sábado, 23 de agosto de 2008

Quem aceita Jesus?

Nossa Senhora Aparecida, no Estado de Minas Gerais, Brasil, era um bairro de gente simples com muitos brancos, negros e mestiços. Funcionários, operários de construção civil, vendedores e empregados. Algumas ruas eram asfaltadas e outras calçadas de pedra. A casa onde morávamos ficava no término dos autocarros daquela linha. A cerca de 20 metros havia duas cantinas e um orelhão (telefone público). O bairro Nossa Senhora Aparecida fazia fronteira com o bairro Santa Rita, Santa Cândida e Nossa Senhora de Lourdes. Era muita Santa à nossa volta.No anexo com o Sangueve, também vivia um capitão da Força Aérea Angolana chamado António. Um luandense do Bairro Rangel. Mais tarde viemos a saber que era apenas tenente. Estamos zerados, dizia o Sangueve. Estamos é zebrados! Sorríamos. Sorríamos... Na primeira semana, peguei, a título de empréstimo, em 100 dólares e dei-os a cada um deles. A alegria havia retornado. Dois dias depois, voltaram a pedir mais 100 dólares. Acedi. Semana seguinte pediram mais 100 dólares. Recusei. Dei-lhes apenas 50. Entretanto, os gastos eram compreensíveis, pois os meus companheiros tentavam atenuar a dívida do aluguer, melhorar a dieta alimentar, comprar roupa e diminuir o cansaço andando de autocarro.Do frango havíamos passado para carne, sobretudo de fígado de vaca. Voltamos a gargalhar ao lembrar os esqueletos de frango.Mas no mealheiro o nível de segurança baixava. Em menos de um mês estava apenas com 300 dólares. O ponteiro estava no vermelho. Para quem não sabia quando receber reforço de verba, a situação era realmente aflitiva.Como o quadro degradava-se a cada dia, decidi manter um encontro com os companheiros de caserna para a revisão da situação. Camaradas! Nós somos militares e temos que buscar soluções. Mas que soluções? Somos comandos desembarcados na profundidade do inimigo. A nossa missão é de alto risco.Não temos como receber apoio da retaguarda, devemos contar com os nossos próprios meios e capacidade de sobrevivência. Temos de aprender a pescar!O Sangueve acendeu um cigarro com indisfarçável insatisfação pelo diálogo que para si até aí era incompreensível. Esperei alguns segundos até a conclusão da primeira baforada e prossegui com maior acutilância. Como vos disse, a guerra em Angola não deixa espaço para vislumbrarmos um futuro de paz dentro de pouco tempo. As tropas do Governo desdobram-se no terreno para rechaçar o inimigo, mas a situação vai durar algum tempo.Sabem que o inimigo está bem municiado. Caxito, Catete... são zonas de guerra! Não temos como receber o dinheiro da bolsa dentro de pouco tempo. Temos de resistir. Todo esforço vai ser canalizado para a guerra. Esta é a verdade.A impaciência dos interlocutores empurrou-me precipitadamente para a parte principal do plano. Vamos procurar uma igreja. O falso capitão, sorriu numa alta gargalhada, levantou-se, abriu a porta e saiu, fechando-a atrás de si com alguma violência. A porta fechou-se e no caminho que nos unia apareceram pedras que cresceram e chegaram a pedregulhos. Para ele, eu era um doido, um exibicionista! Quem olha em várias direcções não avança! Concentrei o fogo no Sangueve. Queria convencê-lo. Fica calmo, nós vamos conseguir manobrar. Os chineses dizem que a arte da guerra é a arte da manobra. Vamos à igreja! Meu companheiro Sangueve manifestava-se relutante, argumentando que era católico desde os tempos de criança no município do Bailundo e não protestante. E eu contra-atacava. Quando a vida está em perigo, as soluções devem ter em conta primeiro a sobrevivência. Lá vais seguir todos os movimentos de levantar, fechar os olhos, assentar e ajoelhar. Fica calmo! Mas porquê que você não quer ir na Católica? ... Até fui baptizado pela Católica, mas ainda era criancinha, apenas tinha 2 anos. Então, vamos lá! Nem pensar! A última vez que pus os meus pés numa igreja Católica foi em 1993. Nem imaginas! O quê? Fomos corridos pelo padre! ... Hum, fizeram quê! Sabes que depois de 1975, após a proclamação da independência quase todos os jovens aderiram ao ateísmo científico. Aliás, era condição para ser-se militante do MPLA, mais tarde transformado em Partido do Trabalho. Todos queriam ser comunistas! Então, em 1991, familiares de um militar falecido queriam que se realizasse uma missa em sua memória na Igreja Sagrada Família. A plateia era composta maioritariamente por militares garbosamente fardados exibindo braços musculosos. Eram dos debraços!... Quando começou a missa foi uma desgraça. O diabo desceu? Não, nenhum deles sabia rezar o Pai Nosso e nem Ave-Maria . Nem ninguém sabia cantar as canções. O Padre sentiu-se solitário perante o cadáver. E enfurecido começou a amaldiçoar os presentes: O que é que vieram fazer aqui? São vocês que quando vivos não se preocupam em ir à igreja e fazem-no apenas na hora da morte. Vocês são oportunistas. Igreja não é loja onde se compra a fé. De nada adianta pedir a Deus que receba a alma de alguém que em vida foi carrasco do Senhor. Sem terminar a missa, pegamos no caixão e saímos apressados.O padre tinha razão. As pessoas só procuram a igreja quando têm problemas. Quando estão encravados. Eu não vou mudar de igreja agora. Epá Sangueve, então vai me fazer companhia para eu não ir sozinho. Vou pensar no teu caso...Apesar da dificuldade, consegui convencê-lo. Contribuíram para o facto, acredito, vários factores, entre quais o ser-se da mesma arma: a Marinha. Subimos paralelo ao rio Paraibuna em direcção ao Bairro Benfica, passando pelo Jóquei Clube, Parque de Exposições e admirámos os canhões expostos no Batalhão de Artilharia de Campanha.Conversávamos tranquilamente ora em português ora em Umbundo. Nessa última língua era apenas em ocasiões, quando era preciso rematar ou colocar ênfase no discurso. Chegamos ao destino por volta das 17 horas. Parámos perto do jardim do Benfica e encaminhámo-nos em direcção à Igreja Baptista. Mas o culto começaria apenas às 19 horas.Fizemos um raid de reconhecimento e buscámos um esconderijo por perto. Numa distância capaz de controlar todos os movimentos de entrada e saída do templo.

terça-feira, 19 de agosto de 2008

Viva a paz! Viva a Democracia!

Em Setembro de 1992, era a primeira vez que iria votar. Tinha 29 anos! A ansiedade tomava conta das horas vespertinas. O sono foi coberto por várias pulgas. Muitas coisas estavam em jogo. Os Programas eleitorais haviam (des) vendado alguns pontos obscuros. A propaganda ajudava, mas também atrapalhava.
A guerra, com suas dores e horrores, havia terminado há pouco tempo, há 18 meses. E os eleitores eram chamados para escolher quem os iria governar. Era como se os antigos contendores haviam repassado para o eleitorado o que não foi decidido no teatro operacional.
Aguentei a fila várias horas. Vi o sorriso com que saiam os que haviam exercido o seu direito de cidadania na Angola Independente e animei-me!
Já passava da hora do almoço, mas nem dei pelo ruído da fome. Quando chegou a minha vez, rezei para que tudo corresse bem, pois de algures já partiam mensagens de inquietações.
Caminhei sobre o gume da navalha até a mesa de voto. E trémulo, procurei o partido e o candidato da minha preferência. Sem titubear, Xis num e Xis no outro!
Quando depositei-o na urna ainda me questionava se não me havia enganado na hora do voto, tamanha era a responsabilidade e a tensão que pesava no ombro de cada eleitor.
Dezasseis anos depois, volto às urnas mas mais tranquilo, calmo. Acabou o medo e as incertezas!

Viva a paz! Viva a Democracia!

Mazungue é meu e ponto

Mazungue, o rio Gabelense que corre entre pedras, troncos e angústias. Adoptei-o como meu pseudónimo, aliás nunca tive outro. E os questionamentos surgiram: -
- Por quê Mazungue?
- É o rio da minha infância!
Pois todos têm um rio correndo dentro de si. Muitos já o viram ao relento, mas poucos ouviram enternecidos a melodia das suas águas entre rochas. Ademais a cidade é sempre ruidosa e degradante. Passando por debaixo da cidade da Gabela, transporta as gorduras da modernidade e só lá mais em baixo se purifica e sorri. Não sei onde fica a sua nascente nem a sua foz. Dizem nascer na Donga - região a norte do Amboim, perto da Gabela e desaguar no rio Chilo, que por sua vez desagua no rio Keve, na região da Binga, desaguando este no Oceano Atlântico.
Sei apenas que ele ornamentou as nossas brincadeiras e arrefeceu-nos do calor das correrias no capim das margens. É dele os bagres e cacussos que ajudavam a vencer a rotina pesada da cozinha feita de funge com feijão.
O mergulho no rio virou desporto para gente ribeirinha como as do Pange e Londa. Suas águas irrigavam no cacimbo as hortas fertilizadas com excrementos de cabras e excitava na memória das lavadeiras o sabor do canto da última farra.
Ouviu e guardou lamúrias de amores desavindos, paixões proibidas, traições e declarações de enamorados.
O Mazungue é o confidente, amigo, camarada!

O Mazungue é meu não o partilho com mais ninguém. Me desculpem, mas ser fã tem esse quinhão possessivo. E ponto!