Scania 111 número 122, cor de laranja. Perguntem ao músico Proletário, qual foi o camião que levou a sua Kahinda!... Scania 111, com a sua lona cobrindo as 18 toneladas de café ou géneros alimentares para as lojas do Povo era a rainha das entradas emocionando adultos e crianças. E no silêncio repetiam: Valeu a pena a Independência!

O tempo quase sempre se tem mostrado incapaz de apagar as lembranças e passado vários anos após a partida do meu pai, no caminho nasce erva daninha, mas as lições deixadas ainda continuam perenes. E incrivelmente, muitas vezes de forma involuntária achamo-nos a partilha-las com os filhos, com os dos vizinhos ou mesmo em salas de aulas com os alunos, diante da estupefacção ao perceber-se que à maioria deles falta-lhes energia volitiva ou seja vontade própria capaz de os impulsionar em direcção ao sonho. Não basta sonhar e ter fé, é preciso ter vontade e força para alcançar o sonho por mais difícil que ele seja.

É a vontade de realização do sonho e a capacidade de consentir sacrifícios que nos fazem avançar e vencer os percursos mais espinhosos. Os homens vitoriosos foram sempre aqueles que souberam identificar as metas e mobilizaram as energias e com audácia e estoicismo lançaram-se intrépidos na sua concretização! O desejo é o rastilho que acciona toda a engrenagem. Quando estamos a cumprir uma missão até a nossa unha deve estar concentrada neste objectivo, papai dizia. Após a identificação do alvo devemo-nos concentrar para atingi-lo! Nada nos deve demover do objectivo principal! O sono proporciona relaxamento e renovação das energias, mas dormir mais do que o necessário é um desperdício de tempo e de oportunidades. Quem muito dorme baba no travesseiro!

Tudo isso aprendi-o com papai. Quando eu nasci, ele tinha 38 anos de idade. Foi no ano da África! Nascido em 1922, era um homem de altura média, bem constituído, forte e sempre bem-humorado.

A busca do primeiro emprego, levou-o de Novo Redondo até à região montanhosa do Amboim, onde apresentou-se como carpinteiro na fazenda cafeícola da Boa-Entrada, C.A.DA. Levava uma caixa onde tinha o serrote, formões de vários tamanhos, diversas plainas e martelos. Era uma altura em que não se ouvia falar do currículo vitae. Era o desempenho profissional que contava na conquista da simpatia do patrão. A humildade, o respeito e a honestidade eram requisitos para singrar na vida!

Analfabeto, lia a bíblia, todavia mal sabia escrever o seu próprio nome. Comprou várias fazendas de café e resistiu às pressões permanente de vizinhos monopolistas como Mário & Cunha e Marques Seixas. Foi o primeiro a matricular os filhos na Escola Primária do Amboim, porque queria que seus filhos fossem como aqueles brancos que trabalhavam no Banco Nacional de Angola ou na Fazenda e Contabilidade. Era um grande orgulho ter um filho no Banco ou na Fazenda, não é como agora, que funcionário bancário poucos meses depois de ser admitido é apanhado a falsificar cheques ou a simular roubo em conluio com bandidos.

Quando a produção do café começou a minguar diante da moleza, não obstante o esforço no aprimoramento técnico, com empreendedorismo investiu na produção do algodão na região do 40, Porto Amboim. Ali conseguiu 8 hectares, nos limites dos quais semeava milho para sustentar a mão-de-obra. Nas férias, era festa grande, pois todos os filhos desciam de comboio para participar na colheita do algodão, voltando apenas na véspera do ano lectivo, que ocorria dia 11 de Setembro. Apanhavam o trem nas Lassetes, ou na Gonga, estação logo a seguir, passavam pela Boa Viagem, 70 e desembarcavam felizes com as suas trouxas na Quijiba, ou Torres. Depois a pé caminhavam vários quilómetros até a lavra do 40.

Mesmo sabendo apenas escrever o nome, conseguiu tratar juntos das autoridades portuguesas os documentos de porte e uso de arma de caça, com que passou a sustentar a família. Não tardou a ser chamado o “Homem da carne seca” em toda a região. Quem não o conhecia pessoalmente, dificilmente pode negar ter pelo menos comido da boa carne seca de Velho Kamupinda! Lá em casa, comercializava-se de tudo desde peixe seco, carne de veado, pacaças e javalis e tabaco produzido na região do Novo Redondo. Era sim empreendedor!



Depois do 25 de Abril, chegaram os movimentos de libertação e as desarmonias insufladas pela guerra fria que opunha os Blocos Ocidental e o do Leste. Vivia-se o período que o francês Raymond Aron chamou de “guerra improvável e a paz impossível”.

O negócio do bago vermelho e do algodão faliram, a caça foi proibida ou impedida pelo conflito militar. Que fazer? Foi aí que decidiu ser condutor de camião na Empresa de transportes Públicos, vulgo ETP. Mas como, se não sabia ler e nem escrever em condições?

Acredite! Matriculou-se na Escola de Condução e decorou o livro de Código de Estrada e de mecânica. A mim coube a tarefa de ler os textos enquanto ele os repetia. Na hora do Programa radiofónico “Angola Combatente”, eu ficava dividido. O que é o motor? Onde é proibido fazer ultrapassagens?...

No dia de exame, ele aprovou com distinção e semana seguinte estava ao volante do IFA.

Nós podemos tudo, basta querer, dizia fervoroso! Era preciso aprender a trabalhar com honestidade e humildade, porque a preguiça ou a indolência são inimigas do sucesso. O homem mais preguiçoso da aldeia, havia virado quimbanda ou feiticeiro, para conseguir sobreviver. Enquanto os demais aldeões acordavam cedo para ir à lavra semear ou proteger a sementeira contra as aves do campo, ele ficava a aguardar pela colheita. O primeiro milho tinha que lhe ser entregue para que fosse abençoada. Foi assim que alguns aldeões se tornaram refém de espertalhões.

Meu pai, meu herói, está sempre na moda, jamais o deixaria ficar à porta de um asilo!

Obrigado Papai!...

Quem muito dorme baba no travesseiro!


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