sábado, 6 de abril de 2013

Olho mágico


  • A algazarra conquistava a natureza. O sol sumia lá longe deixando no rasto a ternura do adeus. Como no cais, as aves, depois de mais um dia de luta pela vida, aconchegavam-se tranquilas nos ninhos. E celebravam alegres, entoando a canção de enleio à vida. O quimbanda ébrio de tanta aguardente de banana olhava perdido para o horizonte onde a brisa do ocaso brincava serena sobre o verde da paisagem.
O homem recém-chegado, e que tinha a perna, dizia-se, inflamada por uma tala maligna, com ais de dores contorcia-se, tendo estampado no rosto o sofrimento em forma de uma máscara rústica.
A esposa desesperava-se na ânsia de encontrar a cura para a enfermidade que deixara inesperadamente o seu homem sem a capacidade para se movimentar por suas próprias pernas.
A assistência olhava em silêncio, esquecendo-se momentaneamente da sua própria dor. Foi naquele instante que o telefone de um dos ocupantes do Corolla despertou tendo como ton a música: “SÓ ME RESTA É CHORAR, MAMÃE UÉ!…UÓUÓUÓ…” O homem atendou afastando-se do enxame onde estivera.
- Alô mano, estás onde? Localização…! – Na voz do interlocutor, percebia-se nitidamente uma certa urgência.
- Estou a tratar daquele assunto da mana! Que se passa?
- Durante o dia, andei a tentar várias vezes para contactar-lhe, mas o teu telefone dava sempre fora de área de cobertura. Estavas com telefone desligado?
- Não, meu telefone esteve sempre ligado, deve ser a maca da rede. Sabe, quando cai chuva ela traz sempre problemas na rede de telecomunicações, na rede rodoviária, na rede ferroviária, na rede eléctrica, na rede de abastecimento de água! Se chove, é porque choveu. Se não chove…!
- Olha, tens de regressar com urgência! Hoje de manhã encontramos um aviso pregado na porta do edifício a exigir o pagamento dos meses atrasados.
-A tua cunhada não foi lá?
- Olha, por outro lado, teu filho está com dengue.
- O Kandengue?
- Sim! O Kandengue está com dengue!
-Dengue é quê?
- É uma nova doença, irmã do paludismo! Paludismo vai contar coma ajuda da irmã dengue…A cunhada está desesperada. Não sabe se vai ao hospital ou ao Banco. A imobiliária ameaça inclusive despejar todos aqueles que não o façam nos prazos solicitados, isto é dentro de quatro dias.
- Este aviso é de quando?
- Tem data de 13 de Março, mas foi afixado no dia 23. Tens de pagar os cinco meses de atraso, senão…! A mana, foi lá na imobiliária na segunda-feira. No local encontrou dezenas de moradores abraços com a mesma situação. Faltaram ao serviço para resolver o tal problema, mas até às 10 horas não apareceu ninguém. O Hiace da empresa passava e repassava sem dizer nada. Quando foram 11 horas, apareceram alguns funcionários… Você não vai acreditar no que disseram!
- Disseram o quê?
- Apenas vieram para os informar que o local indicado no aviso já não era aquele. E apontaram um outro lugar. E lá foram todos a correr para o outro local. Postos lá, funcionária não tinha nem papel para escrever nem informações para dar aos moradores, porque o chefe não estava. Aquilo é mesmo brincar com os cidadãos.
- No acto da assinatura dos contratos, cada arrendatário fez a entrega do número da conta com o respectivo IBAN para que fossem descontados mensalmente. A maioria não foi descontada. E tem mais! Outros pagaram ou devem pagar renda de apartamentos que não são o que de facto ocupam. Por exemplo, há quem more no nº 22 mas o recibo faz referência ao 24. Isso assim ainda vai dar diculo.
- Mas isso não é possível!... O contrato foi assinado numa altura que o meu apartamento custava 125 mil dólares. Como é renda resolúvel devia paga 603 dólares por mês. Mês depois, o Executivo baixa os preço para 70 mil dólares. Não seria justo reverem o valor da renda?... Se não vamos pagar um valor superior ao preço do apartamento… Eu até já queria pagar a totalidade do valor do apartamento, mas a imobiliária exigiu requerimento para o efeito Fundo de Fomento Habitacional. Fiz. Depois me disseram que era na Delta. Possa, na casa de renda o sono não acaba mesmo!...
- Então, é melhor vir. Porque se já começaram assim, com estas ameaças, com estas arrogâncias, tudo pode acontecer. Com tanta gente aflita em busca de casa para morar, as vezes é pretexto para vos retirar do apartamento. E preparem-se, quando a factura da água e da energia eléctrica chegar, muita gente vai arrumar a trouxas para o Zango 5… As gémeas de Luanda, a Edel e a Epal o que fazem!
O homem agitou-se. O telefone mudava de mão e de orelha várias vezes. Ele estava inconformado. Cinquenta anos esperou ansioso por aquela oportunidade: a de ter acesso a uma casa condigna num espaço com as melhores condições de habitabilidade jamais vista desde que seu país se tornara independente da potência colonizadora. Por isso fizera grande festa, quando recebeu as chaves do apartamento. A espera foi angustiante. As noites mal dormidas.
Acompanhado da esposa e do funcionário da imobiliária, depois de abrirem a porta, jogou-se e rolou na poeira que cobria o chão da sala. Naqueles instantes, percorrera as léguas da vida. A sua vida humilde na aldeia em que nascera e crescera. Os pés descalços no caminho da escola e a humilhação da gente rica ao troçarem a sua bata furada pelo uso reiterado ou o seu lanche que era quase sempre banana ou mandioca cozida com dendém ou ainda milho torrado trazido numa garrafa com água. Mastigava com dor e raiva. Algumas vezes chorou inconsolável a sua sorte. Inclusive já fizera queixa à professora, mas esta não se manifestara solidária. - Rapaz, tu és pobre, o que esperas? – disse, enquanto alisava descontraída a sua maquiagem.
Naquele dia, ele voltou para casa e ao longo de todo o percurso, continuou a repetir com lágrimas as palavras da professora: - Rapaz, tu és pobre, o que esperas?
Informou ao seu pai do sucedido. O pai abraçou-lhe com carinho e depois tirou 5 escudos da algibeira para que ele comprasse pão com ginguba no recreio. E quando ia receber a moeda percebeu que seu pai também chorava. Nunca mais se esqueceu daqueles dois momentos.
Cresceu repetindo as palavras da professora loira e a lembrar as lágrimas do pai sobre o rosto engelhado. Quando os Capitães de Abril saíram à rua de Lisboa, ele ficou feliz, pois ninguém mais depois de tudo lhe iria voltar a humilhar.
Lembrou-se da Lua-cheia, da Má-língua, do seu rio da infância onde se banhava antes de ir à escola. Memória dos seus amigos e companheiros de todas a horas. César, Prazeres, Pascoal, Fama…
Agora estava feliz. Não se importou com a poeira nem com os chuveiros que haviam sido roubados no apartamento.
Passados cinco meses eis que despertou do sonho. Ofegante, não acreditava no que ouvia. Recebera o apartamento em Setembro e mudou-se. Foi o primeiro morador a desembarcar com os seus parcos haveres. Seus móveis cansados de tantos anos de espera por substituição, por isso fez a mudança à noite, por volta das 20 horas, para evitar a bisbilhotice de gente disponível para comentar a vida alheia.
Pagara apenas o primeiro mês, depois a imobiliária, em comunicado afixado na soleira da porta do edifício, pediu aos moradores que não fizessem qualquer tipo de pagamento, aguardando por novas ordens. Aguardaram por novas informações desde Outubro, Novembro, Dezembro. Janeiro, Fevereiro. Eis que agora em Março chega o novo aviso em forma de ultimato. Um pedregulho no vidro da esperança!
Desligou o telefone e chamou rapidamente pelos seus companheiros. Wandalika também aproximou-se na ânsia de partir.
-Temos de bazar, me querem tirar o apartamento do Kilamba!... Vamos, antes que não seja tarde!... Tu estás doente, vais ficar! – disse o condutor dirigindo-se com rispidez ao Wandalika.
Os demais embarcaram e partiram apressados acelerando o Corolla. Wandalika ficou estático entre a fumaça expelida pelo velho motor. E teve dó.
- Coitados! Se acreditam tanto no quimbanda, então, antes de partirem, deviam pelo menos fazer um tratamento para ver se conseguiam acalmar a imobiliária… Isso ainda vai-lhes render aborrecimentos. Mil desassossegos!
Suspirou e procurou um adobe de consolo para sentar-se enquanto aguardava resignado pela sua sorte! E pela primeira vez, nos últimos anos, voltou a sentir aquela saudade que diante do vazio, destroça qualquer coração. Saudade da sua vida simples e despreocupada da aldeia. Da sua modesta casa construída na colina e afagada pela sombra de frondosas mangueiras. Saudade do milho torrado e do funge quipicula feito com óleo de palma e sal. E do sono sossegado no colchão de palha ou na esteira. O acordar tranquilo sob a sinfonia do canto de galos e pássaros! As cidades possuem tudo, mas não têm galos nem galhos para poleiros dos mais variados pássaros da sua infância.
- Ai Chorinho doce, de Adélia:
Eu já tive e perdi/Uma casa,/Um jardim, uma soleira, uma porta/Um caixão de janela com um perfil./Eu sabia uma modinha e não sei mais./Quando a vida dá folga, pego a querer/A soleira/O portal/O jardim mais a casa/O caixão de janela e aquele rosto de banda. Tudo impossível./Tudo de outro dono,/Tudo de tempo e vento. Então me dá choro, horas e horas,/O coração amolecido como figo em calda.

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