quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O MEU TERCEIRO VOTO

A espera foi alongada pela ansiedade no desfecho de um processo incumbido de fazer desabrochar a flor da paz. No compasso para Bicesse, a trilha sonora tinha a voz de Jacinto Tchipa. A cartinha da saudade era a expressão unânime de um sentimento que perpassava o coração de todos os angolanos patriotas, que haviam dedicado parte preciosa dos seus anos de juventude para sustentar um sonho de independência e de paz.
Depois de Gbadolite, as notícias sobre os novo acordo de paz eram incipientes para remover as incertezas e percalços do caminho. Assim, sexta-feira, 31 de Maio de 1991, o abraço entre o Presidente José Eduardo dos Santos e o líder da UNITA Jonas Savimbi representou o culminar de um longo e sinuoso processo de negociações entre irmãos desavindos.
Finalmente, a paz era um facto. Todos os angolanos estavam novamente juntos e de mãos dadas para a edificação de uma pátria reconciliada e próspera. Independentemente da sua origem étnico tribal, filiação política ou confissão religiosa, todos eram tidos como elementos importantes para a consolidação da paz e reconstrução nacional. Diante da ingente tarefa da criação de condições de vida para as populações, todos eram indispensáveis, como o carreto para o funcionamento de uma máquina.
Na hora do aperto de mão, todo o país entrou em delírio. Com certeza, depois do 11 de novembro de 1975, aquela foi a noite mais bonita, em que não se foi incapaz de conter as lágrimas da alegria, deixando-as, assim, a humedecer a face enrugada pela esperança. Para trás, ficavam os anos agrestes de um conflito que não escolheu as suas vítimas.
Na sexta feira, 30 de Setembro de 1992, parti para exercer o direito de cidadania. Eram 10 horas. Tudo estava calmo até remeteu-se ao silêncio o marulhar das ondas, reclamando das línguas de pedra. A Rádio Luanda se desdobrava em orientar os eleitores a identificar as Assembleias de Voto com menos filas.
Da Ilha de Luanda até a Avenida Marginal, subi de autocarro 28 da Empresa de Transportes Públicos (ETP). Na multidão espremida, espreitava entre axilas, pescoços e braços a paisagem em movimento, onde o Hotel Panorama exibia a sua velha exuberância apesar do passar dos anos agravadas pelo sal do mar.
Os machibombos articulados de marca Volvo, papavam as bichas que se formavam nas paragens e a seguir partiam velozes entre gritos e gemidos de passageiros amedrontados pelas curvas e ultrapassagens. O ai na rotunda da Fortaleza S. Miguel!
No Bailezão, o autocarro 28 cuja rota terminava no Porto de Luanda, parava e despejava alguns dos seus passageiros para que estes pudessem apanhar outros machimbombos como o 32 e 33. Os dois tinham como destino o Bairro Cazenga. O primeiro, tinha o seu término acerca de mil metros do entroncamento da Cuca e o segundo ia até ao Cemitério Catorze, passando pelo centro recreativo Cubata, Mãe-Preta e a fábrica de vulcanização de Pneus, Mabor.
Desembarquei no largo Saydi Mingas, perto do BNA, e parti a pé até ao largo Luniamege, na Rua 1º Congresso do MPLA, pertinho do cine Nacional. Aí estava o término do autocarro 27, que seguia até ao bairro Benfica. Haviam duas opções: o 27-A seguia pela Revolução de Outubro, passando pela FAPA- DAA, Bairro Rocha Pinto e até ao destino. E o 27 que tomava a rota do Supermercado Zamba 2, seguindo para Morro da Luz, Corimba, Futungo de Belas...
Longe das actuais arrelias, a manhã era calma. Ainda me lembro. Era de véspera a chegada dos autómóveis de marca Patrol, Toledo e Passat. Ofuscando os seus antecessores agora rematriculados com a chapa AMF, estes não tardaram em tomar os antigos trilhos dos Urales, LADA’s e WAZ’s. E quanto furor faziam entre os admiradores! Casamento ou relacionamentos frágeis encontraram no Noivo mecânico o melhor pretexto para a ruptura.  
Segui viagem e desembarquei no Zamba 2. Caminhei aparantemente descontraído para a Assembleia de voto, implantada no interior da Escola situada no Jardim do Bairro Azul. A fila já não era longa. Esperei ansioso. Ao chegar a minha vez, o coração acelerou. Tive medo. Meus Deus! E se eu errar... Era a primeira vez que eu iria votar e o meu voto tinha um sabor muito especial, pois punha fim a vários anos de uma guerra atroz. Era como se sobre mim pairasse a pesada missão de resolver o que os generais desconseguiram no teatro de operações.
Naqueles derradeiros metros que me separavam da mesa, um turbilham de lembranças e conjecturas baralhavam a realidade feito um caleidoscópio. Rezei. Quero viver em paz, quero trabalhar em harmonia, ter uma casa condigna e cuidar da família. Quero voltar a estudar e viver com normalidade uma vida saudável. Ah, reencontrar os meus pais...
E momentaneamente refugiei-me nas noites sublimes e coroadas por personagens de fábulas como a lebre e cágado. Era uma vez!... Quem chegará primeiro à meta. Com desgosto, percebo que hoje as noites ganharam um outro ingrediente rompendo as viseiras rurais e impondo um consumo obrigatório e cíclico de telenovelas importadas.
Aproximo-me e recebo o Boletim de Voto, suspiro e dirijo-me com vigor para a cabine. Coloco o Xis no quadradinho, dobro com cuidado o papel e deposito-o na urna.
Ao sair, senti-me incrivelmente aliviado e feliz, como se tivesse com o acto retirado sobre os ombros um enorme fardo que transportara durante vários e longos anos.
Dias depois, a frustração. O recomeço da guerra  com o seu cortejo de mortes. Tinha consciência das dificuldades com que se debatia o processo de paz, mas ainda assim acreditava na capacidade dos homens em ultrapassá-las.
O sonho de voltar às urnas hibernou durante 16 anos. Foram anos de reiteradas esperas e de um acumular de mágoas e decepções.
Quatro anos após a assinatura do Memorando do Luena em 2002, eis que se nos oferece mais uma oportunidade de exercer o direito de cidadania. Era preciso concolidar a paz, reconstruir as infraestruturas rodoviárias e ferroviárias. Construir escolas, hospitais, estabilizar e desenvolver de forma sustentável a economia. Baixar a inflação para dois dígitos, regularizar o fornecimento da água e da energia eléctrica. Aprofundar a reconciliação e a unidade nacionais. Em fim, resgatar o amor e a concórdia, curando e cicatrizando as feridas abertas no corpo e na alma . Por isso, no dia marcado, cheguei ao local da votaçao e Xis. Sabia o que queria. Era impossível errar o quadradinho.
31 de Agosto de 2012. Depois de uma campanha eleitoral em que cada um dos concorrentes teve a oportunidade de expor os seus argumentos com a perspectiva de angariar um maior número voto, é chegada a hora.
Todavia, no processo eleitoral é importante e crucial para o bem-estar comum que todos coloquem a pátria, Angola, acima dos seus interesses pessoais.
Faltam pouco menos de um dia. Passados 20 anos após as primeiras eleições multipartidárias realizadas em 1992, quero reiterar o meu voto de fé numa Angola reconciliada e próspera. Sonho com uma sociedade sem qualquer tipo de exclusão.
Não diga que a canção
Está perdida
Tenha fé em Deus
Tenha fé na vida
Tente outra vez!...

Raul Seixas deixa aqui o seu voto de fé e esperança. A vontade transformará o sonho em realidade e o futuro confirmará as nossas esperanças. Acredite!

O ARROZ COM SALSICHAS

Haverá um bairro com o nome mais bonito do que o de Lua cheia? Tive muitos pelo percurso: Má-Língua, Prenda, Nossa Senhora, Bumba, Benfica, Zango… mas Lua Cheia é o mais belo.
Lua Cheia é um bairro antigo do Amboim. Com as suas casas de adobes cobertas de chapa de zingo, vivia-se perfumado por flores de café e de maracujá. Durante o dia, as sirenes das fábricas eram o relógio que condicionava a vida dos moradores. Era um espaço mágico, onde Modesto era nome do comerciante mais popular do bairro, homem simples que vendia bolachas, pão quentinho e sandes de peixe frito.
O Luar, banhando a terra com o seu romantismo, depois se escondia por detrás da casa do sô Modesto. Só mais tarde o vocabulário ensinou aos alunos nativos o verdadeiro significado da palavra. Modesto é aquele que pensa a seu respeito ou fala de si mesmo sem orgulho; despretensioso; humilde, moderado, desambicioso, simples, pobre.
Alheios, corríamos atrás das sombras e olhávamos para a lua-cheia, onde buscávamos a imagem da Nossa Senhora de Fátima com o menino Jesus ao regaço. À volta da fogueira, as noites eram sublimes e coroadas pelos personagens das fábulas como a lebre e o cágado.
O luar e as estrelas pendiam sobre a paisagem sombreando com o seu lápis as casas, as árvores e as montanhas. Os narradores, mesmo desconhecendo a técnica de interpretação de actores da Commedia dell’arte como Arlequim e Patalone, com empatia faziam a plateia sonhar.
Feitos prisioneiros da alegoria de Platão, dando asas à imaginação, fugia-se da caverna para livres transpor-se a cordilheira de barreiras que cercavam a vida. A plateia cantava, dançava e respondia animada e em uníssono às questões do narrador. Todos eram partícipes e juntos teciam os fios da estória, pois não havia lugar para figurantes.
O candeeiro resignava-se com o espaço domiciliário e nunca ousava andar ao luar, onde os enamorados trocavam as confidências que guardavam seus corações apaixonados. O tempo passou, o cenário mudou.
Hoje as noites ganharam um outro ingrediente, rompendo as viseiras rurais e impondo um consumo continuado de telenovelas. E o ritual obrigatório de sentar-se numa poltrona e seguir o enredo enchendo a cabeça de estórias alheias. As disputas pelo comando da Televisão comprometeram a unanimidade. Em nome da concórdia e da coesão, o refúgio é o consenso do quarto, onde todas as noites, alertado pelo indicativo, o meu garçon sorridente emerge da penumbra e senta-se ao meu lado.
Ele é amigo de longa data e acompanha-me aonde eu estiver. Consola-me quando choro, anima-me quando triste, faz-me sorrir, dá-me de comer e de beber. É fiel desde os tempos do pré-escolar. Conheci-o por acaso ao passar diante do restaurante Guaraná, quando me encaminhava para o Jardim Escola, da cidade da Gabela.
Às 12H30, no regresso, a fome espreitava na sala cheia e o tempero baralhava os sensores do cérebro, pois, aquela refeição tinha condimentos que inundavam as redondezas. Era uma combinação harmoniosa da cebola, pimenta, alho e folha de louro, salsa e outros. Quem não queria passar naquele local à hora do almoço.
Actualmente a imaginação tenta refogar feijão com cebola, alho, salsa, mas na época não era comum. Nem sei se o resultado é o esperado.
Habituado aos pratos da aldeia, ao se aproximar a hora do almoço, as lições ficavam para o esquecimento, pois a concentração vagueava nas portas de restaurantes como Guaraná, Central, Esmeralda, Aquário, Bar Estrela e outros. Sonhava o dia em que pudesse provar o paladar dos pratos denunciados por aqueles temperos que perfumavam a cidade.
Até aí apenas conhecia o arroz do Natal de Jesus que era cozido com óleo de palma queimado. O mesmo óleo que entrava como ingrediente fundamental na confecção da quipicula, funge feito com óleo de palma e sal. Poucos se lembram deste prato da fome. Mas fez sua época, durante a plantação do algodão em Porto Amboim.
Era dia da independência nacional. A alegria pairava no ar como fogo de artifício, tornando impossível qualquer indiferença. Todos estavam tocados pelo evento e felizes partilhavam tudo que tinham em casa por pouco que fosse: pão, banana, garapa ou vinho tinto guardado à propósito para o momento tão especial. Era preciso dar vasão ao impulso que vinha bem no fundo do coração.
Independência, dipanda… um novo vocábulo ganha espaço no linguajar local. O tempo foi passando e lentamente, como a poeira que se decanta sobre as plantas, a rotina foi tomando o seu lugar ajustando-se à vida comum de pequenas aldeias.
Numa tarde, depois de chegar da lavra, vi a minha mãe a abrir com a faca uma lata de salsicha, logo fiquei feliz. Iria comer a novidade vinda de longe e embebida por molhos de outras culturas. Já conhecia o sabor da sardinha enlatada, mas da salsicha e do presunto eram novidades trazidas pela revolução através das Lojas do Povo.
A minha mãe, coitada, ainda feriu o dedo polegar ao abrir a lata. Tudo era novo. Todos se aproximaram curiosos para espreitar o produto que pelo formato facilmente provocou gargalhadas insinuadas por outras coisas da vida guardas no disco. Outros se retiravam horrorizados, dizendo tratar-se de dedos humanos de operários incautos, cujas mãos foram colhidas pela guilhotina. Nunca ouviram falar em corta-cabeça? Então, quem corta a cabeça de uma pessoa tem algum remorso ao cortar os dedos de alguém? A busca da resposta gerou outra controvérsia.
Portanto, arroz já estava pronto, faltava apenas juntar-se-lhe a salsicha, mas o problema estava em saber se o líquido também devia ser usado. Alguém introduziu o dedo indicador na lata e provou com a língua, facto que agudizou o conflito. O líquido tinha sal.
Uns diziam que SIM outros diziam que NÃO. Os do NÃO eram a minoria e defendiam que as salsichas deviam juntar-se ao arroz e o líquido jogado fora, mas estes não tinham argumentos suficientes, convincentes, para persuadir os do SIM. Impacientes, na ausência de consenso, despejou-se as salsichas e o líquido, salmoura, sobre o arroz, que depois de provado ficou sem clientes.
Um dos SIM ao provar, fez uma cara de horror. Estava tudo salgado e estragado. Todos ficaram sem tomar a refeição por não terem sabido encontrar a melhor e a correcta opção que beneficiasse toda a família, mas era tarde para remediar o jantar estragado. Os do NÃO culparam os do SIM.
Tudo ocorreu devido a ausência de reflexão profunda e distanciada na tomada de decisão sobre um aspecto que era de importância capital para todos: o arroz com salsichas.
Todas a vezes que vou ao supermercado, lembro-me deste episódio e do dramaturgo alemão Berlot Brecht: "O mais importante de tudo é aprender a estar de acordo". Afinal de contas, continuam perenes os ensinamentos deixado por si na peça: "Aquele que diz sim e aquele que diz não". O diálogo ilumina os caminhos obscuros da sabedoria e da busca do bem-estar comum.
Bom apetite!

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Conversa com o herdeiro!


Os tempos mudaram! Ontem eu era jovem como tu. Sim! Não te parece? Incrível, você pensa que eu nasci com rugas, cabelos brancos e queixas de reumatismo crónico nas pernas! Eu fui um rapaz bonito, brincava, corria, jogava futebol, pulava de alegria, dançava a noite inteira e sonhava como vós sonhais!

O tempo é voraz, a idade avança e se evaporam os sonhos, se entorpecem os músculos e se envelhecem as esperanças. Esse é o ciclo inevitável da vida, meu filho! E apesar de tudo, é preciso nunca perder a temperança.

Sabes por que chilreiam os pássaros ao amanhecer e também ao pôr-do-sol?... Filho, você está crescido, sente-se aqui ao meu lado e ouça! Ainda ontem eras uma criança frágil. Quando você nasceu, me lembro como se fosse hoje, tinhas o rosto redondo e bochechas avermelhadas! As parteiras chamavam-te kamatama. Nasceste com 3 quilos e 800 gramas. Era um homenzinho e com um vozeirão que nem TIM MAIA! Choravas muito, ah mas como choravas! Houve noites em que a tua mãe e eu entravamos em aflição, pois não sabíamos o que se passava contigo. Se era dor do ouvido, bucho virado, maculo, mau-olhado ou sei lá o quê! Olha, tu ganharias qualquer concurso de choro, juro! Olha, sê empreendedor, podes investir na criação de uma Agência Nacional de Carpideiras de Angola (ANCA), para atender velórios de gente sem família! Papá, não gosto disso! Calma, filho!… Isso é normal, as crianças ao nascer têm rosto grosseiro. Olha filho, preste atenção no que lhe vou dizer…

Há mais de uma semana que ando atrás do senhor, só hoje é que o pai quer conversar comigo? Claro que reconheço o facto de eu nem sempre ter tempo suficiente para pelo menos jantarmos juntos e aproveitarmos a oportunidade de trocarmos impressões sobre as mais variadas coisas da vida.

Mas em nenhum momento eu me esqueci de ti. Eu sempre gostei de ti. Digo isso com toda a sinceridade do mundo, porque tu és das coisas mais importantes da minha vida. Que isso papá? Eu não acredito que esteja a falar a verdade! Eu não sou a coisa mais importante da sua vida, pai! Sou sim o primeiro do círculo de suspeitos de tudo que de errado ocorre nesta casa. Me são atribuídas as tarefas mais difíceis e penosas e ainda depois dizem: “Assim foi temperado o aço”. Meu Deus, não fui eu quem jogou pedra na cruz!...

Enquanto os outros vão à escola de automóvel, eu devo caminhar a pé ou de candongueiro por alegada falta de dinheiro. Para comprar uma simples calça, é uma luta. O cartão da parabólica acabou faz tempo e tudo continua calmo que nem as águas da Baía de Luanda. Ninguém diz nada! Agora, nem telenovelas devemos ver, pois aparece sempre o protagonista que busca argumentos no passado, na sua tradição, para nos acusar de múmias! Para ele, o Kuduro é coisa para bandidos, marginais, digo, a escória, para usar o seu português importado. Sempre: ah, porque no meu tempo não era assim. Esquece-se que nem sempre as lições do passado servem para ler o futuro.

Eu agora virei coisa?… É assim que se coisificam as pessoas?... Agora sei, enquanto a tua filha está sempre a ser tratada como ovo, eu sou o osso que só serve para sopa ou feijoada. Outros têm bolsa de estudo no exterior, recebem mesada, viajam pelo mundo e desfilam por Luanda em limousines, enquanto nós nem soubemos o que comer logo ao jantar.

O pai suspirou, espreitou na porta semiaberta da cozinha e fez aquela cara de cansaço e impaciência. Meu filho, sabes quanto ganho por mês? E o abono de família! Já não tens direito! Na tua idade, eu já trabalhava. E você? Com mais de 25 anos continuas a viver de mesada. Tudo para ti é difícil e complicado, nunca és indivíduo decidido e perseverante, não te aplicas para realizares o teu sonho. Vives seguindo modelos alheios, modismos, coisas supérfluas, chicletes. Ontem querias estudar no exterior, pagamos uma bolsa na Namíbia. Depois de seis meses voltaste de férias e nunca mais quiseste ouvir falar do curso de engenharia. Dei-te dinheiro para a matrícula na escola de condução, até hoje nada! Os teus colegas há muito trabalham e você continua encalhado aqui em casa, pedinte. Só se presta ajuda àquele que esteja a fazer algo. Caso contrário, nem Deus o socorrerá.

Pai, eles têm tido oportunidades. Sempre estudaram em boas escolas. Já distribui o curriculum em várias instituições, mas até agora apenas em cinco fui chamado para entrevista. Continuo a espera. Tudo é esquema, o critério não é a competência.

Meu filho, diga-me uma coisa! Que patrão contrataria um indivíduo que usa cabelo grande e despenteado, unhas compridas, brinco na orelha e calças arreadas? Você assusta o patrão! Devias ganhar prémio de melhor espectador do mundo! És um autêntico abacate, sentastes à frente desta TV e apodreces aí mesmo na poltrona. Um homem assim, feito carro de mão, nem a mulher pode contar com ele para mudar uma simples lâmpada da sala. Todos os dias nem te apercebes quando saímos, aliás, naquela hora ainda estás no quarto sono. Pudera, dorme tarde devido ao bate papo com as garotas e amigos no facebook.

Nós saímos às 4H30 para não pegar o trânsito engarrafado e voltamos a encontrar-te no mesmo lugar. Com todos estes perigos do trânsito e da bandidagem, durante o dia nem se sequer te preocupas em saber se nós chegamos bem ao centro da cidade. Tu não fazes ideias do número de pessoas que morre poucos minutos depois de acordar?... Olha, nós já encontramos muitos caídos a esvair-se em sangue no asfalto negro das estradas.

Ao chegarmos a casa no fim da jornada, voltamos cansados nem prazer temos de comer. Buzinamos para abrirem o portão, mas nenhum de vós se levantais para o fazer, pois estão distraídos com a TV ou com o playstation e PSP. Nós trabalhamos todo o dia e ainda por cima, depois do trabalho temos de fazer as compras para alimentar todos os membros da família. Ao chegar a casa, não vemos ninguém para descarregar os produtos. Depois eles são os primeiros a se embutir de banana, laranja ou a beber o sumo e a gasosa.

Não estás preocupado connosco, com a nossa vida, com o nosso trabalho, senão com o dinheiro para tudo que precisas. Quem trabalha passa por dificuldades e humilhações no local de trabalho. Você desconhece o que é trabalhar e ser subordinado de uma cadeia enorme de hierarquias! Os sapos que temos de engolir. Ingrato! Não lava a loiça, não lava a roupa, não sabe engomar, aliás não sabe fazer nada, porque os tempos são novos.

Não queres aprender a cozinhar, porque é coisa feminina, ai é? A vida é dura e só os fortes sobrevivem diante dos lobos. Pergunte à gazela, quanto perigo corre na selva para dormir e acordar! Basta veres a quantidade de predadores que gostaria deliciar-se com a carne de veado! Homens, leões, leopardos, hienas, lobos, jibóias e etc. Quem está na camada mais baixa da cadeia alimentar ou profissional vive esse mesmo drama todos os dias. Pois se não fosse assim ainda hoje os dinossauros estariam vivos.

Pai, se não parar de falar, jamais poderei contar-lhe o meu problema. Mas qual é o problema? Pai, ontem ao sair com o carro da mãe, bati, digo, não bati, raspei num Jeep daqueles que estão na moda. Quero pedir a sua ajuda para resolver o problema. O dono é… Como que se dá a chave do carro a alguém desencartado? O mimo, o excesso de protecção impede que cresçam! Veja a tua irmã! Ela lutou até ingressar na Faculdade, finalizou com distinção, conseguiu emprego. Pai, ela é dama! Cala essa boca! Ela foi sempre uma estudante do Quadro de Honra! É dedicada e disciplinada. É competente! Você é vaidoso, preguiçoso e indisciplinado! Contrário de ti, sabe ouvir conselhos! Sempre disse p’ra não ficar muito próximo da TV. Resultado, estás com dor de vista e obrigado a usar óculos. Quem paga, eu, sempre eu! Sempre disse para não comer coisas muito doce como rebuçados, doces etc. Ninguém ouviu a voz do homem ultrapassado, vulgo papoite! Resultado: tem de ir ao dentista para restaurar os dentes cariados. Os dentistas são caros! Disse que deviam ao menos aprender a cozinhar, mas quando a empregada faltou, todo mundo ficou a andar a toa. O lixo da noite, fica guardado em casa, até a empregada voltar ao trabalho. Não me espantaria se um dia a empregada passar a dar-te banho! Está a falar atoa! Você não me respeita, meu filho: ameaças os teus irmãos na minha presença, inclusive noutro dia, pegastes num pau de fazer funge para espancá-los debaixo dos meus olhos!... Eu não sou eterno!... Você também é homem como eu, terás mulher e filhos, vais lembrar-se das minhas palavras! E vai se preparando, esta casa é alugada! Quando eu morrer, não desejo filho algum fazer-me companhia na cova. A morte é individual e radical!… Olha, pare de chorar, o dono do Jeep está no portão! Coragem! “Assim foi temperado o aço”!


Habla querido, habla!


Prólogo: O Pirilampo sonha ofuscar as estrelas!



No meio da multidão de empresários angolanos e argentinos ávidos em partilhar novas oportunidades de cooperação, uma voz quebra o protocolo e deixa a respiração de muitos suspensa:

- Presidente tu es una mujer inteligente y hermosa, te amo!

- Habla querido, Habla!

Esta é uma tirada descontraída da charmosa Presidente Argentina Cristina Kirchner, ao reagir ao galanteio despropositado de um empresário do seu país na Feira Internacional de Luanda. Saiu bem! Quiçá entusiasmado pelos potenciais negócios a desenvolver em Angola no domínio da agro-indústria, educação, cultura e novas tecnologias, diante da avassaladora simpatia e simplicidade da Presidente, o argentino não se conteve e gritou seu desejo carnal, mas a resposta pela ousadia venho sincopada e com sabor a Tango, que mescla o drama, a paixão, a sexualidade e a agressividade, para a surpresa e delírio da plateia. O arrepio que pendia a respiração se desfez numa tensa gargalhada.

Num outro momento, durante a conferência de imprensa, o seu assessor aproximou-se do ouvido da presidente e lembrou-lhe sobre algo que ela devia dizer aos presentes. Num gesto rápido disparou!

- Estás chato! No voy a olvidar nada! – E prosseguiu como se aquele episódio-incidente nunca tivesse ocorrido naquele lugar! Era festa, era Tango! Era Cristina! Ela conduziu o tractor, dançou, sorriu e abraçou os que cruzaram o seu caminho! Increíble Cristina es fuego capaces de encender un bosque verde, diziam com certeza seus conterrâneos.

Aliás, ela faz jus ao significado do seu nome. Cristina quer dizer, «optimismo e afectuosidade são qualidades que projectam a imagem de uma pessoa popular que alegra seu círculo de amizades. Adora baladas e agitos onde possa demonstrar seu talento artístico. Muito criativa e comunicativa, possui um charme especial que usa para conquistar o que quer. Sua descontracção e bom humor a mantem sempre jovem, não importa a idade que tenha. Sempre aberta a novidades, possui uma mente fértil para os negócios. Seu optimismo permite que mesmo diante das mais difíceis situações encontre um lado positivo e anima todos à sua volta».

E foi com todos esse optimismo e descontracção que a presidente da Argentina, Kirchner, aos 58 anos, foi submetida a uma cirurgia, depois de lhe ser diagnosticado um câncer na tireóide.

As notícias sobre a visita de Cristina a República de Angola bem como os encontros mantidos com autoridades angolanas, com destaque para o Presidente José Eduardo dos Santos, encheram os noticiários de jornais, revistas, rádios e televisões das duas margens do Atlântico.

Ela foi uma artista: «Só através de um cerimonial consegues comunicar. Porque tu não comunicas com os objectos, mas com os laços que os ligam», escreveu em "Cidadela", o também autor de “O Príncipe”, Antoine de Saint-Exupéry.

Portanto, comunicação é um processo marcado pelo envolvimento do emissor e do receptor, por isso não há espaço possível de fuga para o distanciamento.

A propósito quero abrir um parêntese para perguntar o seguinte. Desculpem-me prezados leitores, ouvintes e telespectadores, pois há uma pergunta que não quer calar. Será que todos os angolanos entendem perfeitamente o espanhol, para que não seja fornecida a tradução dos discursos feita naquela língua? Há muito que essa pergunta me persegue e todas as vezes que ouvia o noticiário nas rádios ou televisões, ela gritava nos meus ouvidos! Ajudem-me por favor! - «De repente apareció un hombre pelado (careca) con el saco (jaqueta) lleno de polvo (pó) que le dijo si podía compartir la cena con él.»

Como podemos perceber no exemplo acima, extraído do blog de Adir Ferreira, professor e tradutor de inglês e espanhol há 18 anos, as palavras podem até ser parecidas, mas encerram significados diferentes.

Eu já convivi com muitos cubanos, sobretudo os primeiros militares que haviam desembarcado em Angola para ajudar a travar a marcha sul-africana em direcção a Luanda. Foram eles que mais tarde formaram o famoso Batalhão Internacionalista no CIR Comandante Raul Dias Arguelles, localizada na Fazenda da Nova Ereira. Ali bem perto do meu Pange, do meu rio Mazungue, que corre entre pedras negras que emergem do leito como ovos de dinossauros.  

Os cubanos usavam uniforme Verde Olivo e botas que disseminaram seus trilhos característicos nos caminhos e estradas de terra batida. Nos comunicávamos de qualquer jeito por uma questão de sobrevivência, numa conjuntura onde a emergência não tolerava o silêncio (Hola primo, hola compañero)! Mas daí a encher-se de ufanismos por falar espanhol vai uma distância considerável. Mesmo com ajuda do esforçado portonhol os angolanos da minha aldeia e os filhos de Fidel ficavam a nadar no Mazungue, porque afinal espanhol não é português.

Para ilustrar melhor essa afirmação narro a seguir o seguinte episódio: Certo dia, os militares cubanos chegaram à aldeia com sacos de pão num camião de marca Berliet, espólio do exército português. Entregaram dois sacos a uma jovem gorda que lavava nas margens do rio, com recomendações para os distribuir aos demais. Seus olhos brilharam ao verem o pão, mas não entendeu a mensagem, gerando-se a seguir uma grande confusão.

– O pão é meu, mi deram só su eu!...

- Eles falaram, é p’ra nós todos!...

Instalou-se o conflito. Formaram-se dois grupos ansiosos em comer do pão. A escolha da aliança foi feita tendo em conta factores como laços familiares ou de amizade ou ainda a maior probabilidade de se alcançar o objectivo.

O camião a muito havia partido, não havendo sequer alguém na poeira para repor a verdade, apaziguando os ânimos dos alegados injustiçados! Os ruídos na comunicação geram quase sempre conflitos difíceis de mediar. A contenda motivou uma reunião de desfecho imprevisível no Comité do Partido.

A fronteira luso-espanhola, conhecida pelo epíteto de “A Raia”, estende-se desde a foz do rio Minho, a norte, até à foz do rio Guadiana, a sul, ao longo de mais de 1200 km. Os portugueses que são os criadores da língua e dividem uma fronteira e história com a Espanha, traduzem os discursos destes para o entendimento da sua audiência, mas nós angolanos, cuja maioria tem uma língua diferente para pedir leite materno, nada! Que presunção!

Qualquer manual de jornalismo recomenda o uso da clareza, simplicidade, exactidão, concisão e vivacidade. Como é que tal desiderato pode ser alcançado quando o profissional de jornalismo se esforça em afinar para que possa transparecer uma imagem de homem culto? Ademais com o índice de analfabetismo que grassa entre a população, todos os textos ou discursos em língua estrangeira, incluindo em espanhol, devem ser traduzidos! Já imaginaram uma notícia em espanhol nos semanários? Seria uma brincadeira de mau gosto que baixaria muito gravemente as receitas das vendas e da publicidade!

Por isso, a comunicação é partilha de vivências e experiências, é acto imbuído de generosidade e de amor ao próximo.

Portanto, mesmo captando a mensagem da letra pela metade, enquanto espero pela tradução dos conteúdos noticiosos feitos antes em espanhol nos órgãos áudio visuais de Angola, vou sussurrando, descontraído “Amiga mia”, de Carlos Gardel. Talvez, até lá tenha chances de conquistar a vizinha do saco de pão!



Amiga mía, a ver si uno de estos días,
por fin aprendo a hablar
sin tener que dar tantos rodeos,
que toda esta historia me importa
porque eres mi amiga.



- Habla querido! Habla!…




Lições de Papai


O cacimbo chegou, mas hoje acordei meio introspectivo, pois já não vejo o vermelho cereja cobrindo os cafezeiros e o terreiro das roças. Nem avisto homens e mulheres sorridentes com cestos ao pescoço, colhendo o bago vermelho. Também já não ouço as suas canções que marcavam o compasso durante a safra e serenava a dor da saudade dos que haviam partido. Apenas cafezeiros envelhecidos sobressaem numa paisagem cada dia mais calva com o abate indiscriminado de árvores de sombra. E a silhueta de um agricultor de olhar distante e gestos indolentes ainda persiste para a sobrevivência do seu orgulho.

Ao chegar o cacimbo, imagino meu pai com um tronco ao ombro para fazer fogueira no terreiro ao lado do café e minha mãe agasalhada com panos de flanela, transportando a sanga de água! E nós crianças traquinas envolvidas em brincadeiras intermináveis, que faziam esquecer a hora de buscar às cabras ao pasto ou a louça por lavar. Ah, como o tempo passa!

Ainda me lembro da noite, com estrelas e o luar cobertas pelo denso nevoeiro, quando chegou a casa um camião alemão de marca IFA com o número 56 e a sigla ETP na porta. Era alto e de cor creme, tinha lona cobrindo a carroceria e quatro pneus no diferencial traseiro, sendo dois de cada lado. Respirava, tinha vida! Na cabine, no painel de instrumentos, as luzes de várias cores imitavam a iluminação das grandes cidades e que só víamos no cinema. Mas era realidade, um aldeão, como nós, ia ao volante!

Como é que um simples camponês analfabeto consegue obter cartas de condução e dirigir um camião daqueles? Diante do incrédulo, alguns aldeões refugiaram-se numa única explicação: É feitiço! Outros, procurando abafar o mérito alheio, diziam: Cuidado, é motorista de 25 de Abril!

Com a sua robustez, os IFA’s rapidamente conquistaram a simpatia do povo e as estradas de Angola de Norte a Sul. Com o IFA, meu pai conheceu Quibala, Calulo, Wako Kungo, Cassongue, Atome, Conda, Seles, Huambo, Bié, Benguela e Lobito. Depois veio o tempo das colunas!

Ministério dos Transportes, da Agricultura (Encodipa, Dinaprop), UNTA Finanças, Construção e Habitação… República Popular de Angola! Eram os frutos da independência e da liberdade, conquistadas com o sacrifício de milhares de patriotas angolanos.

Scania 81, depois foi a vez do famoso Scania 111 número 122, cor de laranja. Perguntem ao músico Proletário, qual foi o camião que levou a sua Kahinda!... Scania 111, com a sua lona cobrindo as 18 toneladas de café ou géneros alimentares para as lojas do Povo era a rainha das entradas emocionando adultos e crianças. E no silêncio repetiam: Valeu a pena a Independência!

O tempo quase sempre se tem mostrado incapaz de apagar as lembranças e passado vários anos após a partida do meu pai, no caminho nasce erva daninha, mas as lições deixadas ainda continuam perenes. E incrivelmente, muitas vezes de forma involuntária achamo-nos a partilha-las com os filhos, com os dos vizinhos ou mesmo em salas de aulas com os alunos, diante da estupefacção ao perceber-se que à maioria deles falta-lhes energia volitiva ou seja vontade própria capaz de os impulsionar em direcção ao sonho. Não basta sonhar e ter fé, é preciso ter vontade e força para alcançar o sonho por mais difícil que ele seja.

É a vontade de realização do sonho e a capacidade de consentir sacrifícios que nos fazem avançar e vencer os percursos mais espinhosos. Os homens vitoriosos foram sempre aqueles que souberam identificar as metas e mobilizaram as energias e com audácia e estoicismo lançaram-se intrépidos na sua concretização! O desejo é o rastilho que acciona toda a engrenagem. Quando estamos a cumprir uma missão até a nossa unha deve estar concentrada neste objectivo, papai dizia. Após a identificação do alvo devemo-nos concentrar para atingi-lo! Nada nos deve demover do objectivo principal! O sono proporciona relaxamento e renovação das energias, mas dormir mais do que o necessário é um desperdício de tempo e de oportunidades. Quem muito dorme baba no travesseiro!

Tudo isso aprendi-o com papai. Quando eu nasci, ele tinha 38 anos de idade. Foi no ano da África! Nascido em 1922, era um homem de altura média, bem constituído, forte e sempre bem-humorado.

A busca do primeiro emprego, levou-o de Novo Redondo até à região montanhosa do Amboim, onde apresentou-se como carpinteiro na fazenda cafeícola da Boa-Entrada, C.A.DA. Levava uma caixa onde tinha o serrote, formões de vários tamanhos, diversas plainas e martelos. Era uma altura em que não se ouvia falar do currículo vitae. Era o desempenho profissional que contava na conquista da simpatia do patrão. A humildade, o respeito e a honestidade eram requisitos para singrar na vida!

Analfabeto, lia a bíblia, todavia mal sabia escrever o seu próprio nome. Comprou várias fazendas de café e resistiu às pressões permanente de vizinhos monopolistas como Mário & Cunha e Marques Seixas. Foi o primeiro a matricular os filhos na Escola Primária do Amboim, porque queria que seus filhos fossem como aqueles brancos que trabalhavam no Banco Nacional de Angola ou na Fazenda e Contabilidade. Era um grande orgulho ter um filho no Banco ou na Fazenda, não é como agora, que funcionário bancário poucos meses depois de ser admitido é apanhado a falsificar cheques ou a simular roubo em conluio com bandidos.

Quando a produção do café começou a minguar diante da moleza, não obstante o esforço no aprimoramento técnico, com empreendedorismo investiu na produção do algodão na região do 40, Porto Amboim. Ali conseguiu 8 hectares, nos limites dos quais semeava milho para sustentar a mão-de-obra. Nas férias, era festa grande, pois todos os filhos desciam de comboio para participar na colheita do algodão, voltando apenas na véspera do ano lectivo, que ocorria dia 11 de Setembro. Apanhavam o trem nas Lassetes, ou na Gonga, estação logo a seguir, passavam pela Boa Viagem, 70 e desembarcavam felizes com as suas trouxas na Quijiba, ou Torres. Depois a pé caminhavam vários quilómetros até a lavra do 40.

Mesmo sabendo apenas escrever o nome, conseguiu tratar juntos das autoridades portuguesas os documentos de porte e uso de arma de caça, com que passou a sustentar a família. Não tardou a ser chamado o “Homem da carne seca” em toda a região. Quem não o conhecia pessoalmente, dificilmente pode negar ter pelo menos comido da boa carne seca de Velho Kamupinda! Lá em casa, comercializava-se de tudo desde peixe seco, carne de veado, pacaças e javalis e tabaco produzido na região do Novo Redondo. Era sim empreendedor!



Depois do 25 de Abril, chegaram os movimentos de libertação e as desarmonias insufladas pela guerra fria que opunha os Blocos Ocidental e o do Leste. Vivia-se o período que o francês Raymond Aron chamou de “guerra improvável e a paz impossível”.

O negócio do bago vermelho e do algodão faliram, a caça foi proibida ou impedida pelo conflito militar. Que fazer? Foi aí que decidiu ser condutor de camião na Empresa de transportes Públicos, vulgo ETP. Mas como, se não sabia ler e nem escrever em condições?

Acredite! Matriculou-se na Escola de Condução e decorou o livro de Código de Estrada e de mecânica. A mim coube a tarefa de ler os textos enquanto ele os repetia. Na hora do Programa radiofónico “Angola Combatente”, eu ficava dividido. O que é o motor? Onde é proibido fazer ultrapassagens?...

No dia de exame, ele aprovou com distinção e semana seguinte estava ao volante do IFA.

Nós podemos tudo, basta querer, dizia fervoroso! Era preciso aprender a trabalhar com honestidade e humildade, porque a preguiça ou a indolência são inimigas do sucesso. O homem mais preguiçoso da aldeia, havia virado quimbanda ou feiticeiro, para conseguir sobreviver. Enquanto os demais aldeões acordavam cedo para ir à lavra semear ou proteger a sementeira contra as aves do campo, ele ficava a aguardar pela colheita. O primeiro milho tinha que lhe ser entregue para que fosse abençoada. Foi assim que alguns aldeões se tornaram refém de espertalhões.

Meu pai, meu herói, está sempre na moda, jamais o deixaria ficar à porta de um asilo!

Obrigado Papai!...

Quem muito dorme baba no travesseiro!


Língua da morte


Ontem, acabado de chegar a casa, depois das habituais arrelias provocadas pelo trânsito apertado, suspirei e retomei a leitura da véspera:

- Quem nunca quis ter uma casa de sonhos numa colina com o sol filtrado pelos limbos das plantas do quintal e lá no fundo um lago com patos a nadar? Pois é, no sonho todos podem, aliás diz-se que sonhar está previsto em Constituições de todas os Estados. Sim! Todos têm direito de sonhar! Talvez seja esta obsessão que impele uma minúscula semente a germinar rompendo a terra e erigindo o caule em direcção ao Sol.

“Nossa Vila”, “Nosso Lar” e “Bem morar” deixaram para atrás de si um grande remoinho de frustrações e descontentamento, pois foi um sonho que terminou em pesadelo para a grande maioria dos angolanos. Para quem mesmo perto dos 50 anos, ainda anda às voltas com o espinho da casa própria na garganta, sabe o que isso significa para um chefe de família, que tem sob sua responsabilidade o bem-estar e a auto estima da mulher e dos filhos. Por isso, a corrente de solidariedade para com os burlados no caso Grupo Build Angola. Sabe-se o quanto dói o dinheiro ganho com grande sacrifício e a expectativa frustrada de toda a família que ansiava mudar-se para uma nova casa com quarto para cada criança, cozinha espaçosa, quintal, suites, escritório, enfim uma casa com habitabilidade. Mas tudo isso acabou como um simples sonho enfronhado pela dor. Agora entendes?

Ingressou ao grupo dos sem casa própria, logo após atingir a maior idade. Abandonou o doce lar com a esperança de caminhar com os seus próprios pés. Ao desembarcar em Luanda, morou em casa de aluguer. Primeiro, no bairro Prenda, ali bem perto da Oitava Esquadra. Dia e noite deambulava com outros jovens da sua idade a busca de festas para comer, beber e dançar. Para ir ao trabalho descia à pé ao invés de esperar pelo autocarro. Descia pelo areal, apanhava a estrada da Samba, passava pelo Zamba 2 e seguia tranquilo até à Mutamba. Prenda ainda era Prenda e não tinha esse amontoado de chapas, lixo e blocos!

Aos 23 anos, já com a cônjuge mudou-se para a Ilha de Luanda, ali bem perto do Marítimo e da Loja do Povo onde fazia as compras no tempo do célebre Cartão de Abastecimento. A casa tinha apenas um cómodo para o casal e a filha, a primeira de uma lista que supera os dedos de uma mão! Num canto, estava o fogão da Sonangol, adquirido graças a requisição do patrão da esposa, e do aparelho de TV preto-e-branco atribuído a si por ter sido considerado Destacado na Emulação Socialista. Do outro lado, separado por cortina de pano de Congo, estava a cama e duas malas de chapa com roupas. Um fio unindo as duas paredes do ângulo recto, feito a hipotenusa de um triângulo, servia de cabide. É lá onde pendurava os trajes, na sua maioria roupa usada, e outra adquirida em lojas abastecidas pelos Sábados Vermelhos.

Durante a noite, o delírio de prazer alheio chegava através da abertura deixada pela meia parede que separava o cómodo da do vizinho. E sobressaltados, avisados por uma voz masculina do outro lado, sabiam-no: a neblina cairia dentro de pouco tempo.

Na hora do almoço, voltava para casa, ia e vinha com o autocarro nº 28 que ligava a Ilha do Cabo ao Porto de Luanda. O Panorama ainda era Hotel e sobressaia no Cartão Postal da Ilha da Kianda.

Certo dia, uma contrafé bateu-lhe a porta. A vizinha dos delírios da noite e que se exprimia com sotaque francês reivindicava a outra parte da casa. Os fiscais também percebiam francês e acabaram por se entenderem para a sua desgraça.

Na época, os despejos eram frequentes, pressionados por falta de habitação. Requerimentos com denúncias inundavam a Secretaria de Estado da Habitação. Ainda guarda zeloso a cópia de muitos deles pedindo mui respeitosamente que se dignassem a autorizar a ocupação de um imóvel para morar.

Nada! Com a mulher grávida, seis meses depois de se ter mudado para a Ilha, partia errante por Luanda à busca de um novo paradeiro. Poisou novamente no Bairro Prenda e depois foi para o Cassenda. Sempre em casa de aluguer!

No Cassenda, depois das eleições de 1992, o casal dono do apartamento entra em litígio e decidem vendê-lo. Apanhado de surpresa, demanda-se aflito para o bairro Benfica, levando sempre consigo o sonho da casa própria.

Hoje vive no Zango, conformado com a recusa de um banco em conceder-lhe crédito habitacional, pois apontam a idade como condicionante. Com 50 anos idade, teria de pagar o crédito em apenas 10 anos, o que significaria um esforço financeiro que o seu salário não suportaria. Saiu da agência desiludido. O limite de crédito habitação são os 60 anos de idade. A exigência, atrás da qual se escudam os bancários engravatados, é que aos 60 anos deve-se liquidar todas as dívidas com as instituições bancárias. E os anos restantes que se nos acrescentarem são considerados de compensação e neutralizações.

Pronto, já está-se no Zango! Desde que mudou-se por iniciativa própria para o Zango, nos últimos 4 anos converteu-se, de forma inusitada, num verdadeiro fiscal de obras. Conhece de tudo um pouco, inclusive a data de início e as respectivas empreiteiras a quem as mesmas foram adjudicadas. Ainda lembra-se da alegria pueril com que foi acolhida a boa nova. Troços, traços, pregos, buracos, empreiteiras, vala. As câmaras e as manchetes amplificaram o Projecto ainda em maquete. Viu as obras de alargamento da estrada de Viana e as dificuldades encontradas pelo engenheiro para vencer as águas que nasciam por debaixo do pavimento. Não entendia do assunto, era como um médico querer tratar de ensinar a redacção do lead ao um jornalista decano. Mas há polivalentes por aí que alegam possuir experiência para leccionar todas as disciplinas de um curso. Era leigo, mas já construiu uma casa de raiz, numa altura em que o tijolo dominava o mercado de construção civil. Fazia as misturas de cimento e areia sem obedecer a qualquer proporção. Mais cimento para ficar firme! Será que pode ser considerado engenheiro?

Voltemos aos carris. … Acompanhou animado as várias etapas da obra da estrada da Samba, Benfica-Cabolombo. Os seus olhos viram a poeira, que levantada pelos pneus, pairava sobre os limbos das árvores e do capim das bermas da estrada. As obras da Nova Centralidade, do Estádio 11 de Novembro e os vários projectos habitacionais que foram nascendo ao longo da via, feito cogumelos, atraídos pela perspectiva de se ter um pólo de desenvolvimento por perto. Morar na periferia tem-se essa vantagem de saber-se tudo que se passa fora e dentro da cidade.

Angustiado também viu os vários acidentes que passaram a ocorrer com maior frequência à medida que o pavimento era melhorado. Não entendia de engenharia mas tinha uma opinião, mas que raros escutavam. Dizia: Atenção às línguas da morte que existem espalhadas pela cidade. Os retornos vieram substituir as rotundas, tudo devido o aumento do trânsito rodoviário. Mas uma coisa o intriga: Sempre que se realizam campanhas de prevenção rodoviária, às culpas pelo alto grau de sinistralidade é imputada aos motoristas e peões. Alegando excesso de velocidade, imprudência, consumo de álcool etc.

Das línguas da morte nada se falava. Uma boa parte dos acidentes na estrada de Viana e Samba ocorre nos retornos. Aliás, na via da Samba por altura do Morro da Luz, depois de variadíssimos acidentes e vítimas, a empreiteira retornou ao local para reduzir a língua de betão. A noite, as ruas estão escuras e esta língua traiçoeira facilmente se confunde com o escuro. Ao menos que fossem devidamente sinalizadas com reflectores, caso contrário, ainda teremos mais vítimas nesta noite.

Cuidado com a língua da morte, seu beijo pode ser fatal!

Pensamento flutuante


Os pensamentos roubavam-lhe o sono. Acordava cedo e procurava ocupar-se com algo que lhe ajudasse a matar o tempo. E num dia igual aos outros e imbuído de sentimentos que eram a sua rotina, apanhou o autocarro com destino à baixa de Luanda. Eram 10 horas.

No bairro Morro Bento, subiu uma jovem que veio sentar-se ao seu lado. Que sorte! Chamava-se Miquilina Ngueve, natural do Bié, e vivia sozinha num dos bairros de Luanda. E trabalhas? Sim, sou PISCÓLOGA. Sorriu descontraída. Wandalika aceitou com relutância a profissão. PISCÓLOGA! Pelo traje bem poderia ser confundida com uma vendedora ambulante do mercado existente por de trás dos antigos Armazéns Gajajeiras, vulgo Arreiou-Arreiou. Lá o negócio é feito no meio de lama, facto que obriga os clientes a calçarem sacos para não sujarem os sapatos. Mas aceitou, era preciso fazer fluir o diálogo. Vive sozinha por quê? Tio, essa é uma grande história, não vais ter tempo para me escutar. A viagem está quase a terminar. Vais até aonde? Vou à Mutamba. Vou ter tempo, conta!

Wandalika insistiu até que ela decidiu desfazer o novelo da sua história: Eu sou natural do Bié. Lembra do tempo da guerra? … Pois, eu e o meu irmão Catraio viemos para Luanda para fugir a guerra. E os teus pais? Eles ficaram lá. Como? Eles só nos colocaram no avião. Não havia mais lugar, toda a cidade queria vir para Luanda. Eles ficaram e nós viemos! Quantos anos tinham na altura? Eu tinha 13 anos e o meu irmão, nove. Vocês já conheciam Luanda? Não! E como é que foi ao chegarem aqui? Viemos só. Chegamos no aeroporto, descemos e depois fomos andando... Ficamos uma semana naquelas barracas do aeroporto. Durante o dia, ajudava as senhoras a lavar a loiça e à noite ia passear ali perto no Cassequel do Lourenço, depois no Mártires do Kifangondo, no Cassenda e na baixa. E dormiam onde? Dormíamos em qualquer sítio. Ou na barraca ou nas sucatas ou ainda na rua.

Wandalika ficava cada vez mais intrigado. Mas você é formada, podia arranjar um emprego como psicóloga! Ela sorriu numa longa gargalhada. Desconfiado, Wandalika avançou com mais cautela. Aquele sorriso era uma máscara que escondia algo importante. Então você não é formada em Psicologia? Mais ou menos. Como assim? Eu trabalho com pessoas! Pessoas? Sim, pessoas que precisam de ajuda. Ajuda PISCOLÓGICA! Ah, tá! E tens muitos clientes? Muitos doutores, grandes chefes, bosses de verdade, funcionários, kabolas e tudo. Basta ter dinheiro! E quanto ganhas por dia? Depende! Depende do dia! Aos fins-de-semana ganha-se mais, mas uma pessoa fica partida. Mas em que clínica trabalha? Por conta própria! Então você é empreendedora? Mais ou menos. E quais são os teus planos para o futuro? Quero arranjar dinheiro para viajar. P’ra onde? Para ir ver os meus pais. E o teu irmão? Ela baixou a cabeça e entre soluços disse: ele morreu. Lhe mataram num senhor. Por quê?! Ele lavava carro no aeroporto. um boss lhe mandou lavar o carro dele. Eu até lhe vi, quando lhe deram o trabalho. Era já mesmo cliente dele. Todos dia ele lavava e recebia dinheiro à tarde. Certo dia, quando o boss veio encontrou os espelhos não estavam, roubaram. Falou que meu irmão é que roubou. Aí começou a lhe bater, lhe bater, lhe bater. Ele começou a dizer que não era ele, mas o boss continuou a lhe bater. Só lhe deixou quando ele começou a vomitar sangue. Dois dias depois morreu. Não levaram ao Hospital? Fomos até na Maria Pia, lhe deram uma pica e lhe mandaram voltar. Dia seguinte, morreu. A polícia levou o corpo na molga. Como não tinha nenhum documento, assim lhe enterraram na vala! Eu também não tinha condições para lhe enterrar! É muito triste! Sim, agora estou sozinha. Por isso quero ir me m’bora no Kuito. Mas o dinheiro não chega. E não aconteceu nada ao boss? Nada, anda aí! Não está preso? Quem vai lhe prender? Pobre não prende rico! O tio não está ver mesmo a situação?

Os seus olhares se cruzaram. E essa cicatriz na testa? Um tio é que me bateu. Depois de eu lhe atender não queria mi pagar. Eu lhe segui até no carro. E te deu o dinheiro? Não, mas também lhe deixei estrago! Que estrago? Quando ele tentou fugir, eu queria abrir a porta. Ele começou a ofender a minha mãe, eu entrei na janela e lhe segurei no pescoço e começamos a lutar. Na atrapalhação o carro acelerou e foi bater numa pedra. Aonde é que foi isso? Na Ilha…O carro partiu o vidro e começou a sair água quente. Que tipo de carro era? Era preto, desse tipo dos boss. E ele? Heheheheh! Deixou o carro na estrada, só tirou a pasta dele e a chapa de matrícula, depois se meteu na floresta da Ilha. Bem feito! Ele pensa que nós não sofremos! Nosso serviço é chofrimento! Depois há com cada cliente!... E ainda temos de pagar a casa de processo! Com essa doença que anda aí, tamos mal!... E descarregou todo desgosto que carregava num suspiro. É a vida!...

Já perto da Assembleia Nacional, Miquilina perguntou, enquanto se preparava para levantar-se. Gostei muito do tio, tens um sotaque tipo brasileiro. E o tio faz mesmo o quê? Sou desempregado. Hum, mata cassumuna? Afinal era só lata! Com essa roupa, eu já pensei m’bora …! Mas kunanga, não acredito ou és da investigação ou da Igreja Universal?!... Kunanga de primeira!

No Cine 1º de Maio, desceu e num salto desapareceu na multidão de passageiros que desembarcava. Wandalika também desceu do autocarro e, ao caminhar em direcção à Mutamba, lembrou-se do cheiro exalado pelo corpo de Miquilina. Era do perfume barato comprado no mercado Roque Santeiro, adicionado ao cheiro de noites partilhadas na busca de prazeres carnais. Suspirou pensativo. É a vida!

As tentativas de rever a Miquilina foram infrutíferas. Então desacelerou o passo e indolente prosseguiu a marcha sem pressa como se não quisesse chegar ao destino. Estava desempregado e até já chegou a pensar no suicídio, mas o drama de Miquilina impressionava-o. Afinal há gente que está pior do que eu! Quis ir saber do seu curriculum, mas desistiu. Se estivessem interessados o chamariam! Aliás, no dia do contacto a funcionária já o havia alertado. Há poucas hipóteses, pois o Gabinete de Comunicação está em reestruturação. São sempre assim!

Passou atrás do Cine Teatro Nacional e ao tentar atravessar a Rua de Portugal quase foi atropelado por um táxi. Correu, mas ainda foi a tempo de ouvir os palavrões do condutor. Não ligou. Querem me matar aqui! Nem pensar! Malandros!

Incrivelmente mais animado, acelerou o passo e entrou num bar para urinar. Naquela hora, trabalhadores e vagabundos confundiam-se no cenário. Pediu um cigarro e um fino, enquanto bebia reflectia sobre a sua vida. Pediu mais outro e os restantes ficaram por conta de um amigo de ocasião. Ao sabor do diálogo e da cerveja, não viu o tempo passar.

Às 15 horas, agradeceu a gentileza do amigo e encaminhou-se até a Marginal de Luanda. No calçadão, não acreditou nos seus olhos. Como a Marginal está bonita! E ao sabor da tarde, deixou os seus pensamentos a flutuar nas águas da Baía.


Vidas sem fronhas


No cimo do seu orgulho muangolê, sorri: Kupapata, Kuduro, Kaenche, Quinguila, Quilápi…! E admira a força e a facilidade com que o popular consegue introduzir novos termos linguísticos, ou seja neologismos, no vernáculo oficial. Queda-se na empatia de heróis do guetto, como “Nagrelha”, “Dadão” e outros, que transformaram rapidamente o país num gigante e afinado grupo coral:  Moré, moré Moré, moré … Corré, corré, corré, cooooorré!

Espirra e olha de soslaio as pedras e blocos colocados sobre as chapas para segurarem o tecto das tempestades. Todo candidato a Governador de Luanda devia sobrevoar a cidade durante várias horas, antes de aceitar a proposta!

Suspira. Liga o reprodutor e a música suave do octogenário Nga Petelo afaga a alma e dá um outro colorido à sua manhã. O músico, aos 80 anos, prepara a apresentação do seu primeiro disco. É como se a vida começasse aos 80. Bem-haja, antes tarde!

Emerge relutante do sublime! Naquele instante, trava bruscamente para superar um buraco no pavimento e esboça um sorriso ao avistar um outro carro com vidros todos fumados. Essa aí vai passar despercebida. Investe num “noivo mecânico”, ou para passar invisível, como uma ilustre desconhecida.

Afastou esses pensamentos e prosseguiu calmo e indiferente às traquinices dos taxistas, à arrogância dos automobilistas e ao desmazelo dos ambulantes, que fechavam a via com os seus embrulhos.

Desceu paciente até à baixa luandense. Era importante manter a serenidade, pois sabia o que o esperava no guiché da empresa que era obrigado a contactar naquele dia. Era cliente antigo e perdera o número de vezes que fora atendido sempre por aquelas duas funcionárias. Ela eram as donas do espaço. Conheceu-as ainda jovens e esbeltas! Ah, como o tempo foi daninho para aquelas duas criaturas!

Sabia as suas vidas de cor e salteado. Quanta inconfidência! Se ela viajou para o Dubai com o marido, as compras que fez, o hotel onde se hospedou. Toda a empresa e a restante clientela sabiam o que trazia na bagagem para revender à quilápi a todos que desejassem. Os pedidos de noivados e os casamentos em que participara, o cabelo da noiva, a roupa do noivo, o buffet e as censuras sobre a cor do batom, do vestido ou dos sapatos femininas das convivais. Toda a vida andava às claras no guiché, esventrada pela má-língua, sem quaisquer fronhas. 

Aquelas duas há muito eram colegas numa empresa pública na baixa de Luanda. As amicíssimas eram parecidas pelo volume dos pneus na região do abdómen, pela cor da peruca e na lentidão como se locomoviam durante o atendimento. Nunca tinham pressa e eram imunes às reclamações: Aqui não é casa da mãe Joana! O senhor não manda aqui! Se quiser vai passear! Incrível, uma delas chamava-se exactamente Joana!

Não adiantava reclamar, talvez elas tivessem os seus corpos envoltos em colectes protectores contra qualquer perfurante! Nunca se sabe, quem fala assim não é gago! Por isso, a prudência recomendava sobretudo ponderação! Seguro morreu de velho ou de medo?

Quem nunca ouviu falar delas, que também eram conhecidas pela rabugice no atendimento e por isso acumulavam sacos de censuras do público por ficarem a conversar, enquanto deviam trabalhar? Este e outros comportamentos semelhantes que levaram muitas empresas a caíram na falência e, na curva, algumas entregues de quiabo para a outra gestão.

A chegada dos telemóveis agravou ainda mais o sofrimento de quem procura os serviços daquela instituição. Ontem a conversa versava sobre o cônjuge da Joana. Comentavam: Mas um homem que é homem de verdade nem casa própria tem? Uh, a fulana, ela sim, é que se casou de verdade. Tem casa própria e carro novo na garagem. Agora nós, é só esfrega!

Há tanto tempo que estamos a construir a casa mas as obras não acabam. Parece obra de igreja! Quando começamos, eu estava grávida da minha primeira filha! É? Quantos anos tem o seu marido? … JÁ DEU CACHO. Nesta idade ainda vive na casa de renda! É VERGONHOSO! Estou cansada de mudar de bairro todos os anos. A família até pensa que estás a fugir das dívidas. Olha, melhor assim, também há família do marido que é um verdadeiro horror. Só falta uma declaração de guerra. É verdade! Hoje estás aqui, amanhã estás não sei lá aonde! De tanto mudar de casa ainda acabas por chorar óbito sozinha. Pelo menos, não te vão expulsar da casa! Cambadas de ambiciosos, quando trabalhamos eramos só os dois na vida até que a morte nos separasse, mas depois aparecem outros figurões! É verdade, pelo menos nunca vão saber para onde te mudastes. Se não fosse os telemóveis estávamos perdidos no meio urbano! Somos embora ciganos!

Mas o problema é que a mobília não dura por causa das mudanças frequentes. O meu sofá que comprei na última viagem, você nem acredita como ele ficou depois do Coqueiros. Está todo rasgado. Também, do jeito que seguram as coisas, aquilo até parece que estão com inveja. Esses raboteiros sabem o que é boa mobília?

E a outra sorriu. Roboteiro. Raboteiro? Vem de quê, de rabo?... Nem sei. Talvez de robô. Ya, meu marido também disse que vinha da palavra russa rabota, que quer dizer. Trabalha! Imagino os russos a gritarem para o angolanos: Rabota! Rabota! Rabota! Sorriram longamente e fecharam com o gesto de bater as mãos  abertas uma na outra. Hum, até já virei gira-bairro, disse a outra, enquanto colocava os óculos para atender um cliente que lhe havia aproximado a ficha até bem perto do rosto.

Não precisa esfregar-me o tal papel na cara. Eu não sou cega!... O homem ficou calmo, olhou-lhe nos olhos e estendeu-lhe a mão fechada com o punho virado para baixo. E a tempestade evaporou-se numa onde de espumas. Sabia o remédio certo. Ele continuou calmo. Não queria estragar a promessa de não se irritar naquele dia. Aguentou como pôde e finalmente suspirou de alívio quando se viu livre daquelas duas. Mas o seu diálogo sobre a casa de aluguel o perseguiu.

Interessante! Numa cidade em que tem-se dificuldade de se indicar o endereço, porque anualmente mudamos de casa, num verdadeiro nomadismo urbano. Interessante, conhece-se novos lugares, novos vizinhos com seus bons-raros hábitos e maus-copiosos-vícios. Arrastam o saco de lixo escada a baixo, estaciona enviusado fechando as outras viaturas, e quando chamado, manda passeia a buala toda, buzina à meia-noite para abrirem a porta do apartamento no 9º andar. Pára para conversar com o outro automobilista seu amigo e esquece os restantes, rabujando ao ser incomodado. Depois dizem que gente que nasceu na esteira no quimbo é que se comporta assim.

Há mais 30 anos, ou melhor desde os 18 anos que se está na procura angustiada de uma casa condigna para se morar. O fim de cada ano, renova-se a esperança no ano seguinte. E o caso habitação perpetuou-se na agenda das prioridades. Angustia-se, sobretudo para quem aos 50 anos, depois de tantos programas quinquenais, ainda tenha a casa do sonho pendurada no plano.

Casa de aluguel é um fenómeno urbano, porque nas aldeias, quem quer habitação construía com os materiais locais. Tudo que se necessitava estava aí à mão de semear: terra, paus, pedras e capim.

 A conjuntura, marcada pelo êxodo das populações das províncias para Luanda, fruto do conflito, propiciou o aumento vertiginoso da procura por habitações. Assim a década 80 e 90 do século passado foram os mais marcantes no que diz respeito aos despejos administrativos, por falta de documento que legalizavam a posse de determinada habitação.

Inexistem dados estatísticos para fiabilizar essa afirmação, mas há realidades que se constatam sem a frieza dos números. Para quem viveu aquela época na cidade de Luanda, mesmo sem óculos, chegaria à presente conclusão.  A desonestidade ganhou novos e fortes adeptos! 

Certo dia com a ajuda de um amigo obteve informações fidedignas de que o apartamento estava sem qualquer proprietário. Pois o inquilino, vendo-se incapaz de liquidar o aluguel atrasado de vários anos de inadimplência, numa noite saiu sorrateiramente depois de construir a sua casa no bairro da Petrangol. 

O caminho estava aberto. Dia seguinte, fez deslocar uma patrulha. Elaborou-se o requerimento dirigido ao Comissário Provincial de Luanda. Naquela altura, bastava vigiar um apartamento durante uma ou duas semanas, caso não se notasse qualquer presença humana, para que se pudesse despoletar o competente processo de denúncia e consequentemente de despejo.

É assim que a bananeira deu cacho, imbondeiro sumo e gelado, mas ele ficou a espera. E como cigano continua a cantar:

 Hoje tô aqui/amanhã ali/Benfica, Cacuaco/ não tenho endereço/não Zango não/se quiser espera/na porta do Camama! Viva sem fronhas/Nem amortecedores

Viva os ciganos urbanos!

FIM DO MITO


Era sempre assim. Seguíamos tranquilos a rotina das nossas vidas humildes, como o rio Mazungue faz o seu percurso, descendo silencioso o mesmo leito de antigamente.

Lá em casa, a mesa farta se enchia de algazarra nas horas das refeições, mas quando a estiagem minguava a colheita, o prato de funge e de feijão tornavam-se comuns para toda a miudagem. Era a melhor forma para distribuir o pouco que se tinha na dispensa. Os adultos vigiavam cada colherada, sendo a desonestidade no encher a colher ou no comer apressado entulhando a boca de alimentos, punidas com censura ou com a suspensão temporária de voltar ao prato até que os demais recuperassem o atraso. Quem fosse último, lavaria os pratos, porém, apesar da fome, poucos aceitavam essa empreitada, saltando antes de ser declarado comilão.

Dezembro de 1973. Ainda fervilhava a saudade do paladar dos pratos feitos com folhas de mandioqueira, de abóbora e rama de batata. Na fome, as folhas de gindungo e mamoeiro viravam também alimento.

Foi na busca da sobrevivência, que meu pai acordou cedinho, aprontou a sua moto vermelha de marca Floret e partiu. Passou na Boa-Entrada, desceu o morro da Giraul e passou pelas salinas com destino às Cachoeiras da Binga, ali perto do Novo Redondo (actual Sumbe). Na bagagem amarrada no suporte com fitas de borracha, levava sal para a carne de prováveis presas. Ao chegar, com a sua arma de bala 375 embrenhou-se na profundidade da mata dominada por gordos embondeiros e cactos altos.

Semanas depois, vimos uma carrinha a aproximar-se da nossa casa. Na carroçaria, estava sob a lona, a perna e o braço de uma pacaça. Perfilados, esperamos sobressaltados. O condutor era-nos estranho. Mal o carro parou, abriu-se com vigor a porta do pendura. Era o meu pai!

Contrariamente ao que era normal, todos ficaram assustados, pois ele trazia a cabeça envolta em ligaduras ensanguentadas. Tremi. Minha mãe, correu com os braços abertos na sua direcção. Abraçou-o e preocupadíssima quis saber logo o que havia ocorrido ao seu amor. Sorrateiro, olhou-nos com carinho e a mornes do sorriso que trazia no rosto, amainou a tortura da espera.

Com certeza, pensou-se logo em acidente de motorizada, mas não. Na ausência dos telemóveis de hoje, a notícia tardava a chegar ao destinatário. E se ele jamais tivesse voltado a casa?

Diante da impaciência da curiosidade, depois de beber a água de jatona (lata de um litro transformada em copo), contou animado as suas peripécias.

Numa tarde, depois de ter perseguido uma manada por mais de dez quilómetros, num vale, avistou uma pacaça solitária a pastar. Mastigava calmamente. Parou e olhou à volta desconfiada. A brisa farfalhava a vegetação. O caçador, com respiração suspensa, rastejou sobre o capim verde. Acomodou a coronha no ombro direito e fez a pontaria. Premiu o gatilho calmamente e a agulha percutora veloz atingiu o cartucho. A explosão cortou o silêncio da floresta, despertando bichos adormecidos ou interrompendo as carícias que a embriaguez do entardecer propiciava.

O animal surpreendido pelo disparo, correu desnorteado. Rapidamente, o caçador se levantou e aproximou-se de um embondeiro. Afastou a folhagem com o cano e pé-ante-pé, aproximou-se do local, onde antes se encontrara o animal a tomar a sua última refeição. No rasto, apenas as marcas dos cascos, na hora do arranque precipitado em prol da vida.

Cinco metros depois do local, confirmou a sua pontaria sempre infalível. A pacaça havia sido atingida, mas teve ainda força para fugir.

Com atenção redobrada e a arma desengatilhada, continuou minuciosamente a perseguição. Depois de 20 metros, o rasto inverteu para a esquerda descrevendo a letra U. Com o coração aos pulos, parou e olhou desconfiado para os lados, foi exactamente naquele instante que a pacaça ferida partiu para a desforra, atirando os seus mais de 500 quilogramas contra o caçador.

Este instintivamente saltou feito uma mola antes comprimida e agarrou-se ao ramo de um arbusto. O chifre do animal atingiu as suas nádegas, na sequência o corpo foi projectado para cima e a cabeça atingiu os espinhos do ramo do pau-ferro.

Há cinco metros, a pacaça, ofegante, preparava um novo assalto, quando o caçador, depois de apanhar a arma fez um novo disparo, atingindo a testa do animal.

Meu pai era um grande herói. Era a imagem de um homem forte, corajoso e valente diante do qual nada era impossível. Mesmo ferido gravemente na cabeça, ainda sorria.

Cresci com essa imagem masculina depositada no subconsciente até que em 1976, ao entardecer, ele recebeu a notícia sobre algo que havia ocorrido com a sua mãe, Lemba Zongo. Papá, está chorar por quê?

A avó havia morrido de repente na localidade da Gangula, quando regressa da lavra. Meu pai e minha mãe choraram juntos. Ela enxugava as lágrimas com o pano. Mamã, é quê? Não respondeu, mas perguntou-me entre lágrimas: tens fome?... Eu disse que não, mas mesmo assim ela fez o funge, serviu para mim e continuou a chorar.

Então, desamparado, também comecei a gritar acelerando as minhas lágrimas. Assim, ficou abandonado pela primeira vez o almoço. A refeição é agradável, quando tomada em boa companhia.

Eu na minha inocência apenas chorava, mas não entendia, o motivo pelo qual estava aquele homem, que era meu ídolo, com os olhos cheios de lágrimas.

Então se desfez o mito segundo o qual os homens nunca choravam. No berço, se inaugurava um ciclo de lágrimas que apenas terminava com o apagar da luz da vida. Ao nascer, com o primeiro suspiro, uma criança normal chora, caso contrário os adultos solícitos com palmadinhas nas nádegas obrigar-lhe-iam a fazê-lo. E se mesmo assim o recém-nascido se mantivesse em silêncio, um mundo de preocupações invadiriam os pais e os demais adultos.

Para a criança com a sua angélica fragilidade, o choro é importante, pois passa a funcionar como um sinal de alarme estridente que alerta os pais de alguma anormalidade. O grito desesperado da fome pelo leite ou mesmo a reclamação pela humidade das fraldas descartáveis, cuja promessa da impermeabilidade para as 24 horas consecutivas são apenas publicidade. Essa que desde a ágora vende ilusões.

Aos 12 anos, termina a infância e é desse período de que tenho mais saudade, talvez porque tinha mais tempo para brincar e sonhar. Quando se é criança até as lágrimas possuem sabor que a língua interceptava no seu trajecto descendente.

Eis a lição das crianças que fica para os adultos: bebé que não chora não mama. Mas se não houver leite e não tiver dentes, o melhor é comer matete, para enganar fome.

Os adultos também choram, por mais variados motivos. Eu, no dia 31 de Agosto de 2012, quero chorar. Quero chorar de amor por Angola. Quero chorar de alegria, pois com o meu voto quero contribuir decisiva e definitivamente para a paz, para o aprofundamento da reconciliação nacional e para a construção de uma sociedade desenvolvida assente na solidariedade social e na justiça. Com a urna nunca se brinca!