No caleidoscópio, como nevoeiro que cobre as
manhãs do interior, Wandalika ainda trazia no semblante a inquietude e na
retina a imagem de crianças famintas, angariadas no interior da província da
Huila para o trabalho agrícola nas fazendas do Namibe. Na fusão, se sobrepõe o
retrato de adultos e adolescentes carregando água em baldes e bidons amarelos
na cidade do Kilamba, enquanto aí perto uma fila de camiões cisternas
abastecem-se do precioso líquido para comercialização.
Bidons, bacias e baldes são adereços obrigatórios,
que ganharam com justiça um lugar cativo em todos os apartamentos, daí a sua
justificada demanda no inflacionado mercado luandense. Estes utensílios de tão procurados
até entraram para a longa lista de pedidos de casamento, sentando-se à direita
do incontornável companheiro, o gerador.
Os seus sentidos confundem a realidade e a ficção.
Talvez seja da ansiedade! Talvez seja da sonolência. Talvez seja da fome.
Talvez seja da sede. Talvez seja do cansaço da espera incerta. A espera é como
as melancias, verdes por fora e sangrando por dentro. Talvez seja da demência. Talvez
seja dos solavancos e da poeira da obra da estrada da Penitenciária de Luanda.
Apesar da conjugação do futuro imperfeito, ele
sentia-se aliviado. Pelo menos não ficaria preso como cogitara ao ser forçado a
iniciar uma odisseia ao lado de quatro desconhecidos. Estar preso é ser privado
da liberdade. É não puder ir onde se quer na hora que se quiser. E ele já
acumulara experiência de sobra desde a primeira vez que fora preso por brincar
com a Esperança. Dormiu no chão da cela, cobriu-se com papelões e a casa de
banho estava desprovida do lavatório e da sanita. No lugar da sanita, apenas
sobrara um buraco negro vigiado por dezenas de moscas. Usá-lo era preciso uma
dose de pontaria, para não falhar o alvo. O procedimento era: 1º - apoiar
correctamente os pés fixando-os no pavimento ao lado da abertura; 2º - regular
a altura, flexionando as pernas e seguidamente tranca-las com os antebraços atrás
dos joelhos. Era como se de uma corrediça da alça de mira se tratasse.
A refeição? Quando houvesse era arroz com chouriço
ou com frango. As poucas vezes em que melhor se alimentou, foi graças à
refeição trazida pela esposa de um presidiário que havia sido condenado por
homicídio. Era tempo de estiagem e a manutenção dos presos era uma tarefa
bastante difícil num contexto marcado pela escassez.
Wandalika partilhava a cela com o autor de um
crime hediondo. Pelo facto do seu crime não ser grave, podia muito bem aguardar
o julgamento em liberdade… Sim. E logo se lembra da estratégia gizada pelo
anterior ministro do Interior para o combate à superlotação das cadeias. As
pulseiras electrónicas seriam usadas pelos presos para o seu controlo à
distância. Por isso torce para que o projecto conste no Orçamento Geral do
Estado para 2013.
A implementação do projecto das tornozeleiras
electrónicas iria reduzir o número de presos que entupem as prisões e pouparia
milhões de dólares canalizados para a construção de novas cadeias,
infra-estruturas de apoio, abastecimento com alimentação, água, energia
eléctrica, assistência médica e medicamentosa, bem como o pagamento de pessoal
de segurança.
A criminalidade custa cara a qualquer Estado. A título
de exemplo, tendo em conta valores de 2011, a vigilância electrónica custa ao
Estado português 16,35 euros, enquanto o custo médio diário de um recluso é de
47,81 euros.
Já no Brasil, o custo com cada preso
é de pouco mais de 1.800,00 reais por mês, cerca de 900 dólares. Com o novo
sistema, o custo será de R$ 539,58 por mês (300 dólares aproximadamente).
Além da redução dos
recursos canalizados para a manutenção dos presidiários, a medida deverá trazer
também mais benefícios para o processo de reinserção social dos condenados, que
passam a ter convivência familiar e condições de estudar e trabalhar
normalmente.
Por conta das reduções
dos números de detentos, aqueles que permaneceriam nos presídios, teriam maior
espaço e condições de maior sanidade.
Assim, combater-se-ia a
ociosidade que é outra inimiga do presidiário. Permanecer todos os dias fechado
numa jaula é coisa que mais os fragiliza comprometendo a sua reeducação. A
criação de hortas, carpintarias, oficinas de veículos e máquinas, fábrica de
blocos, escolas e bibliotecas era importante para que pudessem vencer o relógio
preguiçoso da prisão.
Eram quase 13 horas.
Naquele momento, um peão procura atravessar a rua movimentada. Ao chegar no
meio da faixa de rodagem, ele vacila e recua correndo para o ponto de partida. No
trajecto quase foi colhido por uma motocicleta. Elas estão em todo lado e não
respeitam nada e ainda reclamam batendo arrogantes com o punho nas viaturas
quando os condutores destas não os deixam passar. E acham que têm sempre razão!
O Corolla, em que ia
Wandalika, teve de travar de repente.
- Olha o jornal! Olha o
Jornal!
Naquele instante, um
ardina aproximava-se com várias publicações. Wandalika esticou o pescoço para
espreitar as manchetes do único diário da República de Angola. Assustou-se…
Mas logo o carro
acelerou, deixando para trás o adolescente. E a alma reteve o susto. A figura que
aparecia na capa usava traje tradicional onde sobressaía o lenço feito túnica cobrindo
a cabeça. Quem será?... Será o presidente líbio Muammar Khadafi?...
Khadafi não pode ser, pois este foi morto em 2011, depois de vários meses de
resistência contra os revoltosos vindos de Benghazi e sempre apoiados pela
OTAN.
- Em 20 de Outubro de 2011, foi formada uma coluna de
mais de 40 veículos que deveria, antes do amanhecer, fugir de Sirte em direcção à aldeia
de Jaref,
localizada a 20 quilómetros a oeste da cidade sitiada. Mas a coluna somente
partiu por volta das 8 horas da manhã e aviões da OTAN rapidamente atingiram
um dos veículos da mesma. Um segundo ataque aéreo causou um maior número de
vítimas e atingiu o carro onde ele estava e, por isso, teve que tentar
continuar a fuga a pé, mas foi cercado, capturado e morto.
Wandalika ainda se lembra
do antigo líder líbio com seu traje e a sua guarda percorrendo os corredores da
Sede da União Africana. Ainda ouve a sua voz entusiástica e vê os seus gestos frenéticos
no palanque da União Africana projectando os Estados Unidos da África. Ele queria
uma África livre e independente de facto, que fosse capaz de ser dona dos seus
próprios destinos.
- Na véspera de
uma das Cimeiras,
naltura na
qualidade de presidente da UA, o líder líbio Muammar Khadafi, concedeu uma
longa entrevista a agência PANA, manifestando o seu cepticismo quanto aos
resultados alcançados pela organização desde a sua criação. Segundo ele, passados cerca de dez anos após a proclamação da UA
“e na sequência de um trabalho laborioso, os africanos rendem-se, infelizmente,
à evidência de que o continente continua longe de realizar o seu projecto de
uma África Unida.
Kadhafi foi morto sem
conseguir atingir o seu sonho. E mesmo nos momentos mais derradeiros dos
combates em Trípoli, poucos ou raros irmãos africanos o ajudaram.
Como
praga, na sequência da sua morte,
deflagraram ou se acirraram conflitos antes latentes em vários pontos do
continente: Costa do Marfim, Guiné Bissau, Mali, RDC e República Centro africana.
E o continente, 50 anos depois da proclamação da Unidade Africana, tem-se
mostrado incapaz de solucionar os seus próprios conflitos e carências, a ponto
de apelar para a presença de tropas francesas e de apoio logístico de outros
países da OTAN e dos EUA para fazer face à ameaça de desagregação do Mali.
A conflitualidade que se regista na República do
Mali tem probabilidade de afectar países vizinhos. Basta observar a dimensão territorial
e a quantidade de países que o cercam. Argélia, (que ainda procura curar as
feridas deixadas pelo ataque terrorista contra as suas instalações petrolíferas),
o Níger, Burquina Faso, Cote D´Ivoire, Guiné Bissau, Guiné Conacry, Senegal.
As mesmas armas que
assassinaram o antigo líder líbio estão hoje apontadas contra os tuaregues, que
são tão africanos como ele. Que futuro?
Como disse o europeu Henry Palmerston “Nós não
temos aliados eternos nem inimigos perpétuos.
Nossos interesses é que são eternos e perpétuos, e nosso dever está em
perseguir esses interesses.”
E os interesses
geoestratégicos das grandes potências vão vincar, pois o Mali é um país rico em
Ouro, Urânio, tendo também reservas de cobre, diamante, ferro, manganês,
fosfato, bauxita, zingo, lítio entre outros minerais.
Afro-pessimistas,
afro-optimistas, pan-africanistas… Wandalika suspira com mágoa. E rumina no
silêncio as palavras do Presidente António Agostinho Neto: - «Hoje a África
é como um corpo inerte,
onde cada abutre vem debicar o seu pedaço».
E com a sonoridade da música “Yamore”, do cantor
maliano Salif Keita e Cesária Évora, os ocupantes do Corolla seguem em direcção
ao município do Cacuaco... Todos gargalham descontraídos. Só ele está triste,
introspectivo!... - Abutres sobre o corpo inerte!…
“Não grita
seus anseios
no receio de perturbar um mundo
que o ofusca
com o falso brilho dos seus ouropéis.”
no receio de perturbar um mundo
que o ofusca
com o falso brilho dos seus ouropéis.”
E Wandalika chora suas lágrimas de indignação.
AI NETO!...
1 comentário:
Nossa quanto aprendi aqui! Antes da pós nunca tinha escutado falar do Mali e muito menos que ficava em África! Tuareg jamais tinha ouvido essa palavra e Khadafi ouvi há tanto tempo sobre e nem sabia quem era e muito menos que era um líder africano! Nem na pós comentaram! Salif Keita só em citação na música de Chico Césa A primeira vista: " Quando chegou carta, abri/ quando ouvi Salif Keita, dancei/ quando o olho brilhou, entendi/ quando criei asas voei...
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