- A algazarra conquistava a natureza. O sol sumia lá longe deixando no rasto a ternura do adeus. Como no cais, as aves, depois de mais um dia de luta pela vida, aconchegavam-se tranquilas nos ninhos. E celebravam alegres, entoando a canção de enleio à vida. O quimbanda ébrio de tanta aguardente de banana olhava perdido para o horizonte onde a brisa do ocaso brincava serena sobre o verde da paisagem.
O homem recém-chegado, e que tinha a perna, dizia-se, inflamada
por uma tala maligna, com ais de dores contorcia-se, tendo estampado no rosto o
sofrimento em forma de uma máscara rústica.
A esposa desesperava-se na ânsia de encontrar a cura para a
enfermidade que deixara inesperadamente o seu homem sem a capacidade para se movimentar
por suas próprias pernas.
A assistência olhava em silêncio, esquecendo-se
momentaneamente da sua própria dor. Foi naquele instante que o telefone de um
dos ocupantes do Corolla despertou tendo como ton a música: “SÓ ME RESTA É
CHORAR, MAMÃE UÉ!…UÓUÓUÓ…” O homem atendou afastando-se do enxame onde
estivera.
- Alô mano, estás onde? Localização…! – Na voz do interlocutor,
percebia-se nitidamente uma certa urgência.
- Estou a tratar daquele assunto da mana! Que se passa?
- Durante o dia, andei a tentar várias vezes para
contactar-lhe, mas o teu telefone dava sempre fora de área de cobertura. Estavas
com telefone desligado?
- Não, meu telefone esteve sempre ligado, deve ser a maca da
rede. Sabe, quando cai chuva ela traz sempre problemas na rede de
telecomunicações, na rede rodoviária, na rede ferroviária, na rede eléctrica,
na rede de abastecimento de água! Se chove, é porque choveu. Se não chove…!
- Olha, tens de regressar com urgência! Hoje de manhã
encontramos um aviso pregado na porta do edifício a exigir o pagamento dos
meses atrasados.
-A tua cunhada não foi lá?
- Olha, por outro lado, teu filho está com dengue.
- O Kandengue?
- Sim! O Kandengue está com dengue!
-Dengue é quê?
- É uma nova doença, irmã do paludismo! Paludismo vai contar
coma ajuda da irmã dengue…A cunhada está desesperada. Não sabe se vai ao
hospital ou ao Banco. A imobiliária ameaça inclusive despejar todos aqueles que
não o façam nos prazos solicitados, isto é dentro de quatro dias.
- Este aviso é de quando?
- Tem data de 13 de Março, mas foi afixado no dia 23. Tens de
pagar os cinco meses de atraso, senão…! A mana, foi lá na imobiliária na
segunda-feira. No local encontrou dezenas de moradores abraços com a mesma
situação. Faltaram ao serviço para resolver o tal problema, mas até às 10 horas
não apareceu ninguém. O Hiace da empresa passava e repassava sem dizer nada.
Quando foram 11 horas, apareceram alguns funcionários… Você não vai acreditar
no que disseram!
- Disseram o quê?
- Apenas vieram para os informar que o local indicado no aviso
já não era aquele. E apontaram um outro lugar. E lá foram todos a correr para o
outro local. Postos lá, funcionária não tinha nem papel para escrever nem informações
para dar aos moradores, porque o chefe não estava. Aquilo é mesmo brincar com
os cidadãos.
- No acto da assinatura dos contratos, cada arrendatário fez a
entrega do número da conta com o respectivo IBAN para que fossem descontados
mensalmente. A maioria não foi descontada. E tem mais! Outros pagaram ou devem
pagar renda de apartamentos que não são o que de facto ocupam. Por exemplo, há quem
more no nº 22 mas o recibo faz referência ao 24. Isso assim ainda vai dar
diculo.
- Mas isso não é possível!... O contrato foi assinado numa
altura que o meu apartamento custava 125 mil dólares. Como é renda resolúvel
devia paga 603 dólares por mês. Mês depois, o Executivo baixa os preço para 70
mil dólares. Não seria justo reverem o valor da renda?... Se não vamos pagar um
valor superior ao preço do apartamento… Eu até já queria pagar a totalidade do
valor do apartamento, mas a imobiliária exigiu requerimento para o efeito Fundo
de Fomento Habitacional. Fiz. Depois me disseram que era na Delta. Possa, na
casa de renda o sono não acaba mesmo!...
- Então, é melhor vir. Porque se já começaram assim, com estas
ameaças, com estas arrogâncias, tudo pode acontecer. Com tanta gente aflita em
busca de casa para morar, as vezes é pretexto para vos retirar do apartamento. E
preparem-se, quando a factura da água e da energia eléctrica chegar, muita
gente vai arrumar a trouxas para o Zango 5… As gémeas de Luanda, a Edel e a
Epal o que fazem!
O homem agitou-se. O telefone mudava de mão e de orelha várias
vezes. Ele estava inconformado. Cinquenta anos esperou ansioso por aquela
oportunidade: a de ter acesso a uma casa condigna num espaço com as melhores
condições de habitabilidade jamais vista desde que seu país se tornara
independente da potência colonizadora. Por isso fizera grande festa, quando
recebeu as chaves do apartamento. A espera foi angustiante. As noites mal
dormidas.
Acompanhado da esposa e do funcionário da imobiliária, depois
de abrirem a porta, jogou-se e rolou na poeira que cobria o chão da sala.
Naqueles instantes, percorrera as léguas da vida. A sua vida humilde na aldeia
em que nascera e crescera. Os pés descalços no caminho da escola e a humilhação
da gente rica ao troçarem a sua bata furada pelo uso reiterado ou o seu lanche
que era quase sempre banana ou mandioca cozida com dendém ou ainda milho
torrado trazido numa garrafa com água. Mastigava com dor e raiva. Algumas vezes
chorou inconsolável a sua sorte. Inclusive já fizera queixa à professora, mas
esta não se manifestara solidária. - Rapaz, tu és pobre, o que esperas? – disse,
enquanto alisava descontraída a sua maquiagem.
Naquele dia, ele voltou para casa e ao longo de todo o
percurso, continuou a repetir com lágrimas as palavras da professora: - Rapaz,
tu és pobre, o que esperas?
Informou ao seu pai do sucedido. O pai abraçou-lhe com carinho
e depois tirou 5 escudos da algibeira para que ele comprasse pão com ginguba no
recreio. E quando ia receber a moeda percebeu que seu pai também chorava. Nunca
mais se esqueceu daqueles dois momentos.
Cresceu repetindo as palavras da professora loira e a lembrar
as lágrimas do pai sobre o rosto engelhado. Quando os Capitães de Abril saíram à
rua de Lisboa, ele ficou feliz, pois ninguém mais depois de tudo lhe iria
voltar a humilhar.
Lembrou-se da Lua-cheia, da Má-língua, do seu rio da infância
onde se banhava antes de ir à escola. Memória dos seus amigos e companheiros de
todas a horas. César, Prazeres, Pascoal, Fama…
Agora estava feliz. Não se importou com a poeira nem com os
chuveiros que haviam sido roubados no apartamento.
Passados cinco meses eis que despertou do sonho. Ofegante, não
acreditava no que ouvia. Recebera o apartamento em Setembro e mudou-se. Foi o
primeiro morador a desembarcar com os seus parcos haveres. Seus móveis cansados
de tantos anos de espera por substituição, por isso fez a mudança à noite, por
volta das 20 horas, para evitar a bisbilhotice de gente disponível para comentar
a vida alheia.
Pagara apenas o primeiro mês, depois a imobiliária, em
comunicado afixado na soleira da porta do edifício, pediu aos moradores que não
fizessem qualquer tipo de pagamento, aguardando por novas ordens. Aguardaram
por novas informações desde Outubro, Novembro, Dezembro. Janeiro, Fevereiro.
Eis que agora em Março chega o novo aviso em forma de ultimato. Um pedregulho
no vidro da esperança!
Desligou o telefone e chamou rapidamente pelos seus
companheiros. Wandalika também aproximou-se na ânsia de partir.
-Temos de bazar, me querem tirar o apartamento do Kilamba!...
Vamos, antes que não seja tarde!... Tu estás doente, vais ficar! – disse o condutor
dirigindo-se com rispidez ao Wandalika.
Os demais embarcaram e partiram apressados acelerando o
Corolla. Wandalika ficou estático entre a fumaça expelida pelo velho motor. E
teve dó.
- Coitados! Se acreditam tanto no quimbanda, então, antes de
partirem, deviam pelo menos fazer um tratamento para ver se conseguiam acalmar
a imobiliária… Isso ainda vai-lhes render aborrecimentos. Mil desassossegos!
Suspirou e procurou um adobe de consolo para sentar-se
enquanto aguardava resignado pela sua sorte! E pela primeira vez, nos últimos
anos, voltou a sentir aquela saudade que diante do vazio, destroça qualquer
coração. Saudade da sua vida simples e despreocupada da aldeia. Da sua modesta casa
construída na colina e afagada pela sombra de frondosas mangueiras. Saudade do
milho torrado e do funge quipicula feito com óleo de palma e sal. E do sono
sossegado no colchão de palha ou na esteira. O acordar tranquilo sob a sinfonia
do canto de galos e pássaros! As cidades possuem tudo, mas não têm galos nem
galhos para poleiros dos mais variados pássaros da sua infância.
- Ai Chorinho doce, de Adélia:
Eu já tive e perdi/Uma casa,/Um jardim, uma soleira, uma porta/Um
caixão de janela com um perfil./Eu sabia uma modinha e não sei mais./Quando a
vida dá folga, pego a querer/A soleira/O portal/O jardim mais a casa/O caixão
de janela e aquele rosto de banda. Tudo impossível./Tudo de outro dono,/Tudo de
tempo e vento. Então me dá choro, horas e horas,/O coração amolecido como figo
em calda.