terça-feira, 21 de agosto de 2012

Curiosidades do meu caçula


Naquele tempo, por essa altura, um grupo de contratados caminhava curvado sob o peso do saco de café cereja. Alguns cantavam entre murmúrios uma canção na língua do planalto, para disfarçar o esforço, enquanto outros transportavam numa das mãos a catana ou um aparelho de rádio de marca Philips. Nos altifalantes destes aparelhos feitos de madeira ou plástico, aos borbotões, saia música da Rádio Lobito com seu Joaquim Viola. O sol, na hora da saudade, espreitava entre folhas e galhos de gigantes mulembeiras. Seria um cenário lindíssimo, paradisíaco, se não contasse com personagens nativas muito tristes, sofridas.
Uma vez ao voltar da escola, com os livros e a bata no saco de plástico, encontrei um colono baixo, gordo e barrigudo cercado por vários contratados esfarrapados e com olhares terrosos. O ngueta gritava e gesticulava sem parar: Cambadas de calcinhas e vadios!
Negueta? Não, Ngueta, o branco! Creio, que o patrão estava muito chateado com algo que tinha corrido mal. Por isso vociferava contra aquela gente humilde que refugiava o olhar pesaroso para o solo coberto de poeira vermelha. Passei medroso, mas ainda vi o patrão a esbofetear um dos contratados antes de subir na carrinha de marca Peugeot de cor cinzenta. E partiu deixando poeira sobre o pobre coitado estendido na berma da estrada. Se desfez em lamúrias a roda de companheiros que antes o cerca. Alguém apanhou e mastigou folhas de goiabeira e colocou a pasta sobre a ferida aberta por uma pedra. E toda a aldeia lamentou a violência do patrão, mas ao anoitecer fechou a porta de medo para evitar que o sono fosse cortado por qualquer imprevisto.
Aos ouvidos da aldeia chegavam boatas segundo os quais os colonos cortavam as cabeças dos negros para depois as utilizarem nas máquinas de descasque de café. E muita gente acreditava ao ponto de decifrar vozes humanas entre os ruídos do motor.
Mas por que razão tanta gente não dava uma queda naquele patrão? Se fosse nós agora!...Tens razão, meu filho! Com certeza, eram muitos contratados, eram muitos braços e pernas, mas tinham nas várias cabeças o medo da reacção da administração portuguesa. O colono estava sozinho aí naquele lugar, mas tinha atrás de si toda uma máquina de repressão treinada para combater qualquer desobediência. Muitos tentaram no auge do desespero, jogar-se contra o patrão, mas também muitos morreram na sequência. Por isso, eis no doce pôr-do-sol, aquela tela de humilhação e subserviência. Daí a razão do 4 de Janeiro, o 4 de Fevereiro e o 15 de Março de 1961.
Li outro dia um poema que falava dos contratados, eles sofriam muitos. Basta ler Sagrada Esperança, ou os poemas de António Jacinto como “Monangambé” ou ainda  de outros escritores como Jofre Rocha no livro “Assim se fez Madrugada”, para nos apercebemos do sofrimento pelo qual passaram os nossos antepassados. Aliás, até bem recentemente havia um filme que retractava a realidade dos negros com muito realismo. Mandingo! Era um filme sobre a exploração da mão-de-obra escrava nas américas. Passou na televisão nos anos oitenta e, nos cinemas, ficou muito tempo em cartaz. Também ali no Tivoli, quando ainda os filmes eram a grande atracção para os casais de namorados nas tardes de domingo. Muita gente não conseguia acabar de ver o filme, pois ficava revoltada ao rever o sofrimento de um ser humano só pelo facto de ter uma cor de pele diferente. Os espectadores se identificavam com o personagem negra, no caso o Mandingo, que depois de espancado violentamente era assassinado. Era uma cena horripilante. Não eram só os filmes, também muitas telenovelas mostravam exactamente o quanto os negros sofreram e sofrem ainda hoje no mundo por causa da discriminação racial.
Um homem só por ser branco dava-se o direito de assassinar uma outra negra. O homem é mesmo lobo do próprio homem. O homem é o único ser que mata o seu semelhante. O leão não come leão igual. Veado não come veado. Mas homem come homem! É verdade, mata e come! Agora já podes perceber quanto risco corre a vida. Não é pura ficção, é realidade ficcionada. "Lupus est homo homini non homo", como escreveu Plauto. Foi essa dura realidade que fez nascer Zumbi dos Palmares, Mandume, Luther King, Agostinho Neto, Mandela, Paiva Domingos da Silva e tantos outros.
É a vida. Mas saiba que vidas fragilizadas pela pobreza se tornam muito mais vulneráveis? Mas falas sempre da pobreza. O que é ser pobre? Depende da perspectiva, mas no essencial a pobreza significa incapacidade de alguém obter o fundamental para si e sua família puder viver feliz. Alguém que passe fome por não ter alimento, que não tenha emprego que lhe proporcione uma renda que o sustente, que esteja desprovido de uma casa condigna para morar, que tenha falta de assistência médica, falta de acesso à educação de qualidade. Alguém que não consuma água potável e energia eléctrica é mais do que pobre, é miserável! Por isso o Governo criou um Programa de luta contra a pobreza.
A tua aldeia é sempre referida com tanta saudade como se fosse o melhor lugar do mundo. O avô era rico, tinha dinheiro e boa casa? O meu pai e a minha mãe trabalhavam a terra de onde retiravam o sustento para toda a família. Cultivavam milho e feijão que constituíam a base da alimentação da família. Também cultivavam café, palmeira de dendê e algodão para aumentar as receitas que serviam para comprar roupa, pagar propinas na escola, medicamentos e outros bens essências. A nossa casa era enorme e feita de adobes e coberta de chapa de zingo. Tinha uma sala grande com uma mesa cercada por muitas cadeiras, pois nós eramos muitos irmãos. Ainda viviam connosco alguns sobrinhos. Aquilo era um quartel com várias casernas. Os rapazes tinham o seu quarto e as meninas também. E um armazém onde se guardava tudo. Desde milho, mandioca, ferramentas, balanças, café e tudo o necessário. Esta era a área de logística da nossa casa. A casa continua lá abandonada no meio do capim. A cozinha era separada da casa principal. O edifício da cozinha tinha três divisões. Um era para arrecadação de material de apoio, como pilão, catanas, canguichi, ou seja pau que é utilizado para socar ou pisar o milho e a kizaka, e outros materiais afins. Num outro lado, era o quarto da avó Lemba. Nossa casa não tinha luz nem água. A luz era de candeeiro a petróleo e a água nós íamos buscar na nascente com sangas e canecos (recipientes feitos de chapa pelo serralheiros da época). Era água pura. Não tínhamos casa de banho. As necessidades eram feitas no capim. Que isso, papá? Cavávamos com a enxada e depois tapávamos. Ah, pensei! Depois fez-se uma latrina.
Falas tanto dela. Quem era a avó Lemba? Avó Lemba era a mãe do meu pai. Sabes que o meu pai era o primeiro filho da Avó Lemba. Avó Lemba era de meia altura e tinha a pele muito clara. Se fosse hoje com essa febre das cores… Mas não, era negra como nós e trabalhava no campo. Ao cair da tarde, regressava com a sua enxada amarrada às costas e fumava o seu cachimbo. Ainda vejo-a a contar histórias do seu tempo. Contava que certo dia os colonos vieram com aviação para matar todos os negros por serem bandidos. Toda a aldeia ficou apavorada. Ela não falava em datas. Eu perguntava, mas ela apenas contava o medo que sentia ao ver as armas dos brancos. 
Não consigo imaginar a vossa vida, sem água, sem luz e sem canal Panda. O pai diz que por essa altura terminava o ano lectivo. Nas férias as crianças faziam o quê? Muita coisa, meu filho! Pai, não tem fotografia de quando eras criança? Não consigo te imaginar criança! Nem eu! Havia umas fotos a preto e branco, onde nem eu mesmo me reconhecia de tão magro feio que era.
Eu cresci desconhecendo a existência real da televisão. Num dos livros de leitura vinha uma ilustração que diziam ser de um televisor. Era um aparelho enorme suportado por quatro pernas. Rádio só chegou lá em casa na véspera da independência. Não sentíamos necessidade. Tínhamos outras preocupações. Se frequentássemos à escola no período da manhã, à tarde, ao chegar a casa, depois do almoço, tínhamos que pegar a catana ou a enxada para ajudar os nossos pais na lavoura. À noite, fazíamos os trabalhos escolares e depois ficávamos à volta da fogueira a ouvir estórias dos adultos. Dormir depois do almoço, nem pensar! Tínhamos tempo para brincar, construir brinquedos, jogar futebol, tomar banho no rio e sonhar.
Sonhar? Sim! Sonhar de olhos abertos com um mundo onde as crianças corriam atrás de borboletas de várias cores em jardins com muitas flores.
Queria aprender a fazer carros de lata! Há muita lata jogada na cidade. Boa ideia!...  A luz veio! Papá, quero ver Panda!

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