terça-feira, 21 de outubro de 2008

Culturas e dicotomias

A música brasileira, sobretudo a MPB, a Sertaneja e o Samba eram as preferidas daquela casa nocturna da cidade de Juiz de Fora-Minas Gerais denominada Paiol. Nome sugestivo!... Homens e mulheres de várias idades buscavam no balançar dos corpos o prazer de estarem ainda vivas. Havia música ao vivo e muita animação. Nos intervalos, punham música de aparelho.
Na noite, dançava Roberta Miranda, Roberto Carlos, Vando, sertanejas, sambas, pagodes... De dia na Faculdade, essa música era brega. E ninguém queria ser brega. Nas conversas, na cantina, falávamos de Caetano Veloso, Djavan, Betânia, Carolina, Paralamas e de Netinho... Ai Raul Seixas e a sua metarmorfose ambulante. “Tente outras vez”. “Eu nasci há dez mil anos”. E Renato Russo, Cazuza e Sepultura!
Vivia assim entre várias realidades, várias culturas, várias dicotomias: O morro e a baixa, o centro e a periferia, Angola e Brasil, o negro e o branco, a faculdade e o analfabetismo, a riqueza e a pobreza, enfim, o clássico e o popular, o moderno e o tradicional, o sagrado e o profano. Como ébrio, subia e descia vários universos sem sequer distinguir as linhas ténues que limitavam as suas fronteiras.
Saía à madrugada do Paiol e caminhava despreocupado em direcção ao morro. Cruzava com outros amantes da noite. Juiz de Fora era minha de ponta-a- ponta. Um pobre gemia de frio na calçada. Aproximei-me para ajudá-lo. Em farrapos dormia ele, a esposa e um cachorro. É pobre e ainda tem cachorro! Coitado do cão! Qual dos dois irá sobreviver? O homem pediu um dinheirinho, segundo ele, para combater o frio. Corri até a casa, busquei um cobertor e dei-lho. Segundo um provérbio angolano, o macaco gosta de dar, o problema é o tamanho da mão.
Na noite seguinte, passei por lá. Ele gemia novamente, mas de bebedeira. A voz saía pastosa. Rapaz, um negão roubou-me o cobertor. Aldrabão! Trocou o cobertor por cachaça “Velho Barreiro” e a garrafa vazia espreitava entre os seus farrapos. Dar esmola pode ser uma forma de atrair mais gente pobre para às ruas.
Durante a noite, atravessava várias vezes o Paraibuna em busca de melhor espaço de dança. Ao ver a minha sombra sobre as águas calmas do Paraibuna, lembrava-me do rio da minha infância, o Mazungue da Gabela, que tal como o Paraibuna vivia transformado em esgoto. “Cada aldeia tem um rio e todos os rios se parecem”...escreveu o professor José Luiz Ribeiro.
Mas o Paraibuna tem apoios, até foi criado um grupo para a sua defesa. Procuram através de programas harmonizar a convivência entre a cidade e a natureza. Um convívio sempre marcado por vários sobressaltos. É do rio onde retiram areia para a construção civil, enquanto outros jogam lixo no seu leito. O rio fica triste e os ambientalistas também.
Nisto de tristezas, todos nós temos um rio de mágoas correndo por dentro. São tristezas individuais, colectivas, regionais, locais. Enfim, tristezas partilhadas.
Depois do silêncio eterno de Renato Russo, segui com lágrimas as imagens da morte da Banda “Mamonas Assassinas”. Regressava de um espectáculo em Brasília, quando o avião caiu antes de aterrar no aeroporto de Guarulhos, S. Paulo. O grupo fazia sucesso no Brasil e no mundo, quando a morte chegou.
Eu preciso te falar, /
Te encontrar de qualquer ­jeito .../
Já não dá mais prá viver, /
Um sentimento sem ­sentido... /
Cantaria Tim Maia naquela noite, mas assim o destino não o quis. A banda tocava os primeiros acordes, quando o cantor abandonou o palco. O seu vozeirão calou-se, mas o eco persegue os amantes da sua música.
Eu preciso descobrir /
A emoção de estar contigo, /
Ver o sol amanhecer./
E ver a vida acontecer /
Como um dia de Domingo/
Paulo, da dupla Paulo e Daniel não viu o sol amanhecer. Regressava a casa no seu BMW zero quilómetros, quando este saiu da pista, capotou e pegou fogo. Deixou uma filhinha e uma carreira promissora. Órfão, Daniel segue a carreira a solo. Sempre que o vejo lembro-me do Paulo e das imagens do acidente.
Na ponta final do curso, ocorreu a morte da Princesa Diana. Lágrimas. Ela havia acabado de visitar Angola, no âmbito da luta contra as minas anti-pessoais. O Mercedes Benz em que seguia embateu violentamente contra um pilar de betão, quando era perseguido por paparazzis. O incidente reacende a discussão em torno da ética do jornalismo.
Depois foi a morte do medianeiro do processo de paz Alioune Blond Beye. Foi também de acidente, mas de aviação. Ficámos a olhar a chuva a cair do telhado e um mau pressentimento a descer-nos a garganta. O reacender da guerra está para breve? ... E imitando um personagem da peça teatral “A Escada de Jacó” repetia: a vida nos reserva muitas mágoas...
Velhinha, tinha cabelos de algodão e mãos retorcidas pelo tempo. No seu quarto semi-iluminado, mergulhava num monólogo imperceptível. Falava, discutia e gesticulava. Cantava canções de embalar. Quantas crianças brotaram do seu regaço? Cruzava com ela no corredor, mas Dindinha não dava por mim. Será que ela sabia da minha existência?
A velha, carinhosamente chamada por Dindinha, era a mãe da dona Maria Márcia. Certa vez, ao chegar à casa, encontrei um ambiente nebuloso. Dindinha tinha morrido. Me imaginei sem mãe. Como seria viver sem mãe e sem pai? Afinal, acabamos todos como filhos de chocadeira! Os irmãos de hoje, talvez sejam amanhã apenas simples companheiros de viagem. Que tristeza!...

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