Há
mais de uma semana que ele desaparecera. Em sua casa, uma multidão de
familiares e amigos aguardava ansiosa por notícias sobre o seu paradeiro. A
esposa, sentada na esteira da viuvez, cansava-se em contar e recontar as
circunstâncias que envolveram o seu desaparecimento. Pai, já se foi em tudo que
é morgue nesta cidade, mas até agora nada! Já fomos no Ecos & Factos, da
TPA… O mano não viu ontem a foto dele?… Passou na Televisão, até as famílias da
província telefonaram a perguntar… Hummm, azar procura o dono!... Pai, azar não
custa que custa é casar! E com gesto pesaroso se erguiam, suspirando as suas
angústias e sofrimentos. Coragem!!!
Ao
se verem livres, afastados do quarto, lá fora reuniam seus parceiros para o
jogo de cartas, enquanto outros procuravam trocar impressões sobre a vida
quotidiana nos seus bairros e aldeias. Os das aldeias, falavam da chuva que
caia e da germinação das sementes no campo. O verde da paisagem do milheiral
que se estendia para além do horizonte. Contabilizavam os custos com a mão-de-obra,
o aluguer do tractor na empresa de mecanização agrícola, o transporte e os inseticidas
usados no combate aos insectos nocivos à plantação, antevendo as margens de
lucros. E todos eram unânimes: Os agricultores trabalhavam dia e noite para
aumentar a produção de milho, hortícolas, feijão, mandioca, batata e tantos
outros produtos do campo, mas no fim quem mais ganhava são os comerciantes. Por
isso, vêem-se mais gente a comercializar do que a produzir no campo. E o campo
começa a se tornar pouco atractivo. Por isso é que as pessoas estão a fugir. O
trabalho do campo é muito duro, é preciso ter muita força de vontade para
aguentar. O ano inteiro não há feriado. Tudo começa com a preparação do campo para
a sementeira: a capina, a recolha e queima do capim, a sementeira, a luta
contra as aves e os macacos colocando espantalhos em toda lavra ou marcando
presença diária, gritando e batendo o tambor. A sacha, a luta contra os javalis,
veados e elefantes que procuram folhas tenrinhas para saborear e matar a fome.
A
conjugação de exclamações e interjeições procuravam exprimir a dimensão do
estrago que cada interveniente provocaria à plantação:
Eh,
pai! Veado quando encontra milho ou campo de kizaca, aquilo é comer ou quê?!!! Ele
come para uma semana! Até se esquece que o milho tem dono. Quem se esquece no
que é alheio, não valoriza a segurança da sua própria vida.
O
velho de chapéu de cowboy e de olhar distante, com uma mão segurando o cajado e
outra sobre a cobertura, ergueu-se da cadeira de plástico, vulgo espera
condições, ao referir-se aos elefantes que com frequência devastavam a sua plantação
no Bié. Eu nunca vi tantos elefantes!… Mas estes bichos andavam aonde? Dizem
que tinham fugido para os países vizinhos por causa da guerra que ameaçava as
suas vidas. Depois que a paz foi alcançada, eles decidiram regressar para as
suas terras. O seu regresso tem gerado muitos conflitos, sobretudo com os
homens que, alguns deles, construíram aldeias e lavras nas suas áreas de pasto.
O elefante tem memória tipo gente, sempre regressa à sua aldeia de origem. Até
aqueles que haviam fugido estão a regressar e a exigir o que era deles. Nova
cooperação! Estamos mal!...
O
pai acha que as pessoas que vivem hoje aqui em Luanda um dia voltarão às suas
aldeias? Perguntou o Pastor Zagueu, da Igreja Justiça Divina!
Todos
entreolharam-se e alguém sorriu com desdém antes de comentar: Hehehehe
regressar ao campo, nem pensar! A vida no campo é muito dura, difícil. Você no
campo, depois de muito trabalho, vende um cacho de banana a 100 kwanzas. O
comerciante que vem da cidade bota o cacho na carrinha e chega no mercado do
Catintom, em Luanda, revende-o a 1000. Mesmo que o frete seja alto, ele acaba
lucrando mais do que o próprio agricultor. O homem do campo continua com muitas
dificuldades e a viver com a camisa e as calças rasgadas, enquanto outros
enriquecem à sua custa. É mais fácil vender jinguba no muro do quintal ou em
qualquer esquina das cidades do que trabalhar a terra.
E
todos corroboraram. Quem partiu para a grande cidade dificilmente regressa. Por
isso as aldeias estão a ficar vazias de braços e de força jovem para o seu
desenvolvimento. Em muitas delas hoje apenas encontras velhos e velhas,
esperando o dia da partida. Muitos deles já têm as suas trouxas arrumadas! Cada
ano que passa a extensão da plantação diminui. Os velhos estão cansados e o
corpo enfraquecido. Contrariamente ao que muitos pensavam, o fim da guerra não
incentivou o regresso, mas o êxodo rural. Basta ver que muitos dos bairros que
existem hoje, surgiram na era pós conflito.
Aliás,
muitas das construções anárquicas nasceram nessa época. Como é que se aceita
que um indivíduo construa uma casa naquela ribanceira do Morro da luz? Mas
aquilo é perigoso! Não há Polícia para evitar aquela buandja, aquela anarquia? Pai,
eles constroem à noite. Mas a polícia não dorme. Como dizia o outro: O inimigo
madruga, nós não dormimos. Isso é buandja!
Olha,
no tempo colonial nós nem caporroto podíamos fazer. Se te apanhassem destruíam
tudo e eras levado para a esquadra donde sairias com as mãos e o matacos
inflamados. Aquilo era purrada! Qual Direitos Humanos!
Hoje
nas ruas das cidades e nos becos dos bairros, você encontra gente a beber
álcool logo de manhã. E tranquilamente! Os outros estão a ir trabalhar ele já está
a beber!... Olha, eles bebem também mata
macaco! Mata Macaco? Sim, vocês não conhecem uma bebida que mata macaco? Não?!!!
O mais velho pode então nos explicar! Olha, a tal bebida vem numas garrafas
pequenas e no rótulo traz uns números. Cada garrafa traz o seu número…
A
gente compra as tais garrafinhas na cidade, quando chegar na lavra, colocamos
numa tijela. O macaco ao ver o recipiente, desce das árvores e começa a beber.
Todo o bando desce para beber. Invadem a bebida. Até eles esquecem o milho! Chega
uma altura que eles lutam por causa da bebida! Aquilo vira confusão! Depois de
veres que eles já se embutiram da bebida, então você aparece. Olha, quando te
verem a chegar, eles partem em correrias, subindo nas árvores… Pai, quando você
gritar, eles com medo começam a pular de ramo em ramo. Como estão bêbados, eles
não conseguem medir a distância entre um ramo e outro. Resultado, se atiram no
abismo, morrendo ao se espatifarem no chão.
E todos sorriram. Não
riem! Agora vocês estão a ver por que razão tem hoje muitos acidentes nas
nossas estradas?… Bebida, muita bebida! As pessoas quando bebem não calculam as
consequências dos seus actos. Quando pegam o volante pensam que não morrem
mais. E muitos casos de sida é consequência do álcool, porque quando você bebe,
perde o medo e a noção do risco. Depois diz que é feitiço!
Olha, o Governo devia reduzir o
comércio de álcool. Daqui para o Sumbe, Benguela, Huambo, Malanje, Uíge.. Ao longo da via você encontra bebida. Os
acidentes estão directamente ligados ao consumo de bebidas alcoólicas.
Naquele
momento, aproxima-se um homem vestido de calça social e uma garrafa de
aguardente na mão. Usava um chapéu de palha. Eram 20 horas. Olharam-no
assustados. Uaué, pai, kazumbi do Wandalika voltou! E todas a pessoas puseram-se
a correr. Na aflição, deixaram para trás as esteiras, os panos e os bancos.
Era
uma algazarra! Uaué, kazumbi do Wandalika voltou!...
E
calmamente, Wandalika subiu num banco, ergueu os braços e na sua voz rouca
começou a declamar Fernando Pessoa! Os seus gestos foram projectados pela Lua
Cheia sobre a parede de blocos.
“A
Europa jaz, posta nos cotovelos:
De
Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E
toldam-lhe românticos cabelos
Olhos
gregos, lembrando.
O
cotovelo esquerdo é recuado;
O
direito é em ângulo disposto.
Aquele
diz Itália onde é pousado;
Este
diz Inglaterra onde, afastado,
A
mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita,
com olhar sphyngico e fatal,
O
Ocidente, futuro do passado.
O
rosto com que fita é Portugal.”
E
naquela noite, Wandalika ficou só na casa vazia. Até os cachorros recusaram-se a
entrar para o quintal, optando por uivar errantes pelo bairro.