quarta-feira, 28 de maio de 2008

Redacções frias, jornalismo virtual

Prólogo: Cresci a caçar ratos no Amboim, hoje sobrevivo a agarrar o mouse. Sou o mesmo, pois!

Eram 21 horas do dia internacionalmente consagrado à liberdade de Imprensa. Dois jornalistas, um fumador e o outro não-fumador, reivindicavam cada o seu direito. “Aqui é proibido fumar!”... A tensão subia e ameaçava transbordar. Este artigo nasceu, naquele dia, entre a ameaça e a fumaça.
O fumador iniciava o seu texto, quiçá, abordando o silêncio dos profissionais e dos órgãos de imprensa em relação à data. De facto, é paradoxo propalar falta de liberdade de imprensa, quando no devido dia há apenas bocas soltas, nem debates, nem palestras em locais de trabalho e mercados, nem mesas redondas, etc.
O não-fumador procurava entre os poucos textos disponíveis, o ideal para fechar a edição do dia. Talvez não consiga “vender” uma chamada de capa ao chefe de redacção. “Hoje não há nada. A edição está fraca!” Diz-se como se nada de importante tivesse ocorrido no dia. O fecho reúne em si a tensão, a azáfama e a angústia. Chicotadas psicológicas, Ismael Kurts[1] que não ganha a nenhum adversário, mas, com certeza, recebe o seu salário inteirinho com correcção monetária e tudo. O contribuinte-adepto espera resignado por golos, que ficam nos dribles do labirinto do pensamento. Dirigentes que claudicam com os cortes que rejuvenescem quarentões? A alternativa é fuçar na Net.
Segui a briga a uma distância que permitia não perder detalhes da cena, nem me envolver nela. A briga acabou, tal como os cigarros terminam na borda do cinzeiro: sem fumo, apenas cinza, capaz no entanto de aquecer larvas de furacões adormecidos.
Foi assim, que, de repente, me vi percorrer outros atalhos. Tempos em que as redacções eram campo de batalha, onde fervilhavam ideias, discussões, críticas, humor, anedotas e gargalhadas sob o metralhar das máquinas de escrever. Tempo do jornalismo boémio e romântico, de escritores, advogados e outros sonhadores politicamente engajados. Autodidactas ávidos e devoradores de livros.
«Naquelas redacções de mesa única soava o estribilho monótono:” O jornalista nasce, não se faz”. Não havia computadores. O fumo e o calor faziam parte do cenário. Não havia escola de jornalismo. Como manual de cabeceira era recomendado o livro de um bom escritor (como Balzac) acoplado à imaginação e à criatividade no manejo da língua e à rapidez do dedilhar na azert.»
“Há uns cinquenta anos não estavam na moda escolas de jornalismo[2]. Aprendia-se nas redacções, nas oficinas, no botequim do outro lado da rua, nas noitadas de sexta-feira. O Jornal todo era uma fábrica que formava e informava sem equívocos e gerava opinião num ambiente de participação, no qual a moral era conservada no seu lugar. Não haviam sido instituídas as reuniões de pauta, mas às cinco da tarde, sem convocação oficial, todo o mundo fazia pausa para descansar das tensões do dia e confluía num lugar qualquer da redacção para tomar café. Era uma tertúlia aberta, em que se discutia a quente os temas de cada secção e se davam os toques finais na edição do dia seguinte. Os que não aprendiam naquelas cátedras ambulantes e apaixonadas de vinte e quatro horas diárias, ou os que se aborreciam de tanto falar da mesma coisa, era porque queriam ou acreditavam ser jornalistas, mas na verdade não o eram[3]”. “Prevalecia então o elemento humano sobre a técnica” (Piedrahita, pág. 89).
Hoje, os tempos são outros. O metralhar das máquinas de escrever é lembrança vaga. O pipocar do teclado dos computadores assenhorou-se do ambiente. As redacções tornaram-se menos barulhentas, não só pela ausência das “Olímpias”, mas também porque o perfil dos profissionais foi alterado. Longe vai a década de 60, caracterizada pelo ideal revolucionário. Che e Marx eram estandarte! Hoje, as discussões gravitam em torno do desporto, personagens de novelas, modelos de automóveis...! De política? “FECHE A PORTA! AR CONDICIONADO”!
Hoje, à entrada de todas redacções do mundo encontramos esse aviso. É o mais recente e vem juntar-se ao mais antigo: “PROIBIDA A ENTRADA DE PESSOAS ESTRANHAS!”. O mais cassule deles é o “PROIBIDO FUMAR!” Até parece que as redacções de hoje se transformaram em espaço de proibições. Só falta “SILÊNCIO, ESTAMOS A NAVEGAR”. Então, jornalismo não é o contacto com a vida palpitante da rua?!
Já não se fazem profissionais como antes. O consumismo superou o desejo de perseguir a verdade e mudar o mundo. Acabou a utopia. O repórter chega à redacção e esboça satisfação ao confirmar na agenda a ausência do seu nome. E não reclama se não for agendado durante toda uma semana. Fica feliz com isso. Encaminha-se para um computador, consulta o seu correio electrónico. Acessa o MSN e convoca a sua turma para o habitual bate-papo. Tem amigo(a)s e namorado(a)s virtuais e é com estes que ele se empenha em comunicar.
O contacto com o colega real é feito de forma indiferente. O aperto de mão é frio, assim como o olhar. Parece angustiado!
Quando chamado pela reportagem, o repórter recebe a missão. Não faz perguntas, não tem curiosidade sobre o assunto que vai reportar. Não procura por background. Pega na bolsa e embarca na viatura. Ao longo do trajecto, diverte-se a ouvir música e a ver o trânsito caótico da cidade. Nem repara nos buracos que vão surgindo na estrada, no lixo amontoado em cada esquina ou nas brigas comuns de criancinhas por um pedaço de pão. Resultado: chega ao local sem pensar sequer na pauta, que não raras vezes nem lhe foi proporcionada. Vêm depois as perguntas disparatadas: “Como é que a viúva se sente?” “Como o senhor se chama mesmo?” Ou então fica-se pelo evidente ou pelo despropositado: “Está feliz por ter recebido esse prémio?”
Não sabe tirar notas e morre de amor pelo gravador. As apurações ficam barrigudas[4]. Contenta-se com pouco. Não é persistente e não tem ambição. Erra o nome do entrevistado ou da empresa. De volta à redacção, nem sequer consegue dizer ao editor o assunto que cobriu. Enquanto escreve a reportagem, bate papo no MSN, lê, responde e encaminha emails... é incrível a capacidade de executar várias tarefas simultaneamente. Há quem ainda consiga jogar e atender o telemóvel!!!
Os manuais ensinam que o lead deve ser atraente e capaz de captar a curiosidade do leitor, do primeiro ao último momento. Nada de parágrafos intermináveis. Frases curtas. Ordem directa e voz activa. Como falar em proximidade, se anda a milhas? Agressividade e repercussões nem pensar, isso é coisa doutro tempo. Está relaxado. Começa a matéria de forma frouxa e termina desgraçadamente. Não há sugestão de título! A auto-censura logo o converte em especialista da press house. Galanteia a fonte e o leitor que se dane! – “Graças a Deus, o público não engole qualquer coisa!”
Depois entrega a matéria ao editor e sai. Não quer saber da edição. Dorme descansado com a convicção de ter assinado o seu melhor texto. No dia seguinte vem a surpresa. A matéria não foi publicada. Ou mudou-se o lead ou então o editor preferiu o texto da agência de notícias. Sente-se injustiçado, perseguido. O bolor nasce sobre as relações. “O editor não gosta de mim!”
E outro? É ainda estagiário, mas já anda de ego inflamado, como se fosse um veterano coleccionador de títulos e prémios. O editor queima pestanas a “desminar” a sua matéria. Das 100 sugeridas, aproveita apenas 30 linhas. E faz a “tradução” do texto para português. No dia seguinte, ele diz para o editor que no seu texto apenas foi alterado o título (...).
Chega o mês de Junho. O frio vai aumentar. Agora é que vai hibernar mesmo! O público espera. Como pode o leitor ter notícias sobre o bairro, a cidade e o país, se quem está mandatado para o informar, desconhece até o que se passa do outro lado da rua? Se está mais preocupado em ver fantasmas onde eles não existem? Ou se considera que, por ser jornalista, os demais seres humanos gravitam à sua volta? Prenda ao diploma, a intrepidez dos antigos profissionais, meu caro! Olhe a sua volta! Não há tréguas em jornalismo!
- Chamem o técnico, a Internet caiu!
[1] Treinador brasileiro que esteve ao serviço da selecção angolana de futebol, em 2003. Durante a vigência do seu contrato, a selecção raramente venceu até adversários reconhecidamente mais fracos.
[2] A primeira escola de jornalismo foi fundada em 1908, na Universidade de Missouri. Não obstante, a que alcançou maior fama foi a Garduate School of Journalism da Universidade de Colúmbia, cuja ideia se deve a Pulitzer. Parabéns ISPRA por tornar realidade o sonho de muitos jornalistas angolanos.


[3] MÁRQUES, Gabriel Garcia. Jornalismo: a melhor profissão do mundo.Disponível em http:/www.google.com.br.Acesso em 30 de Abr.2002
[4] Matéria mal apurada

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