terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Encontro com Salif Keita no deserto


No caleidoscópio, como nevoeiro que cobre as manhãs do interior, Wandalika ainda trazia no semblante a inquietude e na retina a imagem de crianças famintas, angariadas no interior da província da Huila para o trabalho agrícola nas fazendas do Namibe. Na fusão, se sobrepõe o retrato de adultos e adolescentes carregando água em baldes e bidons amarelos na cidade do Kilamba, enquanto aí perto uma fila de camiões cisternas abastecem-se do precioso líquido para comercialização.
Bidons, bacias e baldes são adereços obrigatórios, que ganharam com justiça um lugar cativo em todos os apartamentos, daí a sua justificada demanda no inflacionado mercado luandense. Estes utensílios de tão procurados até entraram para a longa lista de pedidos de casamento, sentando-se à direita do incontornável companheiro, o gerador.
Os seus sentidos confundem a realidade e a ficção. Talvez seja da ansiedade! Talvez seja da sonolência. Talvez seja da fome. Talvez seja da sede. Talvez seja do cansaço da espera incerta. A espera é como as melancias, verdes por fora e sangrando por dentro. Talvez seja da demência. Talvez seja dos solavancos e da poeira da obra da estrada da Penitenciária de Luanda.
Apesar da conjugação do futuro imperfeito, ele sentia-se aliviado. Pelo menos não ficaria preso como cogitara ao ser forçado a iniciar uma odisseia ao lado de quatro desconhecidos. Estar preso é ser privado da liberdade. É não puder ir onde se quer na hora que se quiser. E ele já acumulara experiência de sobra desde a primeira vez que fora preso por brincar com a Esperança. Dormiu no chão da cela, cobriu-se com papelões e a casa de banho estava desprovida do lavatório e da sanita. No lugar da sanita, apenas sobrara um buraco negro vigiado por dezenas de moscas. Usá-lo era preciso uma dose de pontaria, para não falhar o alvo. O procedimento era: 1º - apoiar correctamente os pés fixando-os no pavimento ao lado da abertura; 2º - regular a altura, flexionando as pernas e seguidamente tranca-las com os antebraços atrás dos joelhos. Era como se de uma corrediça da alça de mira se tratasse.
A refeição? Quando houvesse era arroz com chouriço ou com frango. As poucas vezes em que melhor se alimentou, foi graças à refeição trazida pela esposa de um presidiário que havia sido condenado por homicídio. Era tempo de estiagem e a manutenção dos presos era uma tarefa bastante difícil num contexto marcado pela escassez.
Wandalika partilhava a cela com o autor de um crime hediondo. Pelo facto do seu crime não ser grave, podia muito bem aguardar o julgamento em liberdade… Sim. E logo se lembra da estratégia gizada pelo anterior ministro do Interior para o combate à superlotação das cadeias. As pulseiras electrónicas seriam usadas pelos presos para o seu controlo à distância. Por isso torce para que o projecto conste no Orçamento Geral do Estado para 2013.
A implementação do projecto das tornozeleiras electrónicas iria reduzir o número de presos que entupem as prisões e pouparia milhões de dólares canalizados para a construção de novas cadeias, infra-estruturas de apoio, abastecimento com alimentação, água, energia eléctrica, assistência médica e medicamentosa, bem como o pagamento de pessoal de segurança.
A criminalidade custa cara a qualquer Estado. A título de exemplo, tendo em conta valores de 2011, a vigilância electrónica custa ao Estado português 16,35 euros, enquanto o custo médio diário de um recluso é de 47,81 euros.
Já no Brasil, o custo com cada preso é de pouco mais de 1.800,00 reais por mês, cerca de 900 dólares. Com o novo sistema, o custo será de R$ 539,58 por mês (300 dólares aproximadamente).
Além da redução dos recursos canalizados para a manutenção dos presidiários, a medida deverá trazer também mais benefícios para o processo de reinserção social dos condenados, que passam a ter convivência familiar e condições de estudar e trabalhar normalmente.
Por conta das reduções dos números de detentos, aqueles que permaneceriam nos presídios, teriam maior espaço e condições de maior sanidade.
Assim, combater-se-ia a ociosidade que é outra inimiga do presidiário. Permanecer todos os dias fechado numa jaula é coisa que mais os fragiliza comprometendo a sua reeducação. A criação de hortas, carpintarias, oficinas de veículos e máquinas, fábrica de blocos, escolas e bibliotecas era importante para que pudessem vencer o relógio preguiçoso da prisão.
Eram quase 13 horas. Naquele momento, um peão procura atravessar a rua movimentada. Ao chegar no meio da faixa de rodagem, ele vacila e recua correndo para o ponto de partida. No trajecto quase foi colhido por uma motocicleta. Elas estão em todo lado e não respeitam nada e ainda reclamam batendo arrogantes com o punho nas viaturas quando os condutores destas não os deixam passar. E acham que têm sempre razão!
O Corolla, em que ia Wandalika, teve de travar de repente.
- Olha o jornal! Olha o Jornal!
Naquele instante, um ardina aproximava-se com várias publicações. Wandalika esticou o pescoço para espreitar as manchetes do único diário da República de Angola. Assustou-se…
Mas logo o carro acelerou, deixando para trás o adolescente. E a alma reteve o susto. A figura que aparecia na capa usava traje tradicional onde sobressaía o lenço feito túnica cobrindo a cabeça. Quem será?... Será o presidente líbio Muammar Khadafi?...
Khadafi não pode ser, pois este foi morto em 2011, depois de vários meses de resistência contra os revoltosos vindos de Benghazi e sempre apoiados pela OTAN.  
- Em 20 de Outubro de 2011, foi formada uma coluna de mais de 40 veículos que deveria, antes do amanhecer, fugir de Sirte  em direcção à aldeia de Jaref, localizada a 20 quilómetros a oeste da cidade sitiada. Mas a coluna somente partiu por volta das 8 horas da manhã e aviões da OTAN rapidamente atingiram um dos veículos da mesma. Um segundo ataque aéreo causou um maior número de vítimas e atingiu o carro onde ele estava e, por isso, teve que tentar continuar a fuga a pé, mas foi cercado, capturado e morto.
Wandalika ainda se lembra do antigo líder líbio com seu traje e a sua guarda percorrendo os corredores da Sede da União Africana. Ainda ouve a sua voz entusiástica e vê os seus gestos frenéticos no palanque da União Africana projectando os Estados Unidos da África. Ele queria uma África livre e independente de facto, que fosse capaz de ser dona dos seus próprios destinos.
- Na véspera  de uma das Cimeiras, naltura na qualidade de presidente da UA, o líder líbio Muammar Khadafi, concedeu uma longa entrevista a agência PANA, manifestando o seu cepticismo quanto aos resultados alcançados pela organização desde a sua criação. Segundo ele, passados cerca de dez anos após a proclamação da UA “e na sequência de um trabalho laborioso, os africanos rendem-se, infelizmente, à evidência de que o continente continua longe de realizar o seu projecto de uma África Unida.
Kadhafi foi morto sem conseguir atingir o seu sonho. E mesmo nos momentos mais derradeiros dos combates em Trípoli, poucos ou raros irmãos africanos o ajudaram.
 Como praga, na sequência da sua morte, deflagraram ou se acirraram conflitos antes latentes em vários pontos do continente: Costa do Marfim, Guiné Bissau, Mali, RDC e República Centro africana. E o continente, 50 anos depois da proclamação da Unidade Africana, tem-se mostrado incapaz de solucionar os seus próprios conflitos e carências, a ponto de apelar para a presença de tropas francesas e de apoio logístico de outros países da OTAN e dos EUA para fazer face à ameaça de desagregação do Mali.
A conflitualidade que se regista na República do Mali tem probabilidade de afectar países vizinhos. Basta observar a dimensão territorial e a quantidade de países que o cercam. Argélia, (que ainda procura curar as feridas deixadas pelo ataque terrorista contra as suas instalações petrolíferas), o Níger, Burquina Faso, Cote D´Ivoire, Guiné Bissau, Guiné Conacry, Senegal.
As mesmas armas que assassinaram o antigo líder líbio estão hoje apontadas contra os tuaregues, que são tão africanos como ele. Que futuro?
Como disse o europeu Henry Palmerston “Nós não temos aliados eternos nem inimigos perpétuos. Nossos interesses é que são eternos e perpétuos, e nosso dever está em perseguir esses interesses.”
 E os interesses geoestratégicos das grandes potências vão vincar, pois o Mali é um país rico em Ouro, Urânio, tendo também reservas de cobre, diamante, ferro, manganês, fosfato, bauxita, zingo, lítio entre outros minerais.
Afro-pessimistas, afro-optimistas, pan-africanistas… Wandalika suspira com mágoa. E rumina no silêncio as palavras do Presidente António Agostinho Neto: - «Hoje a África é como um corpo inerte, onde cada abutre vem debicar o seu pedaço».
E com a sonoridade da música “Yamore”, do cantor maliano Salif Keita e Cesária Évora, os ocupantes do Corolla seguem em direcção ao município do Cacuaco... Todos gargalham descontraídos. Só ele está triste, introspectivo!... - Abutres sobre o corpo inerte!…

Não grita seus anseios                                  
no receio de perturbar um mundo
que o ofusca
com o falso brilho dos seus ouropéis.”

E Wandalika chora suas lágrimas de indignação.
AI NETO!... 

1 comentário:

helenice disse...

Nossa quanto aprendi aqui! Antes da pós nunca tinha escutado falar do Mali e muito menos que ficava em África! Tuareg jamais tinha ouvido essa palavra e Khadafi ouvi há tanto tempo sobre e nem sabia quem era e muito menos que era um líder africano! Nem na pós comentaram! Salif Keita só em citação na música de Chico Césa A primeira vista: " Quando chegou carta, abri/ quando ouvi Salif Keita, dancei/ quando o olho brilhou, entendi/ quando criei asas voei...