terça-feira, 27 de maio de 2008

Memórias gabelenses

É Maio! As noites são frias e aconchegantes. “Nene-nene-nééne, minino não chora/Mamã foi no rio/Papá foi no campo.” Hoje, Quintino acordou com a sensação de estar a viver um dia diferente. Um dia embrulhando em fraldas dos seus tempos de infância. Alguma coisa iria acontecer na sua vida? Talvez sejam apenas pressentimentos: Estes que fizeram brotar nos lábios, assobio persistente, lembrando a canção de embalar, que os tempos modernos adulteraram adaptando-a às suas próprias necessidades existenciais: “Nene-nene-nééne, minino não chora/Mamã foi no zunga/Papá foi na guerra.”
Os vizinhos olharam-no com dó: Está a ensaiar! Entre urbanos, assobiar é coisa de gente do mato. Estão cheios de preconceitos, mas à noite adormecem a olhar a televisão! São espectadores livres!
Na baixa luandense, onde edifícios multicolores cercam o horizonte, Quintino espreitou numa montra e viu as pedras negras que cercam o Amboim, sua terra Natal. No passo húmido, percorreu as lembranças. O andar no caminho sinuoso coberto de orvalho da noite. As pernas molhadas e o cheiro à perfume de flores silvestres. O aroma do café maduro. A fogueira para afugentar o frio de rachar. A resistência ao deixar a cama quente. As mãos estendidas sobre as labaredas puxando o corpo gelado.
Reencontrou na Nova Lembrança, velhos conhecidos. Velho Lourenço nasceu em 1922. Nas conversas, ele contava as coisas da sua mocidade, das farras, das partidas de futebol, que quase sempre terminavam em briga, e das conquistas amorosas.
Quando os homens de hoje nasceram, o velho já tinha cabelos brancos. Todos os dias colocava o seu banquinho defronte à porta do seu cubículo de adobes e estendia as pernas para apanharem sol. Uma forma de afugentar o reumatismo. Uma ameaça que aumentava com a idade.
Certa vez chamou-lhe. Quintino espantou-se quando ouvi ele a pronunciar o seu nome. Com passo tímido, aproximou-se até a uma distância que permitisse um recuo em segurança. Olho-o e ele estendeu os braços. Vem! Deu mais dois pequenos passos. E ele pegou-lhe na ponta dos dedos da mão direita e puxou-lhe calmamente para junto de si. Você não é o Quintino?!!!… Então, você tem medo do avô, hum?!!!
Sem saber o que responder, o recurso foi morder a ponta da camisa suja, enquanto os dedos dos pés carcomidos pelos bichos-do-pé (bitacaias) procurava a coragem entre cascas de cana.
Inspirou longamente, ergueu os olhos e viu através da íris azulada do Velho paisagens da antiga cidade da Gabela, antes feita de paredes de adobes e de pau-a-pique. Os seus olhos eram verdadeiros caleidoscópios!
Quando jovem, trabalhou como carpinteiros em várias obras que enobrecem as cidades do Novo Redondo, Porto Amboim e Gabela. Lembrava-se de tudo. Do ano em que foi construída a antiga Câmara Municipal do Amboim, a construção do Caminho de Ferro e da Sede da Companhia Angolana de Agricultura (C.A.D.A), Boa Entrada.
Do Porto Amboim, falou da rede de pesca e das ondas do mar. A guerra de Kandimba, o contrato e a perseguição aos filhos de Lumumba em 61. Quando Quintino ouviu sobre a Ilha de Luanda e das sereias apaixonadas por pescadores intrépidos, estremeceu.
Depois, com uma dose de triste na voz, o velho contou da mulher falecida e dos filhos que hoje vivem algures em Luanda.
Luanda é terra! – Disse sonhador!
Depois da independência, trabalhara como motorista da ETP (Empresa de Transportes Públicos). O camião com que transportava café do Kwanza Sul até Luanda tinha o nº 121 nas portas. Era de marca Scania 111 importados novinhos pelo recém criado Governo da República Popular de Angola.
Naqueles anos de 76, 77, 78, 79, 80… as estradas estavam boas e as viagens eram agradáveis. As estradas estavam boas? Sim! Os buracos foram surgindo com o aumento da intensidade do conflito militar.
A sua última viagem a Luanda, ao volante do Scania 111, ocorreu em 1985. A ETP faliu e ele voltou a dedicar-se aos trabalhos do campo. Andava cabisbaixo! Chorava às noites ao lembrar o seu Scania 111.
Anos se passaram desde a sua morte. Moradores do kimbo, que conheceram Luanda daquele tempo ao visitarem a capital partem impressionados. O número de carros aumentou. Agora as pessoas na capital não caminham cabisbaixo como no passado, hoje andam de nariz para cima. Por causa do lixo? Do lixo, nada! É por causa dos prédios. Estão a construir com cada prédios! Até outro dia vi um motorista que de tanto olhar na altura do prédio bateu atrás do carro que seguia à frente. Atraverssar a Avenida Marginal é dose. São carros que não acabavam mais. Com cada mulher com cabelo comprido que um gajo fica maluco! Fica maluco, mesmo! Por isso é que se vêem muitos homens falar e a rir à toa nas ruas de Luanda. Mas falam alto, gesticulam e sorriem…heheheheheehe! Ficar maluco não custa!…

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