segunda-feira, 17 de junho de 2013

Espionagem arbitrária



SEGUNDA-FEIRA: São 4H00. Acordo sob o som da música do despertador. É “A Via Láctea” de Renato Russo!- Sempre existe uma luz/Quando tudo está perdido… 
Acordei, mas permaneço imóvel na cama morna, buscando na sinfonia o recobrar das forças e energias, o conectar da alma à vida com os seus devaneios. O esfolhear das lições anteriores na projecção de um novo dia, buscando transcendência na poesia de cada manhã com seus gorjeios arrebatadores. Cada pássaro o seu cantar e juntos formam a harmonia da orquestra matinal. E a água fria do chuveiro completa o milagre divino. O fornecimento da água e da luz estão normalizados. Cresce o optimismo. Antes de descer espreito através da cortina da sala a normalidade da cidade ainda adormecida.
Aperto cinto. Dou o arranque. Ligo o rádio. Enquanto aqueço o motor do carro, percorro mentalmente a totalidade do trajecto. Nas curvas, reduzo a velocidade e nos entroncamentos paro, olho e escuto. Preparo-me psicologicamente para suportar as arrelias provocadas pelo engarrafamento e seus protagonistas. Quantos litros de combustíveis são consumidos por veículos em pequenos trajectos. Quanto o país gasta com o trânsito parado? Milhões de dólares em combustíveis subvencionados pelos cofres do Estado, que serviriam para outras demandas das populações! Talvez desse para a criação de um subsídio de natalidade para acudir às populações de baixa renda: Durante e depois da gravidez, toda a mulher desempregada receberia no Banco um valor mensal até que o seu filho atingisse os 18 anos. Por exemplo, 10 mil kwanzas para quem hoje vive com menos de 100 kwanzas/dia seria uma grande fortuna. Seria uma das formas para atenuar os efeitos nefastos da pobreza nas famílias angolanos, elevando assim o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).

Inspiro e expiro sonhador. O engarrafamento no trânsito luandense também gera negócios, não só para as gasolineiras, mas também para os ardinas e outros vendedores ambulantes que encontram aí vitrina para os seus produtos. As Rádios são outras que facturam com os nervos dos automobilistas encurralados em estradas sem alternativas. O caos do trânsito faz emergir orgulho no Radialismo angolano, animando ou desanimando as manhãs com palavras e músicas de vários quadrantes. Entre a plateia estressada, ele encontra homens energúmenos, boçais, ignorantes talvez que lhe contrariem. Quem o contrariar pode ser taxado de invejoso… Mas responder ouvintes igualmente com insultos pode não ser a melhor escola! Ah, o Manual de Rádio Jornalismo Jovem Pan! Trate o ouvinte com delicadeza, ainda que este use linguagem pouco cortês. Avance irmão angolano. Como diz Nelson Rodrigues, “quem pensa com unanimidade não precisa de pensar”.

Sair do Lar do Patriota para a Corimba é uma verdadeira guerra de nervos. Outros buscam saída ou entrada na antiga estrada do Futungo de Belas. Mas aí encontram uma placa “ÁREA RESTRITA”, limitando a passagem. Apenas alguns poucos passam através do filtro fino do controlo militar. Logo o desassossego destoa da calma transmitida pelas manhãs de cacimbo. Perde-se muito tempo para se alcançar o Morro da Luz. É demasiado. Consulto as horas! São 6H30 e percebo, pela fila de carros, que até à baixa de Luanda gastaria mais de 3 horas. Preciso chegar antes, para conseguir um espaço para o estacionamento, pois a Marginal está em obras e não foram criadas alternativas. Não há alternativas! Que fazer? Entro em sofrimento. Depois da passagem superior do Morro da Luz retorno e apanho a estrada do lado da praia. Seguimos em coluna numa estrada cheia de buracos e solavancos. O cheiro do mar e de peixe deteriorado pairam na atmosfera. Náuseas! É preciso calma e muita paciência.  
Os autocarros públicos sumiram das estradas. Se alguém investisse em transportes colectivos de qualidade para os que moram no Kilamba, eu deixaria de investir em carro pessoal. Um autocarro VIP com toda a acomodação e prestação de serviço de bordo quem não pagaria? Cada passageiro obteria um cartão reservando a sua poltrona. Às 5H00, 5H30, 6H00 e 6H30 partiriam do Kilamba, regressando apenas no período da tarde. Ou seja, a partir das 15H30, 16H00, 17H00, 18H10. Era também uma forma de os socializar, pois andam muito ilhados.

TERÇA-FEIRA: A Polícia Nacional abre inscrição para novos candidatos. Um erro de cálculo, leva a suspensão de todo o processo horas depois de ter iniciado. O número de jovens candidatos que procuram pelo primeiro emprego, supera as expectativas das autoridades. A preparação minuciosa de qualquer processo é premissa de êxito. Valeu a correcção atempada do tiro! O improviso é inimigo da perfeição.

QUARTA-FEIRA: Exausto regresso a casa. Não tem jeito. Já no Kilamba, passo e não acredito no que vejo. Paro e recuo. Pestanejo. Me belisco. Continuo incrédulo. Repito o gesto com maior violência. E caio na real. Alguém ateou fogo ao relvado ressequido do Quarteirão A da Centralidade do Kilamba. Suspiro com desgosto e parto desiludido. O que é que essa gente tem na cabeça. E fico a pensar na minha infância! Já fui inocentemente feliz! Apesar das arrobas de café cereja e de milho que levava para a moagem, eu era uma criança feliz. Atenção: A arroba são 15 quilos, diferente da @ da Internet. Por iniciativa própria recolhia e partia coconote no palmar para comercializar na cantina do sô Manuel, recebendo em troca quedes-praia e lenço de bolso, rebuçados, amêndoas e bolachas. Mas nada de trocar a escola e as brincadeiras pelo trabalho. Lavar a loiça fazia parte do exercício de adestramento. Não era como as crianças que combatem de armas na mão em alguns países. 12 de Junho assinala-se o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. A data começou a ser comemorada em 2002, por iniciativa da OIT (Organização Internacional do Trabalho), com o objectivo de chamar a atenção da sociedade e governos sobre a importância da implementação da Convenção que estabelece a idade mínima para admissão ao emprego.

QUINTA-FEIRA: O sistema bancário está lento. Com ranger de dentes, aguento a fila durante toda a manhã. As filhas no estrangeiro clamam. Tento acalma-las, justificando, mas a barriga não aceita as explicações: Pai, não queremos palavras. Queremos dinheiro da bolsa. Ok. Calo. No fim, também quero bons resultados.

SEXTA-FEIRA: O avanço das novas tecnologia propicia um rápido desenvolvimento das sociedades jamais vista em toda a sua história, todavia o seu uso indevido pode acabar por criar conflitos com a legalidade diante da exposição da privacidade alheia. É nesse âmbito que se inscreve o gesto inusitado do ex-agente da CIA Edward Snowden, de 28 anos de idade, denunciando o programa de espionagem em massa da Agência norte-americana. A tal democracia na América também funciona assim?!!! Então estamos entalados! Então, as inquietações de Jorge Orwell expressas na sua obra 1984 eram justas. Publicado em 8 de Junho de 1949, o romance narrada história de Winston Smith, um homem com uma vida aparentemente insignificante, que recebe a tarefa de perpetuar a propaganda do regime através da falsificação de documentos públicos. Smith fica cada vez mais desiludido com sua existência miserável e assim começa uma rebelião contra o sistema.
“Estou disposto a sacrificar tudo por não poder, em sã consciência, permitir que o governo norte-americano destrua a privacidade, a liberdade na Internet e a liberdade básica das pessoas em todo mundo com uma máquina de espionagem”, diz o ex-agente da CIA Edward Snowden.
O termo Big Brother, popularizado pelo romance, refere-se à fiscalização e controle de um determinado governo na vida dos cidadãos, além da crescente invasão sobre os direitos do indivíduo.
SÁBADO: Falando em espionagem, lembro-me de um episódio da minha infância. Muitas mulheres andavam inquietas devido aos rumores que perpassavam a aldeia descrevendo com minúcia as suas partes íntimas. Alguém estaria a monitora-las. Quem seria? Desconfiaram. Só pode ser um homem que se tenha escondido nas margens do rio Mazungue, para as espionar durante o banho. Foi assim que decidiram montar uma emboscada. Um grupo de senhoras entrou no rio e um outro permaneceu na Aldeia, aguardando o cair do sol. Quando o crepúsculo espalmava as sombras do arvoredo sobre a paisagem, nas margens, o grupo de patrulha seguiu um rasto. Devagarinho, caminharam até confirmarem as suas suspeitas. Ajoelhados, o homem perscrutava as senhoras através das folhagens. As mulheres gritaram. Surpreendido, jogou-se no rio desaparecendo na outra margem. Mas foi reconhecido. Era o guarda-redes da equipa do bairro. Foi assim, que no sábado, no Comité do bairro, todos os aldeões conheceram e puniram o espião da aldeia. Zé Liengue, apesar de analfabeto e mesmo sem TV, já conhecia os dois sabores do Big Brother!

DOMINGO: Desligo o telefone. Quero voltar a ser um homem livre!



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