terça-feira, 27 de maio de 2008

SAPATOS CASTANHOS

Há muito haviam sonhado comprar uns sapatos. A obsessão fez com que eles morassem no pensamento, até que um dia achei uma bicha na esquina de uma rua. Uma fila pequena e menos barulhenta, pois era dos responsáveis, de então.
Da montra bem ajeitada, para a época, avistei uns sapatos. Parei e o coração palpitou. Os que usava já há muito reclamavam substituição e o sapateiro, cansado de os remendar, juntou-se aos apelos. Ora era o tacão que soltava-se, fazendo-me caminhar desequilibrado. Ora era o dedo menor que queria ver o sol e ora era a sola que queria ventilar os pés, deixando entrar a poeira.
Suspirei inconformado. Fiquei no passeio a olhar. Um olhar perdido entre rostos suados do Sumbe poeirento. E aí acontece o milagre. Um dos funcionários cumprimenta-me. Era o tio Armindo! Sai da casca e sorri de satisfação. Aponto para a montra: os sapatos! Olha os meus pés com dó e compaixão, não sorri. Pede-me que voltasse num outro dia. - Mas quando? - Dentro de dois dias.
Era terça-feira. Temia que partisse antes, mas não, a viagem estava marcada apenas para sexta. Esperei angustiado o passar das horas. Imaginei-me calçado e a gingar...
No dia previsto recebi-os. Eram castanhos reluzentes, bonitos, nº 41. No lugar dos atadores, tinha uma fita que se afivelava no lado direito do pé. Aliviado e ansioso parti para casa. No caminho, demorei o olhar sobre a paisagem, sobre as gentes e sobre as coisas como se fosse aquela a última oportunidade dada a um condenado a pena capital. E com os olhos húmidos e sapatos castanhos comecei a odisseia.
Em Luanda, eles foram meus companheiros. Na primeira semana, no Centro Instrução da Kazanga, não foi distribuída a farda nem as botas. Na ausência, eram os sapatos castanhos que me protegeram contra a areia quente da ilha. - Está formar! Está saltitar! Caiu! Para cima! Para baixo! Está rastejar! Levantou! Está correr!... Alinhou! …
O sol, o sal e a chuva. E eles suportaram tudo até que certo dia foram rendidos pelas botas de borracha. Chamavam-nas "Macambira" em alusão, talvez, à fábrica de artefactos de borracha da Vila Alice.
Os sapatos castanhos ficaram tristes sob o beliche. Pelo uso, o couro embranqueceu-se e todo ele ficou disforme, acentuando ainda mais a sua melancolia.
Olhava-os com dó, mas tive de deixá-los para trás, já não cabiam na mochila. Tinham cumprido o seu ciclo. Agora, eram as botas de borracha que marcavam o compasso, depois vieram as de cabedal a completar o uniforme verde-olivo. E assim foram-se os sapatos castanhos nº41.
A vida é um caminho. Ou seja, é como o rio que nasce na montanha e desce a encosta até ao mar-Kalunga. Caminhamos errantes para algures e na berma deixamos farrapos, esperanças, saudades, amores...ilusões. Quantas coisas que nos eram tão queridas ficaram para trás? Ai pai, mãe, filhos, amores, amigos...companheiros. Aqueles com quem partilhamos os momentos mais difíceis, dividimos um pedaço de pão, juntamos lágrimas, juramos lealdade e amizade. Aqueles com quem confidenciávamos e desabafávamos as nossas angústias e frustrações.
Sinto-me num estado de nudez progressiva. Sem os sapatos do Sumbe e sem muitos amigos que me conheceram de verdade. Começo a ser um estranho, para muitos. Toda vez que alguém que nos é querido se vai, ficamos mais pobres, mais frágeis, mais solitários, mais infelizes. Ai que saudade!...

1 comentário:

Soberano Kanyanga disse...

Grandes momentos. Grandes recordações... Só quem vive intensamente uma vida tem lembranças... Um abraço