domingo, 9 de setembro de 2012

AVENTURA DE ESTUDANTE ANGOLANO NO BRASIL

 

Depois de um mês a seguir o Horário Eleitoral pela rádio e TV e ter exercido o dever cívico, pintando com tinta indelével o tal dedo do gatilho, ficou para a CNE e os concorrentes a contagem dos votos conseguidos ou desconseguidos para se obter assentos na Assembleia. Depois de 31 de Agosto, o desejo de paz e concórdia prevalece. Relaxo e nada melhor que um duche.
A passar pela sala, apercebo-me que Televisão Pública de Angola divulga informações sobre a Semana do Brasil em Luanda. O Grito de Ipiranga! Lembro-me que foi no dia 7 de Setembro de 1822, que Dom Pedro proclamou a independência do Brasil.
Não é inconfidência. As gotas do chuveiro sobre a cabeça, sobre o rosto, sobre o corpo fazem a imaginação bater asas e voar livre ao sabor da suavidade do "Meu bem-Querer", de Djavan. E ébrio vou cantarolando: "É segredo, é sagrado. Está sacramentado no meu coração". E na teia de lembranças rebusco o dia em que conheci o Brasil e os laços que me amarram ao tronco da paixão de Zumbi.
28 de Junho de 1994. Estudantes angolanos desembarcaram no Rio de Janeiro, quando eram cerca das 18 horas. Na busca de apoio para encontrar um hotel onde recobrar as forças e os ânimos, gentes conterrânea possuídas pelo espírito de aves de rapina caíram-lhes em cima. E de táxi encaminham-se para a cidade. Estamos na Linha Vermelha, disse o taxista, quando foram surpreendidos por várias explosões. As bombas vinham de todos os lados. Os projécteis riscavam o céu com a violência que lhes é peculiar.
Viram-se emboscados. Rezaram e desejaram ganhar asas e voar de regresso a Luanda. Preferiam regressar mesmo sabendo que haviam saído do país num momento em que se travavam renhidos combates em todo o território nacional, depois de frustrados os Acordos de Paz rubricados a 31 de Maio de 1992, em Bicesse, Portugal.
O taxista olhou para o lado direito e fez o Sinal da Cruz. Agitaram-se e aflitos procuraram refúgio no espaço que não existia no interior do automóvel. Espremidos e receosos espreitavam através do vidro da janela.
Chegaram ao Hotel Copacabana em silêncio. Só na recepção souberam do tamanho disparate. As explosões eram de foguetes lançados para festejar o golo de empate do Brasil contra a Suécia, pois estavam em tempo da Copa do Mundo de 1994. Mais tarde, riram tranquilos e consolados pelo conteúdo fermentado contido no frigo-bar.
Quanto aos guias, um incidente veio pôr a nú os seus malabarismos. Após a chegada ao hotel, eles convidaram os bolseiros para um passeio à Copacabana. Do Ritz Hotel, desceram à rua em direcção ao mar, num passo sem compromisso. A meio do percurso, pararam numa movimentada casa nocturna. Pelo volume da música, adivinhava-se um grande espectáculo. Logo à entrada, os guias exigiram dez dólares. Segundo eles, era para verem strip tease! Stri quê? Na banda, vocês nunca viram coisa igual, vão gostar! Aquilo é o máximo! Procuravam persuadir os mais renitentes.
Enquanto o guia procurava agilizar o acesso, com olhares e gestos de insegurança, os bolseiros buscaram um cantinho formado entre dois pilares do edifício. Não é aqui no Rio que andam falar?!... É... é aqui mesmo! Hum, cuidado! Estão ouvir, já estão a falar em tripas!
Perto, uma mulher vestida com parcas roupas deixando entregues os seios e as ancas ao relento esbracejava. Estou a ficar pu…! Eh, elas aqui falam assim?! Não errou quem disse que a moda feminina oscilava entre o desejo confessável de vestir-se e o inconfessável de despir-se! Jogando no seguro, dois dos bolseiros decidiram regressar ao hotel. Os demais entraram na casa nocturna.
Um dos companheiros de viagem, que durante o voo havia exibido com orgulho o anel de casado ainda fresco no dedo, jurando fidelidade, caiu na armadilha. Depois de algumas cervejas, incitado pelos guias, agarrou numa das dançarinas e levou-a para o hotel. Quando se calculava que o casal já estivesse no ringue, um funcionário bate à porta e anuncia o flagrante. Quase acertou! Foi por um triz. Tremendo, o bolseiro pensou em assalto. A loira exigiu e recebeu a sua parte!
Era proibido levar para os quartos gente não hóspede. A multa deixou-o ainda mais magro do que parecia. Tentou buscar ajuda dos guias, mas estes manifestaram-se incapazes de tirar o seu pezinho da argola. E quase chorando, juntou-se aos demais bolseiros que resignados aguardavam na sala de espera do hotel. Ontem não vos disse?! Não é aqui o tal Rio que andam falar?!...
No dia seguinte, mal recompostos das 7 horas de viagem e do susto, acabariam por enfrentar uma outra dificuldade. O governo do presidente Itamar Franco decidiu trocar a moeda como uma das medidas para combater a inflação galopante. O Real substituiu o Cruzado. Os angolanos vêem-se numa encruzilhada. Um dólar valia 1 real. No mercado paralelo, dominado por gente árabe, 100 dólares valiam 73 reais ou menos. Os cambistas de rua procuravam salvar os aflitos em cada esquina de Copacabana.
Os 2 mil dólares em traveller check ou cheque de viagem foram trocados por 1460 reais. Não havia como resistir. Ou se aceitava trocar ou passava-se fome, pois estava a faltar dinheiro. Cada dia sentiam o frio da ponte mais próximo. Cortaram o vinho ao almoço e o sorvete de sobremesa. Eram momentos de apertar o cinto, acto que, malgrado, se prolongaria ao longo de toda a cintura do curso.
Outra katuta! O valor do hotel veio aterrorizá-los ainda mais. Só mais tarde perceberam o erro: ao invés de serem hospedados em hotel barato, os guias, também angolanos residentes no Rio de Janeiro, preferiram um hotel de cinco estrelas. Resultado! Depois de liquidarem as contas inflacionadas pela cumplicidade dos recepcionistas e guias, pouco sobrou.
Quem, como Wandalika, deixou ficar algum dinheiro em Luanda para manter a família e comprar chapas, que seu o amigo Epumumo ajudou a colocar numa parte da casa, amealhou lágrimas. Mas não podia deixar a família em casa de renda, ademais com o típico senhorio angolano, cuja decisão do aumento da renda ou do despejo pode advir do simples facto do inquilino estar a comer frango grelhado, quando ele abatia um prato de arroz com peixe frito.
Vencidas as dificuldades no Rio de Janeiro, no dia três de Julho de 1994, Wandalika partiu de autocarro para a cidade de Juiz de Fora.
Eram pouco menos das sete da noite. Ele e Deus sentaram-se no autocarro da UTIL. Wandalika sentia-se perseguido pelo perigo. Sem farda, sem revólver e sem fuzil sentia-se indefeso. Mais tarde, até chegou a fazer crescer as unhas para a sua defesa. As unhas somadas aos dentes davam pelo menos para deixar marcas no couro do agressor.
Mas só Deus sabia mesmo o que o esperava. Depois de mais ou menos uma hora de viagem, numa curva o autocarro balança fortemente. Um corpo cai no seu colo. Assustado joga o fardo para o corredor, desengatilha e espera pelo contra-ataque. Na escuridão, vê um vulto a arrastar-se lentamente. Levanta-se com dificuldades e procura uma poltrona vazia...
No Rio, contaram-lhe que no trajecto até Juiz de Fora ocorriam assaltos por altura dos desvios de Petrópolis. Por isso pensou tratar-se de um assalto. Não era! Era uma mulher que tinha ido ao banheiro. Na curva, a porta se abriu e ela foi jogada para fora. Aflita tentou subir a calça. Wandalika sorriu com gosto. Sorriu, sorriu! Depois parou bruscamente de gargalhar, quando se apercebeu que ele era o único que tinha achado graça ao sucedido. Mas deu para esquecer momentaneamente o seu drama. Como é bom sorrir das desgraças dos outros!
Eram 22 horas, quando desembarcou na Avenida Rio Branco. Havia muita gente nas ruas bem iluminadas e restaurantes plantados ao longo da Avenida. Auxiliado por um prestativo mineiro, procurou uma cabina telefónica. Do outro lado, alguém atendeu e prometeu ir ao seu encontro. Minutos depois, estava em presença de um indivíduo baixo, escuro e calvo. Saudou-o efusivamente e quis saber logo de notícias do país. E a guerra como vai? Nem sabe o que respondeu. Será que fazia sentido perguntar-se a alguém: o óbito correu bem?
Enquanto caminhavam em direcção à paragem de autocarro, acalmou-o e ele mudou de assunto. Agora queria saber de dinheiro. Outra maka! E desfiou o rosário do seu drama. Há mais de seis meses que não recebia o complemento de bolsa e as dificuldades começavam a pressionar o rendimento escolar. Faltavam livros, cadernos, cópias, roupas, sapatos, etc. E o aluguer? E as refeições estavam a ficar cada vez mais simples, incompletas, nuas e despidas de ingredientes. Sobremesas, nem pensar!
Os autocarros chegavam e partiam ruidosos: A aflição também embalava na calema, quando foi cortada pela chegada do autocarro do Bairro N.S. Aparecida. Subiram em direcção ao Bairro Nossa Senhora Aparecida, a Padroeira do Brasil. Ficava no alto do morro da cidade. Depois que o recém-chegado soube do nome do bairro, ficou incrivelmente mais calmo. A Santa estaria por perto e com certeza os iria ajudar a resistir.

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