terça-feira, 30 de dezembro de 2008

SILÊNCIO MAGOADO DOS REPÓRTERES

Prólogo: O caudal do rio invadiu as margens, porque os homens inundaram o leito de lixo!

O insólito conquistou a audiência em todos os meios de comunicação. A notícia, um verdadeiro “fait divers*”, explodiu como fogo de artifício numa noite escura. “Avião Boeing 727 desaparece do aeroporto de Luanda”. O ineditismo, a surpresa, a curiosidade e as repercursões do facto, noticiado em primeira mão pela Rádio Luanda, tornaram fácil a escolha da manchete do dia.
Era a segunda vez, em menos de um mês, que uma aeronave monopolizava a atenção da opinião pública, ainda mal refeita da indigestão da razão da força americana no Iraque. E as armas químicas?
Depois da tomada de Bagadad, os noticiários refugiaram-se na sua “rotina”: pedofilia lusitana, atentados, conflitos, terramotos, assassinatos, corrupção, acidentes, sequestros, refugiados, desabrigados, fome, investimentos, inflação, falências e outras mesmices feitas suites para revalorizar localmente factos distantes.
No Zaire, uma aeronave, em pleno voo abriu a rampa e despejou os seus ocupantes. Mas desta vez, não foi acidente, apenas um avião desapareceu, misteriosamente, do aeroporto e nenhuma autoridade deu conta. Um plano criteriosamente preparado, e, diga-se, com um cordão grosso de cumplicidades, eleigeu o dia de domingo para a realização da operação. Talvez porque nesse dia, quem devia cuidar da segurança do aeroporto estava algures na praia ou numa profunda soneca depois de uma noitada luandense.
Era dia da África e véspera da conferência que iria debater, em Luanda, o incentivo ao turismo africano. “Turismo, a indústria da paz, vai contribuir para o combate à pobreza”, diz-se. E, curiosamente, da agenda constavam temas como a subvenção das passagens aéreas e a melhoria da segurança e a abertura das fronteiras dos países. Muita coincidência, não?! O avião foge de Luanda e nenhum país vizinho também viu passar!
Se para os editores foi fácil, segunda-feira, achar a manchete, mas não se dirá o mesmo da escolha da fotografia ou imagens para ilustrar o texto. Por incrível que pareça, é difícil conseguir fotografar ou filmar as aeronaves ou o movimento de passageiros, no “Aeroporto 4 de Fevereiro”, porque quem de direito alega sempre questões de segurança.
Os fotógrafos e câmaras queixam-se das dificuldades, dizem que é preciso um documento para ser autorizado. E quanto tempo de espera? Isso ninguém sabe.
O Jornalismo tem uma caractarística que o torna incompatível com burocracia, por isso a opção é buscar imagens de arquivo. Até mesmo para matérias que eram do interesse para a promoção de imagem da Enana, como a remoção de aeronaves avariadas que ocupavam espaço no aeroporto, a ilustração foi feita com aviões de arquivo. E era sempre assim. Toda vez que a matéria falasse de aviões nacionais, ia-se ao arquivo e sacava-se os da TAAG. Até que a companhia aérea nacional, preocupada também com o seu prestígio, perdeu a paciência e disse: basta!
O Gabinete de imprensa enviou uma nota de protesto. Depois disso a alternativa encontrada foi buscar aviões na Internet e pedir à arte para dar um jeito que evitasse mais complicações com as companhias a que pertencem. No arquivo digital, foi criada uma pastinha com capa amarela. Código: aviões alheios! Os aviões estão tão bem guardados, para evitar que alguém os roube.
Terça-Feira, 27 de Maio, os leitores, ouvintes e telespectadores cobram mais informações. A notícia ainda está fresca e pedia outros desenvolvimentos, feacture**. É preciso seguir o facto, as suas implicações e repercussões. Não basta noticiá-lo apenas. Elaborou-se a pauta: Fontes(A, B e C) Quais são as circunstâncias em que o Boeing desapareceu? Quem devia cuidar da segurança do aeroporto e das aeronaves? Quem pilotou o avião, se for estrangeiro em que circunstâncias entrou para o país e onde esteve hospedado? Quem abasteceu de combustível o Boeing e quando? A torre de controlo viu ou não? Se viu, a quem comunicou e qual foi a resposta? Hora da partida do avião e qual foi a direcção seguida! ... se haverá inquérito e quanto tempo durará? e etc, etc.
A repórter seleccionada, entre os mais aguerridos, partiu para a luta corpo-a-corpo, ansiosa em obter mais informações.
Ao cair do dia, regressou exausta e pelo semblante adivinhava-se: o saco vinha vazio de notícias, mais cheio de queixumes! As fontes “fecharam-se em copas”. Entre nós, dar a cara é coisa de telenovela!
O editor exige, o público pede, mas as fontes não falam. A vontade é não mais voltar à redacção para evitar os “desabafos” dos editores. Fica-se um dia inteiro em posição de espera, regressa-se de mãos vazias e, as vezes, a pé ou de candongueiro, porque o carro teve outras prioridades. Ou simplesmente se esqueceram. Volta com lábios secos, com fome e, frequentemente, quando ainda o dia do pagamento não vai distante, procura biscoitos e refrigerantes em supermercados da baixa luandense.
Ao ver a repórter chegar, o editor levanta-se e vai ao encontro. Tal como se recebem os guerreiros depois de cada batalha. – Como foi a caçada?
A repórter, aproveitando a brecha que o avião abriu na defesa do editor, ataca a queima roupa. Abre o livro de reclamações, queixa-se das fontes e dos editores, maldiz o silêncio daqueles e a arrogância destes, que mal digerem as justificações. Para ela, «alguns editores são egoístas e estão apenas obcecados com a hora do fecho, o tal fluxograma, e com a publicação da notícia! Muitos até se equeceram que já foram um dia repórteres e voltarão a sê-lo, quando pisarem, quiçá, em alguma cascas de banana . E aí, quando nas areias quentes do deserto, vão saber o que é fazer jornalismo nas nossas condições! A eternidade é apenas recomendada aos deuses! A consciência da finitude da vida humana devia inspirar à generosidade e justiça para com próximo.»
O rosário forma longa espiral de lágrimas. Mas a repórter aproveita a rara oportunidade, não esmorece e avança. Agora ataca pelo flanco. “Somos nós quem vai no campo da batalha, enfrentamos todos os horrores, mas na hora nem somos ouvidos. O nosso texto é, as vezes, cortado injustificadamente. São arrogantes, sim! Cortam sem pestanejar! Textos são engavetados por preguiça de alguns editores, que, não raras vezes, chegam tarde à redacção. E depois exigem que o repórter tenha que assitir à edição do texto! O repórter está no turno da manhã, terá que esperar até às 16 ou 19 horas? Repórter não sugere título! Pois, a gente não sugere, porque raramente a nossa sugestão é aceite. Alegam sempre que o mesmo tem mais batidas do que o recomendado pelo projecto gráfico e blá blá blá... Mas vai ver a opção, chega a ser um parágrafo inteiro. Alteram apenas por alterar. Se for para piorar, melhor deixar-se assim como está! Aliás, mudam o título sem entenderem sequer o lead, porque também foram fisgados pelo MSN. Nas redacções, não há lugar para os repórteres se sentarem e disputam os poucos computadores disponíveis! Dizem que nós não elaboramos sugestão de pauta. Quando o fizemos somos acusados de promiscuidade com a fonte! Estamos proibidos de escrever mais de uma vez sobre o mesmo assunto, senão surgem as insinuações. A especialização ainda vai demorar. Querem bons textos, mas não olham para o nosso drama. Nós construímos o vosso prestígio. Fazemos o melhor, mas nunca ouvimos uma única palavra de carinho, um elogio. Nunca! Apenas reclamações e incriminações! Como a corda sempre rebenta do lado mais fraco, sempre somos os culpados! Meu Deus, será que estamos a pagar alguma promessa? Tudo que sai mal é culpa do repórter. O que sair bem, as honras são do editor. Tem razão quem diz, o mal é órfão e o bem tem fila de padrastos”.
Ofegante, a repórter pára, bebe o que sobrava do refrigerante, recobra energias e desculpa-se. – Estava nervosa!
- Não adianta desculpar-se, tens toda razão! Eu partilho da mesma opinião. No espaço que lhe está reservado, deves escrever 30 linhas, a justificar a falta de mais informações sobre o paradeiro do avião! Porque o público exige que o informem. Ele não quer saber dos nossos problemas, deseja ter notícias frescas todas as manhãs! Nós somos servidores do público. Cada um tem que fazer a sua parte! Esse é o compromisso que assumimos ao sermos jornalistas e sobretudo aqui! Menina, diga, aonde está o avião? - (...) Já viram o meu azar!!!?
Estou a vir, ainda!



OBS: Texto publicado em 2003 no Jornal de Angola e incluído no Livro do Autor intitulado "Inquietações do Jornalismo" lançado pela Editora ZILA aos 3 de Maio de 2008.

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