sábado, 15 de novembro de 2008

A auréola de Roque Santeiro

Na pequena sala, amontoava-se toda a vizinhança e as luzes cintilavam na tela. As donas de casa rabujavam devido as pessoas que se assentavam sobre os espaldares das poltronas deixando estragos na modesta sala.
Os aparelhos de TV contavam-se pelo número de antenas no tecto das residências. Era luxo! No interior do país, a guerra subia de intensidade e o número de vítimas crescia a cada emboscada ou ataque. O país agitava-se na incongruência de um conflito que teimava em fazer de refém o destino de milhares de angolanos.
Na sequência, as cidades recebiam novos inquilinos rurais, que encontram na TV o que os contos lhe proporcionavam em suas aldeias de origem. Percorreram quilómetros a pé porque queriam fugir da morte. Deixaram para traz as plantações e as suas aldeias. Comprar quizaka, banana, abacate, rama-de-batata e mandioca era coisa que os entristecia. Os dias e as noites eram melancólicos, perturbados por lembranças e saudades. A saudade é um sentimento avassalador e antropófago. Devora, definha energias humanas. Estavam na cidade, mas o pensamento vivia algures no campo. A omnipresença é um exercício que quebra os limites da lucidez. Para não se estar a deriva, era preciso algo. Algo que justificasse a continuação da vida mesmo com os solavancos da estrada.
Então, à noite, Roque Santeiro animava os espectadores. Estes seguiam as cenas em silêncio. As ruas ficavam desérticas e os encontros amorosos retardados ou adiados por conta do episódio. No bairro Rocha Pinto, uma residência foi assaltada por meliantes e o proprietário, natural do município da Quibala, foi assassinado. A viúva e os filhos levados para algures. Os bandidos chegaram com um camião e carregaram tudo, mas a vizinhança não se apercebeu, porque era hora do Roque Santeiro.
A telenovela Roque Santeiro era um drama realista que repousava o seu enredo na problematização social. Fez de problemas sociais o tema central do debate. Durante o dia, não se falava em outra coisa.
A extravagante viúva Porcina, com os seus vestidos brilhantes, o arrogante Sinhôzinho Malta, com sua pulseira de ouro, cativavam a audiência. Todos torciam para que Roque Santeiro voltasse à Asa Branca e curasse os seus moradores dos males de que padeciam. Mas a sua presença iria levar à falência os negócios da cidade construída a custa do mito. Roque volta, mas não fica em Asa Branca, porém ficou na memória colectiva de espectadores. Cada um murmurava uma nova canção:
“Dizem que Roque Santeiro/Um homem debaixo de um sonho/Ficou defendendo o seu canto e morreu/Mas sei que é ainda vivente/ Na lama do rio corrente/Na terra onde ele nasceu/.
Mal a telenovela terminou, Luanda encheu-se de suas medalhas. Os mercados Roque Santeiro, Asa Branca, Pousada do Sossego… Rua da Lama… Zé das Medalhas.
O mercado Roque Santeiro é a maior bolsa de negócios de Angola. A aura do mito perdura e a profecia de Beato Salú, confunde-se com realidade. O pai de Roque Santeiro, bem na ponta do desenlace da trama antecipou-se à realidade.
“Ano de 1990, vai haver muito pasto e pouco rasto. E só um pastor e só um rebanho. No ano de 1991, vai haver muito chapéu e pouca cabeça. No ano de 1992, a água vai virar sangue e vai chover uma grande chuva de estrelas. Aí vai ser o fim do mundo”.
Em 31 de Maio de 1991, foi rubricado em Bicesse, Portugal, o Acordo de Paz entre o Governo angolano e o movimento rebelde, a Unita (União para a Independência Total de Angola) dirigida por Jonas Malheiro Savimbi.
Em Outubro de 1992, depois das primeiras eleições multipartidárias ganhas pelo partido governista, MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), a Unita recusou os resultados e reiniciou o conflito, o mais violento que a história angolana registou. Milhares de angolanos, que acreditavam na paz, tombaram nas ruas das cidades atingidos pelo fogo cruzado.
O barro sagrado das margens do rio ainda mitiga a dor das chagas. Roque Santeiro é gracejo na melancolia, estrela na noite, sinal vital, sobrevivência, esperança!

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