terça-feira, 21 de outubro de 2008

No encalço do perfume das Acácias de Benguela

Dois de Agosto de 2004. Por esta altura do cacimbo, dorme-se sobressaltado, quando se tem voo marcado para as primeiras horas do dia. O despertador cumpriu a sua missão, quando eram 4 da manhã. O frio apertava. Cheguei ao aeroporto as 5 Horas.
O avião da SAL partiu as 7H30. Nove passageiros iam a bordo. Rolou na pista e levantou voo. Lá em baixo, no bairro Rocha Pinto já via-se a fila de carros que se dirigiam para o centro da cidade. Imagina-se a tensão dos motoristas mascando a embraiagem.
Quando livres do drama, tem-se uma sensação agradável de alívio, denunciado por um morno sorriso no rosto. Suspenso no ar, a memória acciona o motor de busca de lembranças adormecidas. Desde 1992 que não ia a Benguela. Naquela altura, viajei por terra e guardo com zelo a imagem do soldado que na localidade da Canjala apontou-me uma arma AKM no peito. Segundos duraram uma eternidade. Mas com a paz conquistada, estes são episódios arquivados para a história. O perdão é a palavra de ordem para todos, porém nunca esquecer o passado, pois quem esquece corre risco de repeti-lo.
A chegada ao aeroporto 17 de Setembro ocorreu as 9H45. Dois passageiros exibiram Passaportes com capa cor de vinho. Estremeci. Contrariado mostrei o bilhete de identidade e passei. Que alívio, apenas um falso alarme.
O sol subia no céu ainda coberto pelo cacimbo. No lado de fora, duas senhoras varriam o pavimento com vassouras de palmeira. Uma delas tinha a perna coberta por um lenço. Não vi sequer um papel sendo carregado pela brisa matinal.
Subi até ao restaurante que fica no primeiro piso. O esmero e a cordialidade das moças durante o atendimento aguçam a fome. Na pista, aterra um outro avião da Air Gemini. Depois mais três aeronaves ligeiras. A paisagem adjacente é coberta por capim seco. No horizonte, uma cadeia de montanhas formando uma cordilheira ainda translúcida no cacimbo matinal. Uma voz masculina chama pelos passageiros com destino a Luanda.
Como aves que adivinham um temporal, todos os aviões partem, apenas um fica em terra. Este jamais voltará a bater as asas. Algum infortúnio, quiçá, num poiso ou numa descolagem deixou-o com a parte da fuselagem danificada. Lembro-me da canção Iumbi-Iumbi do Planalto Central: “Kaquelé Katchibambaá ... tuendeéé... Iumbi-Iumbi levanta voo e vamos...”
Na estrada para Lobito fui saboreando a paisagem e os benguelenses. A nova ponte sobre rio Cuporolo está a ser erguida, vêem-se os suportes de betão.

SUOR SOBRE METAL ENCANDESCENTE

Meia hora depois chega-se ao destino. Os estaleiros da Sonamet ficam na entrada da Restinga. Criada em 1997, a Sonamet é uma sociedade de responsabilidade limitada de direito angolano, cujos accionistas são Stolt Offshore(55%), Sonangol(44%) e Wapo Internacional(5%). Desde a sua constituição, a empresa fábrica oleodutos e gasodutos enrolados, tubos agregados, torres de elevação e bóias de exportação.
Vinte cinco por cento dos 800 trabalhadores são expatriados entre índios, paquistaneses, franceses e portugueses. Houve alturas de muito trabalho que chegou a ter cerca de 1700 trabalhadores. Esta é uma das duas empresa do Lobito, a par do Porto local, que mais gente emprega.
Tem escola de formação para caldeireiros (técnicos que fazem e montam as estruturas de metal) e soldadores. Vinte cinco alunos frequentam o curso cuja duração é de 6 meses.
“Mas há alunos que com 4 meses estão preparados para executar qualquer tarefa”, segundo o português Avelino de Sousa.
Avelino de Sousa já esteve no projecto Sanha Condensados, no Bloco Zero, gaba-se de estar a “formar homens que serão capazes de enfrentar qualquer desafio”.
A disciplina, a higiene e seguranças fazem parte do quotidiano. A empresa tem uma fábrica de acetileno e o carbureto(vulgo cal) resultante da produção é aproveitado pelos trabalhadores para pintarem as paredes de suas casas.
Aqui o trabalho começa cedo, as 7 horas. Numa das áreas estão a fabricar o boatlanding (acostamento) para o Kizomba B que está a ser construído na Coreia do Sul. Têm ainda obras para o projecto Dália. Tudo aqui é pesado. Basta ver que o seu guindaste é capaz de levantar 450 mil kg. A barcaça DLB1 atracada ao largo levantava 600 toneladas quando nova, hoje de tanto peso apenas suporta 450 mil Kg. É a assim a vida. Vamos perdendo alguns dotes com o desgaste provocado pelo uso.
Obras são várias: pernas para jaqueta, Deck para o Kizomba. No sector de fabricação de bóias (uma espécie de tanque flutuante) já foi produzida a maior do mundo com 23 metros de diâmetro e 8 metros de altura, para o Kizomba A. A outra com igual dimensão será concluída em Março. A primeira a ser concluída foi para o projecto Girassol e tinha 18 metros de diâmetro e 8m de altura. A fabricação de uma bóia dura 12 meses, diz o engenheiro indiano Appu, há 6 anos na Sonamet.
As âncoras de sucussão são fixadas no fundo do mar para prender as bóias e os navio. São necessários 30 dias para ser construída. A chapa com que é feita tem cerca de 10 centímetros de espessura. Imaginem tornar cilíndrico este material. Há locais em que a soldadura é feita a 200 graus centígrados. Até as botas queimam, apesar da protecção do corpo. Lá apenas trabalham indianos que são especializados no assunto que recebem 5 litros de água antes da empreitada. A soldadura é especial. Antes era feita no exterior, mas com decisão o produto sai 10 vezes mais barato.
Ao lado do estaleiro da Sonamet, está a fábrica Tecnip, vocacionada para a fabricação de umbilicais. Os tubos que transportam o petróleo das profundezas do mar até a superfície. Lá iremos em outra oportunidade.
E a visita termina. Devolvo ao guia, as botas, o capacete de segurança e os óculos de protecção. Ele chama-se Avelino Epalanga, formado em mecânica, já esteve na África do Sul e na Correia do Sul. Forte e de altura média, trabalha na área de segurança há 3 anos e está feliz por ter recebido o primeiro filho. Como qualquer pai, tece planos para o seu menino.
Agradece a Sonamet pelo emprego e lamenta o facto de não existir outras empresas a funcionar para atenderem a procura. Fala da Fábrica de cimento. Para ele, a sua operacionalidade provocaria uma “grande revolução” na actividade do Porto e do Caminho de Ferro de Benguela. “Empresários sul africanos estavam interessados em reactivá-las, mas...” interrompe e mímica dos lábios encarregara-se de completar a comunicação. “O mesmo aconteceu à fábrica de papel”, conclui desanimado.

ALMOÇO, CAFÉ E DOSE DE BAGACEIRA

Perto da Sonamet fica a Pensão Alvorense. O director da Sonamet o francês Marc Guinard fala de novos projectos da empresa e de sua família. Anuncia a chegada da mulher e dos filhos.
Calmamente num português soletrado fala da perspectiva que visa aumentar a capacidade fabril e de carregamento. Para efeito a empresa está a investir de forma faseada cerca de 20 milhões de dólares, (sendo metade para este ano e a outra prevista para 2005), na expansão do seu estaleiro.Com esta acção, barcos de grande porte poderão atracar sem dificuldades.
Na mesa bife, pizza, massa, salada, pudim, refrigerante, Água Keve, café e uma dose de bagaceira local. Tudo por 1200 kwanzas. O café é importado. E o nosso, perguntei? O garçom não soube responder. Lembrei-me da promessa feita pelo ministro da Agricultura Lutukuta, por altura do lançamento dos leites Kamba da Latiangol. De acordo com o ministro, para o relançamento da produção era importante o incentivo ao consumo interno a fim de contornar o preço baixo do produto no mercado internacional. Lembre-se que uma tonelada custa cerca de 300 dólares. Se o quadro não se alterar, a fama granjeada por localidades como Gabela, serão apenas emblemas na memória do tempo.
Sobre a bagaceira, ocorreu-me perguntar pela antiga Fábrica Angolana de Vermutes e Licores. Soube estar paralisada há bastante tempo.
O açúcar também é importado, antes existia aqui perto uma açucareira. O processo da sua reactivação talvez ande esquecido em alguma gaveta. Nem sei quem venceu o leilão.
Na rua, à caminho do aeroporto, muitos carros com volante à direita. Para o André Tchivela, o motorista que me transportou em Benguela, a decisão do Governo em proibir a sua circulação vai criar problemas para os cidadãos. “Os carros vindos da Namíbia dão uma grande ajuda e têm bons motores”, estima. Mas o Governo justifica a decisão com o número de acidentes fatais.
Do lado de fora do aeroporto, estão dois engraxadores. Uma senhora mestiça, diz ir a Luanda para tratar dos dentes, apesar de ter medo de andar de avião. Outra benguelense, Iola, reside hoje em Luanda. Diz ter ido a Benguela para visitar a mãe que andava doente. Fixou residência em Luanda pelo facto do marido estar na capital e também porque encontrou oportunidade de emprego. Com dois filhos, a esperança é voltar a Benguela, quando for inaugurada a fábrica da Coca-cola. Teme ganhar menos, mas o problema habitacional desaconselha decisão contrária. A sala de embarque está vazia, apenas algumas filas de cadeiras de plástico.
Partida acontece as 15H10. Com a aproximação da capital a aeronave reduz a altitude. Por esta hora, o sol pinta telas impressionistas na paisagem semi-árida.
Chego a Luanda as 16H20. Termina a viagem. Chega a hora de enfrentar dribles dos taxistas, o engarramento e o stress. Ligo o rádio do carro e prolongo momentaneamente o êxtase vespertino como espumas que ficam na praia a cada calema. “Quero falar de uma coisa/ Adivinham onde ela anda/ Deve estar dentro do peito ou caminha pelo ar/ Pode estar aqui do lado/ Mas perto que pensamos/ ...” Agradeço a Milton Nascimento pela canção e a Deus pela viagem!

P.S. Reportagem publicada no Jornal de Angola em Agosto de 2004

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