terça-feira, 27 de maio de 2008

Adeus Sumbe!

Era Outubro de 1981. Poucos minutos passavam do flash das 18 horas, quando a Emissora Regional do Kwanza Sul começou a divulgar a lista dos mancebos convocados para o Serviço Militar Obrigatório.
A longa lista estava em ordem alfabética. Sentado na cama de ferro e o ouvido colado ao aparelho, o coração batia descompassado. Abreu (…) Adelino. António (…)
A respiração tornava-se difícil. A urina pressionava. Era preciso ir a casa de banho improvisada, porém temia perder a oportunidade de ouvir o seu nome. Por isso, a opção foi a mais racional. Pegou no aparelho empoeirado e levou-o ao banheiro.
Ao tentar descarregar a bexiga, acontece o que há muito temia: "Faz-tudo!" (…) Ao invés de só urina veio também fezes líquidas.
Sai trôpego e entra no quarto de adobes no Bairro da Bumba. Não acredita no que acabara de ouvir. E agora? … Poisou o olhar sobre as paredes, onde a luz "azeite de palma" do candeeiro de petróleo se condoía com o momento. Ele parou o olhar na sua sombra achatada contra parede, deslizou sobre o fio feito guarda-roupas, onde pendurava as calças e camisas de fardo recém-compradas na Loja do Povo. Suspirou e acabou no manual de matemática da 8ª classe ainda aberto. Na véspera, exercitava sobre como resolver um sistema de equações. Vários eram os métodos: redução, comparação, substituição.
Agora sentia-se reduzido a uma palha que flutuava no ar sem qualquer suporte. A comparação parece exagerada, mas era mesmo assim que ele se sentia: coração suspenso e a alma vagueando errante sobre mares tempestuosos.
As alegrias das brincadeiras de infância, o humor, o sabor dos primeiros beijos nas esquinas do bairro foram substituídas pela angústia que o sufocava.
Saiu do quarto e do alto do morro da Bumba avistou a cidade. Estava uma noite linda, prateada pelo luar. Queria despedir-se do Sumbe, seu recanto onde escondia sonhos, amores e desamores. Mas não viu as luzes, nem percebeu o silêncio frio do cemitério e nem o ribombar das ondas do mar.
Entrou para o quarto e arrumou a pasta para a viagem. A partida aconteceria dentro de dois dias. Duas calças, uma camisola, duas camisas, escova de dentes, pasta dentífrica, um caderno e lapiseira, toalha, um lençol e chinelos.
Esticou-se na cama de barriga para cima e olhos perdidos no tecto. Imaginou-se soldado. E adormeceu. Sonhou que estava entre os demais fardado e armado, como aqueles que na véspera da independência passavam na sua aldeia a caminho da frente de combate. O cheiro da farda molhada contagiava-o.
Acordou incrédulo. Continuava a não acreditar no rumo que a sua vida tomara inesperadamente. Deixaria, o pai, a mãe, os irmãos e os amigos. Com 8ª classe por concluir, abandonaria o seu primeiro emprego na Delegação Provincial de Finanças do Kwanza Sul. O sonho de formar-se em Economia e ajudar o pai agricultor e mais tarde motorista da ETP acabou-se.
A guerra subia de intensidade. O artigo 51 da Carta das Nações Unidas jamais conhecera tamanha divulgação. Todos eram chamados a empunhar uma arma para defender a pátria. "Cada cidadão é e deve sentir-se necessariamente um soldado". Cansados de fugir às rusgas e de enfrentar às restrições que ela provocava, muitos jovens decidiram partir.
Por isso, era chegado a sua vez. Raspou o cabelo e no dia indicado partiu para o Centro de Recolha das Salinas. Não foi sequer despedir-se dos pais na Gabela, pois não queria assistir as suas lágrimas. Era o quinto irmão que partia e as notícias sobre o paradeiro destes eram escassas. Era preciso ser homem, para partir.
Apesar da decisão de partir, por dentro era só dor: "Tenho saudade da minha mãe; quando lhe penso começo a chorar; ficarei assim, ficarei assim, ai… ai minha mãe"
Das Salinas partiram de camião STAR para Luanda. Na carroçaria iam jovens imberbes como ele: Gando, Trindade, Lemos, Nunda, Van-dúnem, Chibi, Baptista, Joaquim Fortuna e outros. Na partida, cantaram e acenaram para o Sumbe, com sua gente, suas palmeiras e morros e alegrias. Ai Gabela!!!
Eram 19 horas, quando entraram na Base Naval de Luanda. A Unidade estava limpa e iluminada. Desembarcaram e aguardaram. Tudo os amedrontava. Gente forte ontem, apresentava-se hoje tímido e inseguro. "Recruta está abaixo do cão morto", gritavam os militares antigos, que rondavam as suas presas como abutres. Era preciso não se afastar do grupo.
Depois de conferidos, em fila única caminharam para o refeitório. Carapau frito com arroz era o jantar. No dia seguinte, ocorre o embarque para o Centro de Instrução da Cazanga. Mário Jorge, Olindo, Quissanguela, Adriano, Pipino, Mateus, Baptista, Paixão… eram os novos chefes. Depois viriam outros com outras patentes, outros níveis, outras exigências!
Nove da manhã de 30 Outubro de 1981. O bote de borracha sulcava as águas do Atlântico. Aué Kalunga!

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