Pouco depois dos jovens da
aldeia terem partido para o Centro de Instrução, seguiu-se-lhes o eclodir do
conflito com rajadas, explosões e correrias. Isso afinal é a sério! Meu Deus, e
os nossos filhos? Os aldeãos viviam sobressaltados, situação agravada pela
falta de notícias.
Mesmo assim com o coração
atravessado pelo espinho da incerteza, terça-feira, 11 de Novembro de 1975,
festejaram a proclamação da independência dando pausa instantânea na dor que os
corroía. Cantaram e choram de alegria.
Na Rádio Nacional de
Angola, os noticiários lidos pelas vozes de Rui de Carvalho, Francisco Simon e
Manuel Berenguel, as questões da guerra agitavam a audiência. Adicionada às
preocupações com a guerra que ameaçava a vida dos filhos da aldeia e não só,
havia surgido um outro fenómeno, um neologismo no vernáculo dos humildes aldeãos,
mas que continha um mesmo grau de violência: o fraccionismo. Ele trouxe um cortejo
de intolerâncias, revanchismos, desaparecimentos e mortos.
As pessoas viviam, sorriam,
mas não como dantes, era um sorriso insípido, sem sal do humor. Eh, é assim
mais!!!... Era um sorriso ajustado ao sentimento de deixar a vida ao sabor do
vento que sopra a copa da mulembeira. Um sorriso com braços abertos em jeito de
resignação. Vamos fazer mais como…
Eram volta das 20 horas do
dia 22 Julho de 1977. Sexta-feira. Nos ouvidos, um zumbido de longe foi se
aproximando. Só minutos depois, avistou-se o feixe de luz de faróis que
cortaram a noite escura. Eram dois. Todos entreolharam-se desconfiados. A
aldeia acabava de jantar o seu calulu de rama de batata com funge de milho e
preparava-se em seguida para dormir. Quem será a esta hora?... Aqui nunca mais
passou carro desde que o CIR(Centro de Instrução Revolucionária) Comandante
Arguelles mudou-se para o Planalto Central. Da marca do carro não tinham
dúvida. Com essa situação que vivemos, quem será o homem que se atreve vir até
à aldeia naquela hora? Isso só pode ser azar!
Meus Deus! Um mensageiro da
desgraça está prestes a anunciar um novo infortúnio. Crescia a impaciência.
Crescia o medo. Tremiam os pés, as mãos. Tudo. Suku, a vida é mesmo assim?!
O carro foi descendo
devagar a estrada rudimentar até a ponte de paus colocados sobre riacho Lussumbo
e depois com a tracção ligada atingiu a outra margem. Os fortes faróis varreram
a escuridão afugentando as cabras, que dormitavam na cinza morna da fogueira do
terreiro. Correram berrando atordoadas. E decifrou-se para alguns o enigma:
Hoje minha vista tremia, sabia que era algo estranho que iria acontecer. Alguém
lembrou-se também do uivar de lobos na noite anterior. O outro teve durante o
dia o coração a palpitar. Um outro ainda foi perseguido por uma abelha teimosa
durante o dia inteiro. E o pássaro preto de mau agoiro que sobrevoou a campa da
velha Cauabela? E o gato que miava como se fosse uma criança recém-nascida?
Hum, agora está tudo explicado: Era o sinal do mau presságio.
Assim, com o coração
suspenso, esperaram minutos sofridos até o carro chegar no terreiro. E mal
parou, o motorista baixo, vestindo garbosamente farda verde e botas castanhas,
apagou as luzes e saltou gritando pelo nome do seu pai. Assustados, todos fugiram nas bananeiras,
inclusive o cachorro Pouca-Sorte. Surpreendido o visitante gritou: sou eu
Minguito, não fujam! Sou vosso filho, não sou Kazumbi. Ame Ulo! Estou aqui!
Claro, depois de notícias
desencontradas sobre a sua morte numa emboscada na Nhareia, os aldeãos, apesar
dos apelos reiterado, não acreditaram facilmente. Mantiveram-se escondidos até
que o visitante voltou a acender os faróis do veículo e a colocar-se bem
afrente deles para que fosse reconhecido: Pai, tira também o chapéu! Pediu uma
voz trémula. Era a da sua mãe. Ao que se seguiu uma explosão de alegria e de lágrimas.
Atatewe, Meus Deus! Omóla uangue, meu filho! atatewe ongueva!... Meu Deus, a
saudade!
Depois dos abraços
demorados, abriu a porta traseira do carro, para que fossem retiradas as malas.
Eram duas, uma pequena e outra grande. A primeira, foi fácil ser transportada
por um único homem, a segunda, foram requeridas duas pessoas. A mãe com o
candeeiro iluminando o caminho dirigiu-se à capoeira que ficava a 20 metros da
casa principal. Gritou por ajuda para agarrar o galo, mas as crianças estavam
curiosas em ver o que continham as malas. Na pressa, alcançou a primeira galinha
a aproximar-se da porta.
Mano veio. Quem sabe,
talvez sairia alguma roupa ou sapatos para estriar na escola. O pai recebeu um casaco
sobretudo e umas botas de cabedal que tinham o interior coberto por algodão.
Ficou felicíssimo. Não sabia o que esperava os seus pezinhos no tempo de calor.
A mãe ganhou uma blusa e uma saia com flores. Todos ficaram contentes e procuram
exibir-se como aprendizes de modelos na passarela improvisada na sala.
Depois do jantar, regado
por uma garrafa de Vodga, mergulharam na conversa. Falaram da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas, dos Kolkoses, Bolcheviques e Mencheviques,
da industrialização e da electrificação. Falava inspirado da abra “Um passo a frente
e dois a rectaguarda”, da “Doença infantil do esquerdismo no Comunismo. Depois
pulou para os shoppings. A Coca-cola e a roupa jeans só eram comercializadas em
lojas diplomáticas para estrangeiros. Por quê? São produtos do imperialismo! Falou
do metro de Moscovo. Todos exclamaram! Comboio que passa debaixo da terra? Não
é possível. Coitados, na memória dos aldeãos, só tinham o comboio do Caminho de
Ferro do Amboim que funcionava graças a força da lenha. E o visitante
explicava, explicava. Falou da assistência médica e medicamentosa, das escolas
e da organização das cidades e das Forças Armadas. Kremilin! E imitava a marcha
do soldado soviético. Elogiou o passo firme, o queijo levantado e o
alinhamento. Para exemplificar, formou uma secção onde se destacava o pai e os
irmãos. E deu vozes de Comando: Firme! Direita Volver. Esquerda Volver! Caiu!
Apenas ele próprio cumpriu a ordem. Todos ficaram a sorrir. Ainda podes se
aleijar! Olha, o comunismo é um exemplo a seguir por todos os povos livre do
imperialismo. O internacionalismo proletários. O Manifesto de Marx e Engls. A luta
contra a Mais-Valia. O partido do novo tipo de LÉNINE.
Mas filho, o vinho também
é no cartão da loja do povo como aqui? Sim. Ah, então isso não vai dar certo! Pai,
essa é a visão dos reaccionários. Dos saudosistas! São todos agentes do
imperialismo! É preciso que os operários conquistem o poder e implantem a
ditadura do proletariado. Por que? Porque os operários foram os mais
explorados, e na sequência são eles mais disciplinados e organizados. Filho, eu
vi o quanto custou desenvolver Angola. Gerir um país não é fácil. Por exemplo,
ontem o antigo tractorista da Fazenda Boa Esperança esteve aqui a pedir a sua
lavra de volta. Mas eu comprei-lhe a lavra em 1963, quando à noite foi apanhado
a roubar café na fazenda do branco. É com este que estamos a contar desenvolver
a economia? Isso ainda vai da confusão. Meu filho, ouve bem o que estou a te
dizer: os nguetas um dia vão voltar e vão querer receber as suas casas e
fazendas que hoje ocupamos. Pai, tem de entender que entramos numa nova fase, o
da revolução. Agora quem vai mandar são aqueles que antes eram os explorados.
Haverá igualdade entre os homens.
Em seguida, ergueu o olhar
para perguntar à plateia sedenta. Vocês conhecem Lénine? Não?!!!... Lénine é o
grande revolucionário que dirigiu o partido dos bolcheviques à conquista do
poder aos tzares.
Diante da ignorância da
plateia, o orador então lembrou-se, pedindo a um dos irmãos que fosse ao quarto
buscar o busto de Lénine que trazia na mala. Na pressa de voltar para a sala,
não soube procurar com cuidado. Foi aí que o busto de mármore de V.I. Lénine
com cerca de 20 cm de altura e 10 de raio, saiu da mala raspando-lhe a tíbia e
caindo em cheio sobre o dedo maior do pé. Este deixou cair o candeeiro e correu
aos gritos até á sala. O dedo foi
atingido por um dos vértices do busto abrindo uma ferida de onde brotava muito
sangue… O candeeiro tombado, por um tris não ateou fogo à mala.
Os adultos aflitos e com
as mãos à cabeça, levantaram-se da mesa. Mas o que é que foi? Mano, foi uma
pedra que saiu da mala e me caiu no pé! O Lénine? Sim! Foi isso mesmo que me aleijou
no dedo. Olha só. E mostrava o dedo do pé ensanguentado.
Foi preciso, quatro pontos
para estancar a hemorragia. O militar tinha experiência em primeiros socorros.
Foi assim que o então adolescente, nunca mais se esqueceu daquela noite e da
imagem do líder dos bolcheviques Vladimir Ilitch Ulianov Lénine. Sempre que
cruzava com um velho careca lembrava-se de Lénine. Depois, em Dezembro de 1977,
quando ouviu o discurso do Dr Agostinho Neto: “sob o olhar silencioso de
Lénine...” Já sabia de quem se tratava.
O busto talvez ainda
continue lá no Amboim jogado num dos cantos da casa de adobe. Com seu olhar
silencioso quiçá, resista ao tempo agreste e ao salalé.
Que adolescente imaginaria
que aquele velho careca o acompanharia em quase toda a vida. E hoje, passados
mais de 30 anos, o então adolescente ao questionar o mano ainda militar ele
apenas sorri e diz: foi uma Mais-Valia!