sábado, 6 de setembro de 2008

Memórias do cacimbo de 92

Eram 10 horas. Nas imediações da Igreja Sagrada Família, em Luanda, o trânsito automóvel era escasso, calmaria sonhada e desejada para horas de ponta. Caminhava tranquilo, quando foi interceptado por um militar. Não falou. Segurava firme uma metralhadora. E era com a ajuda desta que as instruções foram transmitidas. Eram gestos ríspidos e bastante eloquentes não deixando ruído para equívocos. O soldado todo vestido de uniforme preto, usava boina preta, luvas e óculos da mesma cor.
Atingido pela surpresa, o pedestre assustado descreveu um arco para não pisar no jardim da igreja, atravessou a rua e encaminhou-se agora para os lados do Hospital Militar. Depois de alguns passos, parou para apreciar o que aconteceria a um outro pedestre que seguia na direcção do soldado. Esperou num misto de receios e ansiedades. E de contentamento por não lhe ter acontecido o pior. Será que vai passar? … Suspirou. Não passou. Foi igualmente impedido de seguir no mesmo trajecto. Mas este não mudou de direcção. Recuou descendo pela Zona Verde e precipitadamente desapareceu.
Mas o que é que se passa? Nos seus 30 anos nunca tinha visto tal aparato militar! Já tinha visto vários tipos de uniformes: castanho, camaleão, tigre... Aliás, já usara muitos, mas este não se pareciam com os do exército coreano, cubano, russo, alemão democrático… enfim. Era algo novo.
A arma era estranha. Toda preta, tinha coronha dobrável e cano curto. O carregador era quase parecido com o da AKM. Mas são apenas aparências. Talvez, a coronha podia ser confundida com a da AK-47, mas não tinha nada a ver. Ancorou saudoso na sua alegria durante a recruta ao receber a sua primeira arma com coronha e guarda-mão reluzentes. A sua kalashi (diminuitivo de Kalashinikov) tinha bandoleira castanha e 3,6 kg de peso. O carregador era também castanho. Possui boa precisão e é fácil de montar e desmontar. É resistente capaz de suportar tudo desde a chuva, calor, areia, lama e até o próprio soldado. Do suspiro desabrochou um leve sorriso. Esse senhor Kalashinikov é o máximo! Dizem que desenhou esta arma, quando estava internado num hospital depois de ter sofrido ferimentos durante a batalha de Stalingrado. A AK é a minha grande paixão!
Ele sabia o que falava. Não encontrou semelhanças com aquela arma toda preta. Facto que o deixou inquieto. Mas o que é que se passa? O seguro morreu de velho, por isso correu para casa. Não queria ser surpreendido por qualquer infortúnio.
Se tivesse telefone telefonaria para alguém conhecido para obter informações. Mas telemóvel, em Junho de 1992, ainda era para o mercado ficção científica.
Contornou o Hospital Militar Principal e seguiu pela rua Comandante Jika. Perscrutava com subtileza no rosto de outros transeuntes indícios de alguma inquietação. Mas nada! Sob um clima ameno, caminhava colado ao cerco da Rádio Nacional de Angola. Ele procurava esbater o impacto vespertino causado pelo encontro com aquele militar, quando, ao aproximar-se da entrada da RNA foi novamente convida-do a afastar-se: – Senhor, afaste-se do arame!
Como gazela acordada por predadores na savana, sem olhar para onde vinha a ameaça, cor-rendo afastou-se. Só depois, com o pavor nos olhos, procurou saber de quem era aquela voz.
Isso é azar ou quê? Será que o mesmo soldado está a me perseguir? Não pode!... O coração carburava apressado. Isso não é normal. Está em todo lado! …Franziu o rosto!...
Na antiga Escola Comandante Jika, através do arame axadrezado visualizou o antigo gabinete do director “Nino”, a tribuna e a parada. Lembrou-se do desfile das tropas em parada nas sextas-feiras e dias de cerimónias. À Banda de Música e as canção: “Quero! Quero/ quero ser soldado/… com esta farda aprender a marcha/ com as armas lutaremos pela revolução”
– A Parada é um lugar sagrado. Tudo começa e acaba naquele lugar. O início da recruta. As formaturas. As marchas de Ordem Unida. Distribuição dos meios e equipamentos. Táctica, defesa, ataque, manobra, emboscada, flanco. Juramento de bandeira. A recepção de missões de combate. A partida, o regresso e o balanço. As alegrias e as tristezas. Parada é forja da amizade, da camaradagem e da lealdade. As canções e a cadência das botas no asfalto. Parou e imaginou o comandante do Batalhão de Instrução “Vulapata”, no seu jeito Garrincha de andar com suas pernas arqueadas, a marchar: Olhaaaar à Direita! Está alinhaaaar!...
Desperto por uma alfinetada de mau pressentimentos, retomou a marcha com vigor. Saudou a sentinela e dirigiu-se para o Bairro Prenda. – Kuemba tem que estar sempre atento! Camarão que dorme a calema leva. E sorriu!...
Ao atravessar a Rua Revolução de Outubro, ergueu a cabeça e leu no alto do edifício: LIBERDADE DE ÁFRICA…E acalmou-se sem um motivo aparente. Chegou a casa às 11 horas. Depois do almoço dormitava esquecido dos seus medos e receios, quando foi desperto pelo sinal horário da RNA: O Papa João Paulo II chegou hoje a Luanda.
Envergonhou-se pela teia de pensamentos que o atormentaram. Aqueles soldados pertenciam a uma nova polícia. A informação se espalhou no areal. A Polícia de Intervenção Rápida era a grande novidade. A arma não era AK, era Gallill de fabrico israelita. São parecidas, mas contrariamente a AK, que é de calibre 7,62 mm, esta é de 5,62 mm.
As botas também eram diferentes e usavam coletes à prova de bala… Usavam pistolas mas não eram de marca Makarov nem TT, Star ou walter. Essa tropa veio de onde? A pergunta teimosa perseguia todos que tivessem no seu caminho uma “Polícia de Intervenção Rápida”, que depois viraram “Polícia de Emergência” e “Ninjas”.
Todos a estimavam. Aquilo é que é polícia! Organizados, disciplinados e educados. Não falam muito, não se metem com a população, não brincam em serviço, no carro estão sempre bem alinhados e aprumados. Postura é postura e quando são chamados a agir em defesa da pátria angolana, da paz e da tranquilidade dos cidadãos fazem-no com muita prontidão e eficiência.
Os “Ninjas” lutam com destreza, neutralizam os seus inimigos impiedosamente e conseguem desaparecer sem deixar rasto. São invencíveis! É essa a imagem que se tem dos “Ninjas” e que é-nos transmitida através do cinema. Mas cinema é ficção!
Mas basta ouvir um pouco da folha de serviço e a história da Polícia de Intervenção Rápida de Angola para percebermos que a realidade não fica tão longe assim da ficção!

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