domingo, 20 de julho de 2008

Aventura em terras de Minas!


Após a chegada à cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil, procurei montar o quarto. Como sobrava pouco dinheiro, pesquisei móveis mais baratos. Sozinho peguei num táxi no Bairro Manuel Honório para ir até ao Calçadão trocar duas notas de cem dólares. O motorista entrou pela avenida Rio Branco, atravessou a Rua dos Andradas, subiu a Barão de Cataguases e pegou a Olegário Maciel. Não conhecia nada, por isso não desconfiei. Desceu a Padre Café, a Avenida Independência e só depois chegamos à Rua Halfeld, vulgo Calçadão. Foram mais de 30 minutos de viagem, num circuito que gastaria apenas cinco. O taxista prolongou a viagem para amealhar mais uns trocados, pois havia descoberto, eu era estrangeiro. Troquei os 200 dólares, um dólar valia um real. Calmamente, parando aqui e acolá para admirar as vitrines, caminhei em direcção ao Mergulhão, uma passagem inferior em cima da qual estava a linha do comboio. Perto do Largo Riachuelo, agarraram o meu braço e fui cercado por quatro mulheres de meia-idade. Preparei as unhas e os dentes para a luta. Uma delas, a mais novinha, sorriu para mim e afagou a minha mão esquerda. Desarmei. Eram ciganas. Leram a minha mão. Disseram que eu não era da cidade. Certo! E que havia uma mulher que me amava muito. Talvez! Ouvi desconfiado e de cara franzida. Queria logo sair daí e correr. Mas correr para onde?
Sempre com sorriso, a cigana sem soltar a minha mão, prometeu fazer uma oração para dar-me sorte, mas antes pediu que retirasse tudo que tinha no bolso. Assim me livraria do fardo que transportava. Ingénuo! Tirei o que tinha no bolso direito já que ela segurava o braço esquerdo. Sorte minha! Num gesto rápido, ela pegou o conteúdo retirado do bolso. Entrei em pânico. Eram os cinquenta Reais! Avancei em posição de ataque. Ela juntaram-se num cacho e uma dela simulou gritar por um agente da polícia. Sem saber se gritava ou chorava ou as duas coisas simultaneamente, fiquei a olhar impotente o movimento da urbe mineira. Dia seguinte, na companhia do Sangueve, com o dinheiro que sobrara, comprei a cama, o colchão e o cobertor, tudo no bazar da Pechincha. Fui atendido por uma moça negra chamada Maria José. Você é nigeriano? Não, angolano. Ah, tá! Vão ficar aqui muito tempo? Sim. Ok. Tá morando onde?... E deu seu número de telefone. No estabelecimento havia de tudo: aparelhos de rádios e TV, móveis, vasos, pratos, roupas, enfim. Uma infinidade de objectos quinquilharia para todos bolsos e gostos. Fiquei feliz com o preço. O Sangueve foi buscar uma carroça puxada a cavalo. Meu amigo parecia um artista de cinema de pé sobre a carroça. Como se estivesse a inspecciona-lo, admirei o cavalo grande e castanho. Batia os pés no asfalto e agitava a cauda preta afugentado os insectos. As viseiras chamaram a minha atenção. Para quê serviam? Para o bicho não mudar de direcção atoa. Explicou o proprietário. Se olhar em várias direcções ele não caminha directo, não avança. Fiquei pensando nas suas últimas palavras, enquanto subíamos lentos o morro com os móveis em direcção a casa. Quando se olha em várias direcções não se avança! Tive pena do animal. Tinha o rosto triste. Quando é que uma mula sorri? Talvez quando se vinga dos homens sujando a cidade de asfalto com as suas fezes esverdeadas. Ou então, quando consegue jogar o seu algoz para o chão. Pois vida sem riso é dor!
Montamos a cama e aguardei a noite chegar. É sempre boa a estreia. A noite chegou, mas não acreditei. Fiquei sem dormir. Foi uma noite longa, porque as pulgas e percevejos não deixaram. Sem dinheiro para as novas compras tive de aprender a conviver com elas durante quase um ano. Uma coexistência penosa. Dois dias depois, a Maria José ligou para o telefone público. Queria falar com um dos angolanos que moravam ali perto. Foram logo chamar-nos. Todos saímos a correr. Primeiro, o António, a seguir, o Sangueve e eu no fim da fila. Estão chamando por um cara angolano! Será o António? O mensageiro branco mostrou-se indeciso. Sangueve? Não! Respondeu com convicção! Augusto? Isso, é ele mesmo. Meu coração tremeu. Quem seria? De Angola, não é possível!... Peguei o auscultador com cuidado como se ele mordesse ao mínimo gesto. Alô, é Augusto!.... Siiim! O coração trabalhava assustado. Aqui é Maria José, do Bazar da Pechincha! Ah, sim! Você não ligou até hoje!... ...Hum! Vamos passear um pouquinho hoje a noite? Hoje a noite? A que horas? Oito da noite! O quê? Às oito horas vou estar na Faculdade! Dezoito, dezanove e vinte. Vinte horas! Entendeu? Yá. Beijo. Tchau. Nunca recebera tanto beijo, pena que era só ao telefone. No encontro, ela já traçava planos para o futuro. Quando é que teu dinheiro vem? Fingi que não tinha ouvido. Ela com esperteza prosseguiu sem se importar com o meu silêncio. Sabia que atacaria no flanco. Eu estou muito apaixonada por você, rapaz! Vou te fazer feliz. Você não tem filhos? Eu nunca tive marido nem filhos. Você é um cara legal, atencioso... Sempre sonhei ter um cara assim… dentes lindos!... Hum!... Vamos arranjar a nossa casa, comprar mobília como aquela. E apontava para uma montra.
O coração agora tremia. Olhei indiferente para as montras, esperando a hora da despedida. Não é aqui no tal Brasil que andam falar, hum?!... Perto do Supermercado Bretas, parámos antes de atravessar para o lado do Shopping Santa Cruz. Passou um autocarro do Bairro São Pedro. No parque, vultos se movimentavam no ambiente semi-escuro. Isso aí é uma zona. Zona? Sim. Você em Angola não tem zona, não? Temos. Pensei longe. Lá cada um tem a sua zona. É mesmo? Eu também tenho a minha, onde nasci... Como assim?! Desconfiada e surpreendida. Ué, você nasceu numa zona? Sim. Chama-se Gabela. Quibela? Não, Gabela. Quibela. Estava perder a paciência. Zona é terra onde a gente nasce. Cada um tem sua aldeia. Respirou de alívio e abraçou-me. Pensei que fosse... Fosse o quê? Zona p’ra gente é lugar onde ficam as quengas. Quengas? Sim, mulheres da vida. Ah, as putas? Sorriu, sorriu. Afagando-me a cabeça com ternura. Com indícios de nervos ainda mal disfarçados na voz, perguntei: E aqueles homens que estão com elas? São clientes ou então gigolôs. Acompanhante, protector. Aié? Mas tem também homens trabalhando. Tem mulheres e homens da vida. Trabalhando a esta hora? Esta é a hora que tem mais clientes. Clientes? É, a esta hora a zona fica, assim! A mensagem foi codificada com os dedos da mão esquerda abrindo e fechando em cacho. Tem gente que não gosta de mulher. Na África também tem bichas? Tem sim! Com o socialismo, surgiram muitas bichas à entrada de supermercados e restaurantes. É mesmo?! As pessoas chegavam à madrugada e só saiam de lá no dia seguinte. Que isso, cara?! Como nem todos os dias são santos, muitos regressavam sem conseguir nada. Sei, tem isso também… Aqui, me diga uma coisa. O socialismo é bom? É, tem algumas coisas boas, mas o terrível é enfrentar as bichas. Na luta, algumas vezes se quebravam os vidros da montra. Muita gente ficava ferida. Nossa, tudo por causa das bichas? Tudo. Que isso, rapaz?! Na África também tem lâminas. Hein?... Gente que é lâmina! Comecei a ficar com medo. Lembrei-me de um filme onde uma mulher degolava as suas vítimas com uma lâmina que escondia por debaixo da língua. Não tem nada a ver! Lâmina é homem que gosta de mulher e também de homem. E lâmina porquê? Porque corta dos dois lados, bobo. Ah!... Não gostei da última palavra, mas escondi a minha insatisfação numa gargalhada. Baby, você só gosta de mulher, né?!... Desmanchei-me num sorri. Mas o volume das carícias e o andar sempre abraçado me sufocavam. Me senti amarrado sem espaço para o voo. Vamos embora! E sempre me abraçando, junto do Directório Académico, subimos no autocarro Santa Rita e na brisa fria da noite o meu pensamento ancorou na “zona”. Já viu alguém nascer numa zona? Cheguei a casa a sorrir. Dia seguinte, um homem negro que prestava serviço no Bazar alertou-me do perigo que corria. Oh negão, esta muher tem homem. Ela tem uma fiha com um cara de um metro e oitenta. Não pisa na bola com o cara. Vai te fazer bagaço, negão. Bagaço?! Azar. Corri e busquei refúgio, no Bairro Nossa Senhora Aparecida. Cheguei ofegante. É o quê mais? Não é nada, é só correr mesmo. Corpo são, mente sã! Ah, pensei que te correram. Eu? Nem pensar! Estais me estranhando! Não ouviste hoje de manhã no programa do Márcio Augusto, da Rádio Solar AM. Disseram o quê? Hoje não é um bom dia para o teu signo. Como assim? Peixe, deves estar atento com as coisas ao seu redor e ser muito prudente, porque algo de horrível poderá acontecer na sua vida. Sangueve, se ficares a ouvir estes gajos, nunca serás feliz. É mesmo! Se ficares atento vais ver que o signo de Peixes nunca tem uma previsão boa. Ora porque cuidado com dinheiro, ora porque o seu astral está em baixa. Eh, estamos mal! Também, vamos cuidar de dinheiro que não temos!... Aquário é prisão de peixes e gaiola de pássaros.

O assobio de Teta Lando

Aos primeiros acordes, o silêncio desce sobre o relvado do Estádio da Cidadela e logo depois explode em estonteantes aplausos, que ensurdecem a plateia. Na sinfonia, a voz suave brota calmamente entre os instrumentos e hipnotiza a audiência.«Domingo vou fazer um funge,Como fazia aquele velho na SanzalaA sombra da mulemba vai ser a sala na sanzala…»O sol se escondia no horizonte com seus lilases e alongava a sombra dos edifícios sobre o cenário. Sob o dedilhar dos fios do violão, o coração estremece de amor convertido em canção.«Eu vou fazer um Semba para dedicar à LembaVai ter Ungo e QuissangeVai ter Marimba de MalangePara encontrar a harmonia…»Era Alberto Teta Lando! As lágrimas e os apalusos salpicaram toda a sua actuação no Fenacult. Estávamos no ano de 1989. Jamais me esqueci daquele momento!Emocionado, apertei contra o peito a arma AKM que transportava e chorei. A Cidadela estava engalanada. Não havia espaços vazios nem pausas na torrente de emoção. Tudo era cor e alegria. Era um ambiente transcendêncial.Como aluno da Escola Político-Militar Comandante Jika, em Luanda, havia acabado de participar na apresentação de quadros humanos. Foram três meses de ensaios orientados por uma instrutora coreana. Ainda me lembro!...O Fenacult ocorre meses depois do fracassado Acordo de Gbadolite, que teve lugar em Junho de 1989, na República do Zaire, sob mediação do presidente Mobutu Sese Seko.A guerra fratricida voltava a traçar o seu rasto de dor e sofrimento! A alegria vespertina havia se transformado em tragédia. Em cada coração o sabor acre da desilusão.Feito arauto, Teta Lando chega exactamente nesse momento em que a nação, cansada de anos de conflitos, se esforçava para estender a ponte para a paz e a concórdia entre os irmãos desavindos.Portanto, era simplesmente irresistível a mensagem que Teta Lando trazia no seu regresso ao País, depois de vários anos de exílio em França. Ele chegou na hora certa e abriu-se para o amplexo abraço.«Vamos falar da terra,Vamos esquecer a guerra,Vamos ter uma só voz,Vamos ficar entre nós,No meu funge de Domingo,Avó Marica vai gostarAvó Ximinha até vai chora,Por nos ver juntos a conversar…
Os nossos velhos vão gostar, vão gostar…
As nossas mulheres vão deixar de chorar
As nossas crianças vão gostar, vão sorrir…
Os nossos mortos vão compreender então,
Porque morreram afinal…
A esperança vai voltar»A canção entrou pelos ouvidos e inundou os corações, animando a cadência da nossa marcha. E a profecia de Teta Lando se concretizava dois anos depois em Bicesse, Portugal.Ele cantou a saudade e prometeu voltar. E voltou para dar seu quinhão na reconstrução do país! Porque tinha a consciência de que todos éramos poucos para as tarefas ingentes de se criar o bem-estar social dos angolanos. As dificuldades de reconstruir um país dilacerado profundamente pelo conflito são imensas, mas é preciso arregaçar as mangas para a luta de todos os dias.«Angolano segue em frente o seu caminho é só um.Esse caminho é difícil, mas trar-te-á a liberdade»Para vencer as agruras do caminho, é preciso caminhar com amor, daí a necessidade de cada angolano amar o seu irmão. O amor supera qualquer dificuldade.No caminho para a modernidade, a identidade africana deve ser tida sempre como factor crucial que dá suporte ao projecto de desenvolvimento de qualquer nação. A cultura funciona como os faróis para a navegação. É a referência na assumpção da nossa verdadeira personalidade enquanto africanos. «Você é africana tem beleza natural, vai mostrar para todo mundo que essa tua carapinha é o acabamento de uma obra sem igual».Teta Lando deixa-nos a poucos dias da realização das segundas eleições legislativas marcadas para 5 de Setembro de 2008. Com certeza, o assobio de Teta Lando vai marcar o nosso compasso no labor de fazer de Angola um país melhor para ser viver!Por isso, mais do que chorar a dor da ausência, guardemos pois as lições que ele nos legou.«Angolano ame o seu irmão!A palavra de ordem é união»